A rainha das picaretagens

Apocalipse Now
5 out 2024
Autor
Nemesis

 

Na última vez que consultei, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), mantido pela Academia Brasileira de Letras, não continha a palavra “pós-dição”. O catálogo oficial dos vocábulos que “existem” no português brasileiro pula direto de “pós-dental” para “pós-diluviano”. O que é uma pena: de todas as modalidades de charlatanismo retórico, a pós-dição é, provavelmente, a mais eficaz, tradicional e disseminada.

E o que é, exatamente, uma pós-dição? Simples: dado um fato consumado – uma guerra, uma recessão econômica, um terremoto, um furacão, um atentado, um resultado eleitoral – busca-se, em algum texto, ideologia ou esquema teórico pré-existente, algo que possa ser lido (com a ajuda de doses generosas de liberdade interpretativa) como previsão do evento. Busca que, graças à amplitude da imaginação e à infinitude do engenho humano, sempre será bem-sucedida.

Desse sucesso predeterminado, deduz-se que: (a) o evento realmente foi previsto pelo texto, esquema, etc.; e (b) que o texto, esquema, etc., assim como a chave de interpretação utilizada no caso particular encontram-se, portanto, validados.

O que é, claro, uma conclusão falaciosa: teorias tornam-se dignas de crédito quando acertam em suas previsões claras e arriscadas sobre eventos futuros. Não quando se mostram vagamente aplicáveis, após algum contorcionismo retórico, a eventos passados amplamente conhecidos pelo público. Mesmo teorias sérias “sobre o passado” se conformam a essa regra: a evolução, por exemplo, permite prever que, no registro fóssil, jamais serão encontrados coelhos junto de dinossauros – e novos fósseis (configurando novos testes da previsão) são descobertos todos os dias.

Se esta definição soa abstrata demais, é só pensar em exemplos concretos de pós-dições que ficaram famosas, como associadas às centúrias de Nostradamus, o Terceiro Segredo de Fátima, ou o famigerado “Código da Bíblia” do jornalista Michael Drosnin – que, num livro de 1997, disse ter encontrado no texto bíblico uma série de previsões de eventos já ocorridos (o assassinato de John F. Kennedy, o ataque nuclear a Hiroshima, a conquista da Lua, entre outros).

O caso de Drosnin é especialmente didático porque, quando no livro seguinte (“O Código da Bíblia II”, de 2002) ele se meteu a usar a Bíblia para realmente tentar prever o futuro, o resultado foi patético: temos ali o assassinato de Yasser Arafat (que morreu de causas naturais em 2004) e uma guerra nuclear que ocorreria “dentro de uma década”.

 

Horóscopos políticos

Mas o que me fez decidir escrever sobre pós-dições, nesta semana, foi algo muito mais próximo da realidade brasileira: uma matéria publicada (sob a rubrica “notícia”) no site do Estadão em 28 de setembro. Título: “O que diz o mapa astral de Nunes, Boulos, Marçal e Tabata, candidatos à Prefeitura de São Paulo”.

Não vou esbravejar aqui contra o apagão das faculdades intelectuais que toma conta da imprensa nacional quando o assunto é horóscopo. Já ventilei minhas opiniões a respeito em outra oportunidade. Apenas me reservo o direito de sugerir que o Estadão Comprova, serviço de checagem de fatos do Grupo Estado, passe a verificar, além daquilo que os políticos dizem, o que os repórteres da casa afirmam (pelo menos, no caso de coisas como “a partir do mapa astral, é possível identificar traços marcantes das personalidades...”).

Depois das obviedades (o dia da eleição será “tenso”) e das ambiguidades irrelevantes de praxe – o eclipse solar da última quarta-feira terá “impacto significativo” na candidatura de Ricardo Nunes, mas “o desfecho desse efeito ainda é incerto, podendo trazer resultados positivos ou negativos”, o que é um bom modo de usar um monte de palavras para não dizer nada –, a astróloga consultada pela reportagem mergulha num intenso trabalho de pós-dição.

 

A descoberta do óbvio

Como os candidatos têm perfis públicos muito bem conhecidos e cada mapa astral contém dezenas (potencialmente, centenas) de elementos interpretáveis, é brincadeira de criança ajustar a leitura aos fatos: dado o perfil sobejamente conhecido, “descobrir” no mapa configurações que o “preveem” é um exercício que nem requer muito esforço. Como escrevi em outro artigo, a leitura de mapas astrais funciona à perfeição – quando se olha pelo retrovisor: dado um fato consumado, sempre é possível encontrar uma conjunção astral que teria permitido prevê-lo.

