O presidente Jair Bolsonaro e o Primeiro Ministro da Índia, Narendra Modi, assinaram, durante a recente visita do mandatário brasileiro à Ásia, uma série 15 documentos, entre acordos de colaboração e memorandos de interesse comum, em Hyderabad House, em Nova Délhi.
O item 8 chama a atenção:
8. Memorando de Entendimento para Cooperação na Área de Medicina Tradicional e Homeopatia
Busca promover e desenvolver cooperação bilateral na área de medicina tradicional e homeopatia. As áreas de cooperação previstas no instrumento incluem intercâmbio de experiência em regulamentação de ensino, de práticas, medicamentos e terapias sem medicamentos; promoção de conhecimento, intercâmbio de treinamento para terapeutas, profissionais de saúde, cientistas, profissionais de ensino e estudantes; e desenvolvimento de pesquisas conjuntas e de programas educacionais e de treinamento.
Ambos os países apresentam, infelizmente, um histórico de institucionalização da pseudociência, via interesses corporativos e decretos governamentais. A homeopatia no Brasil é reconhecida como especialidade médica, assim como cardiologia ou oncologia, e é oferecida no Sistema Único de Saúde (SUS), como parte do Plano Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC). Existem 29 modalidades de práticas integrativas (PICs) no SUS, desde homeopatia e acupuntura até reiki, imposição de mãos, terapia de cristais, constelação familiar, florais, aromaterapia, etc. O fato de apenas homeopatia e acupuntura serem reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) não parece abalar o Ministério da Saúde, ou a agência regulatória Anvisa.
O fato de homeopatia e acupuntura serem reconhecidas pelo CFM, no entanto, confere a estas práticas o status social – e não científico – de medicina de verdade, tanto que são ensinadas nas melhores universidades, nas faculdades de medicina, veterinária, saúde pública e enfermagem.
Na Índia, existem cinco sistemas que não são baseados em evidência, porém são reconhecidos como medicina. Estes são coletivamente conhecidos como AYUSH. Seus praticantes são registrados sob um conselho próprio, o conselho de medicina tradicional. São eles:
Ayurveda – sistema milenar que afirma que o corpo é feito de cinco elementos, chamado de pancha bhootas. Existem cinco tipos de deficiências (doshas): vatha (paralisia), pitta (bile) e kapha (muco). O sistema utiliza extratos de plantas, sais e alguns metais como ouro em forma coloidal. Existe um curso de graduação de cinco anos e meio chamado BAMS (Bacharel em Medicina e Cirurgia Ayurvédica).
Yoga e Naturopatia (combinados) – a prática de Yoga é combinada com a chamada Naturopatia, que alega ser um sistema de cura livre de medicamentos, baseado em dieta e nutrição. Há um curso de quatro anos e meio que confere o diploma de BNYS (Bacharel em Ciência da Naturopatia e Yoga).
Unani e Tibbi – são sistemas originários da Arábia e Grécia, que utilizam ervas e sais metálicos. Este curso é o BUMS (Bacharel em Medicina e Cirurgia Unani).
Siddha – um sistema de medicina praticada em Tamil Nadu, ao Sul da Índia, que já foi apontado como charlatanismo pela Suprema Corte da Índia! Apesar disso, existe um curso de cinco anos e meio chamado BSMS (Bacharel em Medicina e Cirurgia Siddha).
Homeopatia – sistema alemão criado por Samuel Hahnemann, baseado em diluições infinitesimais e pílulas de açúcar. Conta com um curso de cinco anos e meio para obter o título de BHMS (Bacharel em Medicina e Cirurgia Homeopática).
O mais curioso disso tudo é que mesmo Unani e Homeopatia, sendo respectivamente da Grécia e da Alemanha, são consideradas medicinas tradicionais!
