A primeira matéria jornalística a chamar atenção para a crescente popularidade da astrologia na sociedade contemporânea foi publicada nos Estados Unidos, pela revista Playboy, em sua edição de março de 1970. A mais recente, pela Folha de S. Paulo, na semana passada. Alguém poderia achar curioso uma notícia que continua a ser notícia depois de 50 anos, mas o fato é que já faz quase uma década que a Folha dá um jeito de lembrar seus leitores, pelo menos uma vez ao ano, praticamente todo ano, que astrologia é coisa de jovem e de gente bonita, legal e descolada.
Que é, em linhas gerais, o que a Playboy fez em 1970, mas lá pelo menos havia um toque de ironia, com o repórter notando que dois astrólogos haviam previsto desfechos opostos para os problemas que o afligiam – tanto financeiros quanto sexuais (era a Playboy, afinal).
Ali também lemos declaração – atribuída a um jornalista científico ganhador do prêmio Pulitzer – de que a astrologia é “totalmente consistente com a química moderna”, porque “as propriedades das substâncias são dadas em termos da configuração arquitetônica dos átomos dentro das moléculas”, o que supostamente emprestaria alguma plausibilidade à ideia de que a configuração dos astros no céu pode... enfim.
Existe um certo brilhantismo retórico na escolha dos adjetivos, o “arquitetônica” aí é genial, mas fica claro que o sujeito ganhou o Pulitzer mais pela qualidade literária de seus textos do que pela capacidade de entender (e comunicar) ciência. A coisa toda faz tanto sentido quanto dizer que um jogo de xadrez pode substituir o motor de um carro, porque os dois dependem da configuração (“arquitetônica”) das peças.
Gêmeos
Outra notícia reciclada periodicamente pelos jornais é a da “adesão” do mundo nos negócios à linguagem dos astros. Encontramos o assunto no Estadão em 1993, quando a prática aparentemente estava “invadindo” os escritórios de recursos humanos, e em 2016 a Folha dava uma mãozinha para ajudar no marketing de serviços de “astrologia financeira” vendidos a empresas desesperadas com a crise econômica.
A fase de amor declarado pela astrologia começa, no Estadão, cerca de uma década antes da que aflige a Folha. O bravo matutino promove assiduamente o astrólogo da casa como figura eminente e de grande envergadura intelectual (exemplos, aqui e aqui) e tratou com doçura e simpatia o lançamento, em 2006, de um curso de astrologia pelo já extinto Núcleo de Estudos de Fenômenos Paranormais da UnB.
Para ser justo, é preciso registrar que o mesmo Estadão noticiou (em pé de página, sem muito destaque e com um texto pró-astrologia, mas enfim) o estudo de 2003 com “gêmeos astrológicos” – pessoas nascidas na mesma data, na mesma cidade e com uma diferença de menos de cinco minutos entre si, que portanto têm mapas astrais quase idênticos – demonstrando que não existe nenhuma coincidência notável em termos de personalidade ou destino entre elas. Para completar, o Estadão talvez tenha sido o primeiro veículo da grande imprensa brasileira a citar Mercúrio retrógrado neste século, numa manchete de alto de página: a matéria tratava, imagine só, da eleição presidencial americana.
Manifesto
Quando a popularidade da astrologia entre o que deveria ser a elite mais bem-informada da população ainda era alguma novidade, lá na década de 1970, a notícia causou alarme na comunidade científica (cientistas vivem sendo “alarmados”, de tempos em tempos, pelos lapsos cognitivos do público e, principalmente, da elite econômica e intelectual: vinte anos antes da astrologia, houve Velikosvsky).
Uma das reações foi um manifesto, assinado por 186 intelectuais, entre cientistas e filósofos, condenando a astrologia e pedindo à imprensa que parasse de tratar o assunto como se fosse sério (pobres coitados). O manifesto, publicado em 1975, depois foi expandido num livreto de 60 páginas, “Objections to Astrology”, agora com 192 assinaturas, incluindo 19 nobelistas.
Esse manifesto é uma espécie de artefato arqueológico da comunicação da ciência e, como todo artefato importante, é até hoje alvo de escrutínio e interpretações diversas. Na época, Carl Sagan (1934-1996) recusou-se a assiná-lo, e o filósofo Paul Feyerabend (1924-1994) escreveu uma réplica – em minha opinião, um dos textos mais escrotinhos da história da filosofia – que parece defender a viabilidade das ideias astrológicas. Há uma boa análise do caso neste blog, e também no livro “Philosophy of Science and the Occult”, editado por Patrick Grim (tanto na primeira quanto na segunda edição).
A recusa de Sagan, em especial, volta e meia é apresentada como um reconhecimento, pelo maior popularizador da ciência do século passado, de que combater pseudociências não vale a pena, de que chamar bobagens de bobagens é uma espécie de erro tático na disputa por corações e mentes. De que atacar a astrologia é coisa de gente de “mente fechada”.
Essa leitura viceja a despeito do fato de a justificativa de Sagan para sua recusa basear-se no que ele via como o tom autoritário do manifesto e em seus argumentos fracos. E de ele ter dedicado boa parte do terceiro capítulo de seu livro Cosmos a bater na astrologia (“um assalto do misticismo e da superstição”, palavras dele), além de ter se referido à astrologia como “fraude”, sem meias palavras, durante um evento público.
Sagan nunca disse que criticar bobagens, mesmo com o uso de termos duros (“fraude”, “superstição”), é sempre errado ou necessariamente contraproducente. Ele apenas ofereceu a ponderação de que há formas de fóruns mais ou menos adequados para tanto. Ignorar essa nuance fundamental representa, além de uma distorção, um desserviço – à memória de Carl Sagan, em particular, e à comunicação pública da ciência, em geral.
Teste
O incômodo com o embasamento inadequado do manifesto levou outros cientistas a conduzir testes controlados da astrologia. Houve um falso positivo que ficou famoso.
Um dos estudos inspirados pela polêmica buscou uma associação entre os resultados de um teste de personalidade de introversão/extroversão e o signo solar dos voluntários, e encontrou um resultado estatisticamente significativo: embora o efeito fosse muito pequeno, havia de fato um excesso de introvertidos em signos introvertidos e de extrovertidos em signos extrovertidos.
Uma revista astrológica saudou o trabalho como “possivelmente a descoberta mais importante sobre astrologia do século”, mas uma análise mais aprofundada dos dados, seguida de tentativas de replicação com controles adequados, mostrou que a distribuição não era causada pelo signo, mas pelo que as pessoas sabiam sobre seus signos.
Em outras palavras, pessoas versadas em astrologia tendiam a responder ao teste de personalidade de um modo compatível com o estereótipo astrológico correspondente. Quando o estudo foi replicado em voluntários ignorantes quanto às expectativas astrológicas sobre qual a personalidade que deveriam ter, o efeito desaparecia por completo. Esse anticlímax é descrito em detalhes no livro “Astrology: Science or Superstition?”, de Hans Eysenck (1919-1997) e David Nias.
Além de sugerir que, assim como Papai Noel e amor à primeira vista, a astrologia de certa forma “é verdade para quem acredita”, os estudos descritos por Eysenck e Nias somam-se ao trabalho com gêmeos astrológicos e a inúmeros outros que, nas últimas cinco décadas, estenderam à astrologia todo o benefício da dúvida e voltaram de mãos abanando.
O que fica em aberto é por que o jornalismo, que tem o dever de informar o público, não informa isso quando resolve requentar, pela enésima vez, a pauta “original” levantada pela Playboy alguns meses antes de o Brasil conquistar a Jules Rimet no México.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)