Ações do governo desarticulam Capes e Inep

Questão de Fato
6 jan 2022
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Verdade seja dita: não se pode acusar o atual governo federal de discriminar alguma área ou órgão ligado à ciência do Brasil. Todos são tratados indistintamente com descaso e ataques. Autarquias como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o próprio Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) já sofreram interferências indevidas e cortes de recursos.

Agora chegou a vez da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) passarem por uma crise sem precedentes, com a renúncia de mais de uma centena de pesquisadores e servidores técnicos nos últimos meses.

Desde o início do atual governo, os dois órgãos vêm sendo enfraquecidos, com interferências e trocas frequentes de dirigentes. No caso do Inep, que é o principal responsável pelas avalições – como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) – e indicadores da educação brasileira, os problemas se agravaram no início de novembro.

No dia 1° de novembro, a menos de um mês da realização da prova do Ensino Médio, o coordenador de Exames para Certificação, Eduardo Carvalho Sousa, pediu demissão. Três dias depois, servidores do Inep realizaram uma assembleia-protesto, na qual acusaram a direção do órgão de assédio moral e denunciaram um desmonte na sua estrutura. Outra causa de insatisfação foram duas portarias nas quais o presidente da autarquia, Danilo Dupas Ribeiro, delega a tomada de decisões que deveriam ser dele a seu chefe de gabinete.

No dia 5 de novembro, foi a vez do coordenador da Logística de Aplicação do órgão, Hélio Júnio Rocha Morais, pedir demissão. Além do Enem, ele e Sousa eram responsáveis pelo Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) e o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja). No dia 8, mais 33 servidores pediram para deixar o órgão.

Em declarações para a imprensa, feitas preservando suas identidades, colegas que permaneceram no órgão disseram que os pedidos de demissão foram feitos por causa de discordância quanto a decisões do atual presidente do Inep – o quarto desde o início do governo –  que não são consideradas de caráter técnico, e por supostos casos de assédio moral.

Bem antes disso, no dia 28 de abril, sete ex-ministros da Educação – Tarso Genro, Fernando Haddad, Cid Gomes, José Henrique Paim e Aloizio Mercadante (nos governos do PT, Lula e Dilma), Mendonça Filho e Rossieli Soares (no governo de Michel Temer) – divulgaram uma carta aberta, na qual alertavam que o Inep está “em perigo” no governo Jair Bolsonaro. De acordo com eles, o órgão “vem sendo gravemente enfraquecido e isso coloca em risco políticas públicas cruciais para gestores educacionais, professores, alunos, familiares, além de governantes de todos os níveis”.

Depois de discorrerem sobre a importância da autarquia para as avaliações, e indicadores, tomada de decisões e distribuição de recursos na área de educação, os ex-ministros fazem um “apelo”: “Nós, que tivemos a honra de comandar esse ministério em algum momento da história recente do país, sentimos compelidos a fazer um apelo ao governo e à sociedade: respeitem, valorizem e reconheçam o papel de Estado desta instituição”.

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Ele reiteram ainda que “o Inep é fundamental para a produção de dados sobre a educação brasileira. Por ser tão técnico, seu trabalho talvez não seja suficientemente conhecido pela população, mas asseguramos que é um pilar de sustentação da maior parte das ações do MEC. Sem um Inep capaz de cumprir suas funções, não haverá gestão responsável na educação do Brasil”.

 

Capes

No caso da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, que já está em seu terceiro presidente no atual governo, a crise começou a se alastrar no final de novembro. No dia 29, 52 pesquisadores renunciaram a seus mandatos na fundação. Pediram desligamento os coordenadores das áreas de avaliação de Matemática/Probabilidade e Estatística e de Física e os dois subcoordenadores de cada uma, além de 28 consultores ad hoc da primeira e 18 da segunda. Nos dias seguintes, eles foram seguidos pelos seus colegas das áreas de Química e Engenharia III (Engenharia Aeroespacial, Engenharia Mecânica, Engenharia Naval e Oceânica e Engenharia de Produção).