Na Índia, os praticantes frequentam aulas com temas ensinados nas faculdades de medicina de verdade (Bacharel em Medicina e Cirurgia), que constituem a base da qualificação médica de qualquer um habilitado para praticar medicina baseada em evidências. Porém, a relevância destes estudos dentro dos cursos citados é altamente questionável: parece ser apenas uma tentativa de conferir credibilidade aos praticantes de medicina alternativa, e atribuir-lhes o status de médicos. Recentemente, estes profissionais começaram a pedir “cursos complementares” para poder também praticar medicina baseada em evidências.
A situação no Brasil é ligeiramente diferente, mas não menos preocupante: homeopatia e acupuntura são, como especialidades médicas reconhecidas, de fato praticadas por médicos. Isso confunde ainda mais o cidadão brasileiro. Afinal, se o governo apoia e oferece na rede pública, são práticas ensinadas nas melhores universidades, e praticadas por médicos, quem poderá dizer que não funcionam?
Bem, a ciência pode. E tem feito isso continuamente, o que levou ao fim do subsídio público para homeopatia na Austrália, Reino Unido e França, com Espanha e Alemanha seguindo pelo mesmo caminho, e os EUA regulamentando a homeopatia para garantir o direto do consumidor de saber que produtos homeopáticos não têm eficácia comprovada e não passam pelos mesmos testes que medicamentos comuns.
No Brasil, temos ainda um outro problema: médicos não se sentem confortáveis para “falar mal” dos colegas. Por causa desta “cortesia profissional”, poucos médicos brasileiros posicionam-se publicamente contra a homeopatia, e muitos apoiam a prática. Com este novo acordo internacional, a situação só tende a piorar.
Em situações como esta, nos perguntamos o que exatamente essa “cooperação bilateral” pretende atingir. Troca de “tecnologia”, onde o Brasil contribui com “cirurgias espirituais”, feitas por charlatães como o finado José Arigo, o cirurgião da faca enferrujada, e a Índia entra com especialistas em gaumutra (urina das vacas sagradas e supostamente nativas), que compõe uma panaceia para a cura de 440 doenças? O Brasil vai exportar para a Índia as técnicas cirúrgicas peculiares do “médium” João de Deus, preso e condenado, não por anos de prática irregular da medicina, mas por assédio sexual e estupro?
Não nos entenda mal, estamos muito felizes com a prisão de João de Deus, e aplaudimos a coragem das mulheres que o denunciaram, mas não podemos ignorar o fato de que as autoridades nunca se importaram de ver a população à mercê da faca – não higienizada – do curandeiro.
Se Brasil e Índia são líderes no mercado mundial de produção de açúcar, esta seria a razão para apoiar a homeopatia? E o uso de álcool nos preparados?
Novamente, perguntamo-nos por que Índia e Brasil decidiram promover um sistema alternativo de medicina chamado homeopatia, que não é reconhecido como medicina de verdade nem em seu país de origem, na Alemanha. E por que promovem esta prática ao mesmo tempo em que o resto do mundo a retira de seus sistemas de saúde e ensino, após evidência irrefutável de diversos trabalhos científicos, revisões sistemáticas e meta-análises, que mostram que a homeopatia não funciona?
Brasil e Índia têm muito em comum. Ambos são promissoras economias em desenvolvimento, com uma população diversa, lutando para se manter à altura dos ideais democráticos. Infelizmente, temos outra característica em comum: o fato de ambos países serem, atualmente, governados por líderes que não respeitam o conhecimento e as evidências cientificas em muitas de suas políticas públicas.
Como presidentes de organizações que promovem a ciência e o pensamento crítico e racional no Brasil e na Índia, lamentamos a decisão dos nossos governos de unirem forças para fazer, da promoção da pseudociência, pauta legítima de um acordo internacional.
Narendra Nayak, presidente, Federação das Associações Racionalistas da Índia ex-professor assistente de Bioquímica, Faculdade de Medicina Kasturba, Mangalore
Natalia Pasternak, presidente, Instituto Questão de Ciência, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP