Astrologia como placebo social

Apocalipse Now
10 ago 2024
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Constelação do Serpentário, parte do zodíaco

 

Faz uns dias, o jornal Valor Econômico publicou uma longa matéria (atrás de paywall) sobre a suposta distinção entre a astrologia dita “séria” (aquela que envolve o cálculo e a interpretação de cartais natais individualizadas) e a, digamos, “de entretenimento”, que se encontra em revistas populares e colunas diárias de horóscopo. Fui um dos entrevistados, e tentei apresentar alguns resultados experimentais que mostram que a astrologia não se sustenta empiricamente, como o estudo da compatibilidade de casais da Inglaterra.

Algo que me chamou a atenção no texto do Valor – e que chama atenção porque é algo que aparece com frequência nas discussões sobre astrologia que se pretendem sóbrias e sérias – é a equivocação no uso do termo: a palavra “astrologia” de repente muda de sentido, sem que o leitor seja avisado.

Numa linha, “astrologia” é o sistema doutrinário baseado na crença de que a posição de certos corpos celestes, em certos momentos, permite prever eventos históricos e biográficos; na linha seguinte, é o conjunto de impactos (cultural, psicológico, artístico, social etc.) que essa crença tem. O segundo é obviamente um objeto de estudo mais do que legítimo, enquanto o primeiro é uma superstição a que se dá ares científicos – uma pseudociência, portanto.

O vaivém entre um sentido e outro faz com que a crítica (mais do que pertinente) à superstição astrológica às vezes soe como crítica (injusta) à pesquisa histórica, psicológica e cultural em torno do assunto. Como escrevi na introdução de meu “Livro da Astrologia”, estudar mitologia grega, ou reconhecer a importância desses mitos na arte e na literatura, é algo completamente diferente de acreditar que, de fato, relâmpagos são mesmo lanças forjadas por Hefesto nas chamas do Etna e arremessadas por Zeus do alto do Olimpo.

 

Barnum

A distinção entre a astrologia “séria” e a “de entretenimento” é falsa porque, assim como tanto o mágico solitário de boteco quanto o grande espetáculo de ilusionismo de Las Vegas usam os mesmíssimos princípios gerais de distração e desorientação, apenas aplicando-os por diferentes meios e em escalas diversas, as duas formas de ler o destino nas estrelas se baseiam no mesmo par de fenômenos psicológicos: o efeito Barnum e o viés de confirmação.

“Efeito Barnum” (às vezes também chamado de “validação subjetiva”) deve o nome ao empresário circense P.T. Barnum, que teria dito que em seus espetáculos “sempre há alguma coisa para cada um” (ele também teria dito que “um trouxa nasce a cada minuto”). O efeito se materializa por meio de “afirmações Barnum”, frases vagas e genéricas cujas lacunas de sentido acabam sendo preenchidas, de modo quase inconsciente, pelo leitor/ouvinte, gerando a impressão de que consistem em insights precisos. O exemplo clássico de um “texto Barnum” é este:

Você sente uma grande necessidade de ser apreciado, admirado. Você tem uma tendência à autocrítica. Você tem muitos talentos que ainda não conseguiu aproveitar. Embora tenha algumas fraquezas de personalidade, você geralmente é capaz de compensá-las. Sua vida sexual já apresentou problemas. Disciplinado e autocontrolado por fora, você tende a ser preocupado e inseguro por dentro. Às vezes você tem sérias dúvidas sobre se tomou a decisão correta ou fez a coisa certa. Você prefere um pouco de mudança e variedade na vida, e fica insatisfeito quando cercado por restrições e limitações. Você se orgulha de ser um pensador independente, e não aceita as declarações dos outros sem provas adequadas. Você descobriu que não é sensato se abrir demais com os outros. Às vezes você é extrovertido, afável e sociável, enquanto em outras vezes é introvertido, cauteloso e reservado. Algumas de suas aspirações tendem a ser bastante irrealistas. Sentir-se seguro é um dos seus principais objetivos na vida.

 

Testado pela primeira vez pelo psicólogo Bertram Forer em 1948, em sua classe de estudantes universitários – cada um deles havia recebido esse texto como sendo o resultado particular, individualizado,  de um “teste de personalidade” –, o parágrafo acima foi avaliado pelos alunos como de alta precisão, com nota média de 4,25 (numa escala em que a pontuação máxima era cinco). Vale repetir que todos haviam recebido exatamente o mesmo texto. Todas as frases presentes no parágrafo foram tiradas, por Forer, de livros de astrologia.

O teste foi repetido várias vezes ao longo das décadas, em diferentes grupos e por diferentes pesquisadores, sempre com resultados consistentes: “afirmações Barnum”, vazias e genéricas, são aceitas como precisas e personalizadas pela maioria das pessoas que não têm familiaridade com o fenômeno.

Mas nem toda alegação astrológica é uma afirmação Barnum, e aí entra o segundo ingrediente do verniz de credibilidade da astrologia: o viés de confirmação, que é a tendência humana de aceitar as afirmações que confirmam nossos preconceitos e crenças, e descartar (ou reinterpretar) as que os contradizem. Um mapa astral contém dezenas de fatores interpretáveis – posição dos planetas, ângulos, aspectos, casas e as respectivas interações –, o que gera uma enorme riqueza de afirmações. O viés de confirmação agarra-se às que “fazem sentido”, ignora as demais e desculpa eventuais contradições.