Entre as várias razões para a renúncia dos pesquisadores está, de acordo com eles, a falta de empenho da direção da Capes para reverter a decisão da Justiça que, em 29 de setembro, suspendeu, por meio de liminar, a avaliação quadrienal dos programas de pós-graduação de todo o Brasil (veja aqui). O órgão demorou cerca de dois meses para recorrer da decisão.

Além disso, os demissionários alegaram pressão da presidente da Capes, Cláudia Queda de Toledo, para a criação apressada de novos programas de pós-graduação. Para isso, foi lançado um edital de Apresentação de Propostas de Cursos Novos (APCN). Os pesquisadores que se desligaram dizem que a avaliação quadrienal deve preceder a APCN, já que os parâmetros para julgamentos de cursos novos dependem dela.

A pós-graduação na modalidade de ensino a distância (EaD) foi outro motivo da renúncia coletiva. Numa carta aberta, os pesquisadores da área de Matemática/Probabilidade e Estatística e de Física reclamam que, na discussão sobre a APCN, a presidência da Capes também trouxe à baila o assunto do EaD. “Fomos instados a escrever novos documentos a respeito em um prazo de dois dias úteis, depois estendidos em mais uma semana”, escreveram. “No entanto, estabelecer parâmetros para a expansão com qualidade do EaD não é tarefa para uns poucos dias de trabalho”.

Segundo eles, a área pela qual eram responsáveis pode se gabar de uma experiência pioneira e extremamente positiva com programas semipresenciais em escala nacional. “Não obstante, o EaD definitivamente não é a modalidade de ensino dos melhores programas de pós-graduação no mundo”, ressalvam. “O fato de as áreas não terem aprovado programas nesta modalidade na última APCN, apontado pela presidência da Capes como problema, parece-nos justo e prudente”.

Para o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), as atuais gestões dos dois órgãos deixam a desejar. “A do Inep, segundo se lê na imprensa, se omite, o que levou à demissão de funcionários de carreira, que deixaram seus cargos de confiança, por não estarem sendo atendidos, porque a sua presidência nem toma conhecimento do que é para ser feito”, critica.

No caso da Capes, diz ele que a comunidade científica tem insistido para que haja um diálogo maior entre a presidência e os coordenadores de área: “Parece-me que a questão principal é que eles dialoguem mais e que a presidência atenda às demandas deles”.

O biólogo Bruno Lourenço Diaz, diretor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vai além nas críticas às duas instituições. “Ambas sofrem uma crise de liderança, que gera falta de credibilidade junto à comunidade científica e de educação, que se propaga para a sociedade como um todo”, avalia. “As decisões equivocadas, atrasos em tomá-las e omissões se acumularam nos últimos tempos e tiveram maior visibilidade com as solicitações de exoneração dos funcionários do Inep e as renúncias coletivas de coordenadores e equipes de consultores ad hoc de algumas áreas da Capes”.

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A psicóloga Eleonora Cavalcante Albano, mestre e doutora em Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que sua avaliação das gestões da Capes e do Inep é a mesma dos pesquisadores e servidores que se demitiram. “O desmonte que estão sofrendo inviabiliza a qualidade das atividades pelas quais respondem”, lamenta. “A consequência será a queda de qualidade nas instituições públicas de ensino, em benefício do ensino privado de qualidade duvidosa. Essas gestões foram plantadas na Capes e no Inep para desmontá-los. É uma manobra típica de governos obscurantistas”.

Para ela, as duas são as instituições mais importantes do Ministério da Educação (MEC). Eleonora ressalta que o Enem mudou completamente a feição do vestibular e “foi importantíssimo” para tornar as universidades públicas mais inclusivas. “O desmanche denunciado pelos funcionários que deixaram os seus cargos vem ocorrendo desde o início do presente governo”, lembra. “A desfiguração do exame vai representar um enorme retrocesso para a educação brasileira”.

No caso da Capes, a pesquisadora diz que são 70 anos de esforços para a implantação de cursos de pós-graduação de qualidade em todas as áreas científicas. “O processo de avaliação contribuiu muito para obtermos os resultados, que conquistaram  posições respeitáveis nos rankings internacionais para muitas das nossas universidades”, explica. “O trabalho de várias gerações nesses 70 anos está em risco de desmoronar”.