O ativismo social de Guilherme Boulos é, dessa forma, “explicado” pela presença do asteroide Quíron em certa região de seu céu natal. Se o mesmo candidato fosse um direitista ultraconservador, o asteroide significaria outra coisa – ou seria solenemente ignorado.

Tentativas de fazer o que seria honesto – a partir do mapa, deduzir a personalidade de um desconhecido; ou, a partir da personalidade, reconstruir o mapa de alguém cujos dados natais estão ocultos – em geral fracassam de modo espetacular. Em se tratando de políticos famosos, há dois exemplos históricos interessantes.

Um é o mapa astral do líder soviético Vladimir Lênin, desenhado e interpretado por um astrólogo britânico em 1971. Nessa altura, Lênin já estava morto há quase 50 anos, e sua vida era muito bem conhecida. A interpretação, portanto, é precisa e exata. Mas...

Citando o livro “Recent Advancements in Natal Astrology”, de 1977: “os dados de nascimento apresentados estavam corretos, mas o mapa astral usado correspondia a uma data 12 dias antes; os ângulos estão, em geral, corretos, mas os signos, casas e aspectos dos planetas mais rápidos estão quase todos incorretos. Como resultado, cerca de metade dos significantes estão errados, e a despeito disso correspondem à personalidade e aos eventos perfeitamente”. Como isso é possível? Simples: dada uma biografia bem estabelecida, qualquer mapa pode ser interpretado de forma a corresponder a ela. Pós-dição em estado puro.

O segundo exemplo é ainda mais pungente: em 1959, o astrólogo escocês Albert Norris publicou uma biografia astrológica de Winston Churchill, um livro de mais de 300 páginas, incluindo um “suplemento científico” de quase oitenta, resultado de anos de pesquisa intensa. Na época da publicação, o horário de nascimento de Churchill era desconhecido, e Norris usa os fatos da vida e da personalidade do líder britânico para “deduzir” a hora, um dado com graves implicações astrológicas.

Quando, anos mais tarde, a hora de nascimento correta foi descoberta, viu-se que Norris havia errado, e que o mapa astral que tinha construído para Churchill falhava em pontos cruciais como lua e ascendente. No entanto, assim como o mapa equivocado de Lênin, servia perfeitamente ao personagem. E pelas mesmas razões que o mapa errado de Lênin descrevia Lênin perfeitamente, e que os mapas dos candidatos a prefeito de São Paulo trazem “revelações” como a de que Tábata Amaral tem “sensibilidade e autocontrole”.

Porque é muito fácil ser um gênio do arco-e-flecha se você dispara as setas primeiro e pinta os alvos depois.

 

Repercussão geral

Pseudociências óbvias (ou, para o jornalismo brasileiro, talvez nem tanto) como a astrologia, e picaretagens gritantes como o “código da Bíblia” são bons exemplos didáticos da retórica da pós-dição, mas uma vez que tenhamos aprendido a reconhecê-la, é importante – ainda que doloroso – notar que ela está em toda parte, inclusive (e principalmente) em discursos sancionados pelo senso-comum, pela intelectualidade, pela mídia, pela academia.

Os famosos “estudos de caso” de Sigmund Freud, bem como suas interpretações de sonhos e de atos falhos são, todos, obras de pós-dição (análises brilhantes nesse sentido podem ser encontradas em livros como “Maelzel’s Chess Player”, de Robert Wilcocks, e “Doing What Comes Naturally”, de Stanley Fish); cada vez que um comentarista político, acadêmico ou influencer diz, ex post facto, que o marxismo, o liberalismo, o cristianismo, a teoria crítica disso ou daquilo “previu exatamente” ou “explica perfeitamente” algum desdobramento social, econômico ou cultural, é comum perceber o aroma marcante da pós-dição no ar.

É fundamental manter em vista que, dado um fato consumado, com alguma imaginação qualquer coisa pode ser apresentada como “explicação” ou “previsão”. O mito grego de Nêmesis (na imagem acima, perseguindo um assassino), distribuidora do castigo dos deuses, permite prever que, depois da soberba, vem a queda. Mas a infinidade de exemplos históricos de grandes orgulhosos que quebraram a cara não prova que Nêmesis existe, nem que qualquer previsão que se faça, pressupondo que a deusa realmente anda por aí, vai ser válida.

Para serem levadas a sério, alegações de que algo “foi previsto” ou “explicado” – e de que a “previsão” ou “explicação” validam alguma teoria ou ideologia – devem produzir mais do que plausibilidade retórica, frisson intelectual e conforto emocional.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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