Esse viés também ajuda a astrologia a funcionar “perfeitamente” – quando se olha pelo retrovisor: dado um fato consumado, sempre é possível encontrar uma conjunção astral que teria permitido prevê-lo. (Se ele realmente foi previsto, é outra história: em janeiro de 1914, apenas sete meses antes do início da 1ª Guerra Mundial, Alan Leo, provavelmente o mais importante astrólogo da primeira metade do século 20, previa um ano de paz para a Europa).

Um estudo publicado em 1991 testou a hipótese de que alguns fãs de astrologia seriam mais influenciados pelo efeito Barnum, outros mais pelo viés de confirmação, mas acabou concluindo que o efeito Barnum é o predominante.

 

Feminino?

Esse trabalho de 1991 foi pequeno (apenas 52 voluntários), mas os autores notaram uma acentuada assimetria de gênero: todos os sete participantes que declararam uma “forte” crença em astrologia eram mulheres, e dos 31 crentes “moderados”, 27 (87%) eram do sexo feminino.

Amostras maiores e mais recentes sugerem que a assimetria é real, ainda que não tão intensa: pesquisa Ipsos conduzida nos Estados Unidos em  2019 indicava que 57% das mulheres que sabem seu signo solar identificam-se com ele, ante 48% dos homens. Também há um impacto perceptível de faixa etária: dos respondentes de 18 a 34 anos, 64% afirmaram ter alguma identificação com o signo, contra 48% dos maiores de 55 anos.

A percepção de que são mulheres adultas e relativamente jovens – principalmente, as nascidas entre 1980 e 2000 – que movimentam o mercado atual de astrologia, seja na modalidade “séria” ou “de entretenimento”, é preponderante na mídia e se reflete em modelos de negócio: Co-Star, um aplicativo de astrologia lançado em 2017, já havia sido baixado mais de três milhões de vezes até 2019, e 87% de seus usuários na época eram mulheres, com idade média de 24 anos.

(Números mais recentes põem o total de usuários registrados do aplicativo em 30 milhões; só nos últimos 30 dias, o aplicativo foi baixado mais de 300 mil vezes no mundo. Em 2021, a companhia levantou um capital de U$ 15 milhões, e ano passado lançou seu serviço de inteligência artificial.)

Esse aparente fascínio produziu até mesmo algumas manifestações de apoio supostamente “feministas” à astrologia – que só teria “deixado de ser levada a sério” porque mulheres passaram a se interessar por ela. O que deve soar estranho para o filósofo romano Cícero, que já detonava a arte, com engenhosos argumentos – por exemplo, por que gêmeos têm destinos diferentes? –, há mais de dois mil anos.

Uma vez confirmada a diferença forte no nível interesse e envolvimento dos sexos com os astros – que é inferida a partir de observações pontuais e pesquisas limitadas, mas que ainda não foi, até onde sei, devidamente testada – será curioso investigar a causa. Testes como o de Forer mostram que, na média, todos os seres humanos são igualmente vulneráveis a afirmações Barnum. Por que as feitas num contexto astrológico seriam mais ou menos sedutoras de acordo com linhas de gênero?

Condições culturais e sociais talvez ofereçam a resposta. Culturalmente, há o persistente estereótipo do esotérico feminino – a mulher sintonizada com as energias do Cosmo e com realidades intuitivas que se encontram além da “mera” lógica e fora do alcance do método científico.

Esse estereótipo tende a ser apresentado como algo positivo, mas há quem diga (e eu concordo) que se trata de mais uma forma de opressão – apenas uma tentativa de pintar, em tons leves e agradáveis, o clichê vitoriano, odioso e condescendente, da suposta inevitável, inescapável e irredutível irracionalidade feminina.

Socialmente, há resultados de pesquisa indicando que crenças supersticiosas se tornam atraentes para pessoas confrontadas com problemas insolúveis, situações sobre as quais não têm controle; e que as astrologia pode ser especialmente útil em promover autovalidação – fazer a pessoa se sentir mais confiante e confortável consigo mesma.  

“Parece especialmente plausível que a informação astrológica, embora ilusória, ajude o indivíduo a compreender tanto a si mesmo quanto ao mundo”, diz o trabalho publicado em 1998. “Pessoas em situações estressantes podem sentir que a astrologia as ajuda a entender o que está acontecendo e por quê (...) a crença na astrologia pode ter a função de um amortecedor (...) que serve para proteger o indivíduo da ansiedade”.

Assim, a astrologia seria uma opção de placebo para as tensões trazidas pela tripla jornada, pelas cobranças paradoxais e simultâneas por “doçura” e “assertividade” e outras pressões que pesam sobre a mulher contemporânea. O problema é que placebos, em geral, limitam-se a mascarar sintomas sem realmente tratar a causa – muitas vezes, apenas distarem o paciente enquanto a doença de fundo se agrava.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

 

 

 

 

 

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