Para um dos coordenadores demissionários da Capes, Fernando Lázaro Freire Junior, da área de Astronomia/Física, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), o problema do órgão não é apenas a atual gestão. “Em três anos e meio tivemos quatro presidentes”, contabiliza. “É normal que quando se tem um novo governo se mude o segundo escalão de um ministério. Mas depois disso, a troca constante, com pessoas com diferentes perfis e conhecimento da situação da pós-graduação, não permite que se tenha a necessária continuidade de ações e programas”.

Além disso, de acordo com ele, a presidente da Capes não agiu com a presteza devida no caso da suspensão judicial da avaliação quadrienal. “A suspensão da avaliação por decisão judicial não despertou na atual gestão a necessária urgência para superar essa situação”, critica. “Isso, inclusive, foi dito pelo segundo juiz a analisar a questão na sua decisão ao negar o recurso da instituição”.

Ainda de acordo com Lázaro, já havia uma série de problemas com a avaliação, como a questão do Qualis (uma espécie de ranking de periódicos), que só poderia ser divulgado após o resultado de recursos, além de dificultar o uso do sistema que foi discutido ao longo de pelo menos três anos. “Essa falta de transparência permanece após a última decisão judicial [de 2 de dezembro], que permite a retomada dos trabalhos de avaliação, mas não a divulgação dos resultados”, acrescenta.

Some-se a isso a impossibilidade de se completar o processo de avaliação durante o mandato dos atuais coordenadores, que até hoje ainda não foram prorrogados. “A pressa em se abrir uma chamada para novos cursos, sem que a avaliação quadrienal tenha sido feita é outro problema”, diz. “A última chamada de APCN, em fevereiro de 2019, foi realizada cerca de 15 meses após a finalização da avaliação do quadriênio 2013-2016. Agora teremos um intervalo de tempo muito maior e as coisas evoluem muito rápido nessas áreas”.

O biólogo Carlos Frederico Martins Menck, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e coordenador da avaliação da Área Ciências Biológicas 1 da Capes, está entre os que não pediram demissão. “Nós não renunciamos porque temos um compromisso com a comunidade da área de manter a avaliação com qualidade”, justifica. “Se saíssemos, eventuais substitutos poderiam ter outro tipo de objetivo, como o caso de interesses comerciais na pós-graduação e não de qualidade”.

Isso não o impede, no entanto, de fazer pesadas críticas à atual gestão do órgão. “A situação da Capes está caótica, como um barco desgovernado”, resume. No atual governo ela já teve três presidentes. O primeiro ficou apenas um ano e tinha uma visão acadêmica dela, sabendo da importância desse processo de avaliação. O segundo já tinha certa dificuldades em entender como era o funcionamento da Capes e o processo de avaliação. Sempre tratou os coordenadores de área como pessoas que seriam consultores e deixava claro que quem mandava era ele. Implantou uma redistribuição de bolsas, e cortes, sem consultar os coordenadores de área”.

Finalmente, a atual presidente, na avaliação de Menck, “não parece saber o que de fato é uma pós-graduação e que ela, necessariamente, gera conhecimento e ideias. Além disso, ela não tem compromisso com a qualidade, como se espera de qualquer gestor da Capes”, acusa. “A atual presidente tenta se impor mostrando que ela é quem manda, mas os problemas e responsabilidades são dos outros”.

De acordo com ele, a prioridade da atual gestão é abrir novos cursos de pós-graduação, sem necessariamente manter a qualidade, e sem a percepção de que cursos com objetivos comerciais só vão contribuir para o seu desmonte no país. “Gostaria de deixar claro que sou favorável à formação de novos cursos de pós-graduação, inclusive em escolas particulares, mas eles devem necessariamente contribuir para geração de conhecimento e ideias”, diz. “E isso requer investimento, sobretudo em recursos humanos de qualidade. A Capes deve manter seu papel de direcionar e avaliar a qualidade”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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