As pseudociências do amor

Apocalipse Now
10 jun 2023
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Love

Superstições organizadas e pseudociências prosperam explorando incertezas e inseguranças. Há as que parasitam o medo da morte, as que se alimentam das preocupações com saúde, as que oferecem proteção contra o fracasso (profissional, financeiro, escolar). E há, claro, as que prometem, quando não sucesso garantido, ao menos uma forma de entender o que se passa no universo do amor, do sexo e do romance. Esta última promessa tem recebido pouca atenção aqui na Revista Questão de Ciência, mas que oportunidade melhor para tratar disso do que a temporada do Dia dos Namorados?  

O esquema mais popular para quem busca entender e enquadrar os dramas do coração é provavelmente o da astrologia. O papel dos astros na vida romântica é consagrado até pela poesia: no prólogo da peça “Romeu e Julieta”, William Shakespeare (1564-1616) refere-se ao trágico casal como “namorados traídos pelas estrelas”.

No mundo moderno, compatibilidades e incompatibilidades astrais são invocadas para explicar encontros e desencontros, e o mercado das sinastrias (análises astrológicas dos pontos fortes e fracos do casal) vive aquecido. Há preços a partir de R$ 20 (online, por algoritmo) e até R$ 500 ou mais, se envolver entrevista presencial com um astrólogo experiente.

 

Não está nas estrelas

A astrologia é tão popular quanto inútil: segundo o livro “Dataclysm”, de Christian Rudder, criador do serviço de namoro online OkCupid, que agrega mais de 3 milhões de perfis individuais e cujo algoritmo busca prever a chance de “match” entre duas pessoas a partir das respostas dadas a um extenso questionário, signo zodiacal é uma característica que se destaca por “não ter efeito nenhum” sobre as chances de sucesso de uma relação.

O mesmo desfecho aparece em estudo conduzido pelo cientista social David Voas, cujos resultados foram publicados na revista Skeptical Inquirer em 2008. Usando dados do censo da Inglaterra e País de Gales, Voas analisou as datas de nascimento de mais de dez milhões de casais, e não encontrou nada que confirmasse a noção astrológica de signos compatíveis: não há mais casais formados, por exemplo, por capricornianos e virginianos (um par “compatível”) do que por geminianos e escorpianos (supostamente “incompatível”).

Há quem critique estudos de data de nascimento por levarem em conta apenas o signo solar, e não a complexidade plena do mapa astral. Mas em um trabalho extenso como o de Voas, envolvendo mais de 20 milhões de pessoas, se houvesse alguma verdade na astrologia do amor deveria ser possível detectar algum indício disso, sob a forma de um excesso significativo (ainda que pequeno) de casais formados por pares compatíveis, ou um déficit de incompatíveis. Mas não é isso que se vê.

 

Sincronicidade

Nem mesmo o pai da chamada psicologia analítica, Carl Gustav Jung (1875-1961), geralmente visto como simpático a ideias esotéricas em geral, conseguiu encontrar um efeito exercido pela astrologia sobre os relacionamentos amorosos, num estudo que aparece em seus escritos obre sincronicidade. Jung testou não apenas signos solares, mas também posições da Lua, de Marte e de Vênus.

O psicólogo vinha desenvolvendo o conceito de “sincronicidade”, a ideia de que “coincidências significativas” poderiam revelar a existência de um tipo de conexão entre eventos independente das leis comuns de causa e efeito. A hipótese é altamente problemática por uma série de motivos (para começo de conversa, ser “significativo” não é uma propriedade objetiva das coisas, mas algo que depende do contexto e do estado subjetivo do observador, e a Lei dos Números Muito Grandes garante que coincidências fantásticas inevitavelmente acontecerão... só por coincidência).

Mas, enfim. Para tentar gerar uma prova empírica de sincronicidade, Jung foi buscar a astrologia. Coletou três conjuntos de horóscopos de casais casados – um contendo 180 pares, outro 220 e o último, 83 – e submeteu-os a uma série de análises estatísticas, elaboradas por um amigo matemático, em busca de algum sinal da predominância de aspectos astrológicos favoráveis à união amorosa, envolvendo o Sol, a Lua, os planetas Vênus e Marte e as posições ascendente e descendente do mapa astral.

Além de estudar os casais casados, usou os horóscopos para formar pares ao acaso, na expectativa de que os aspectos astrológicos das duplas formadas aleatoriamente se distinguissem dos apresentados pelos casais reais.

O resultado? Quanto mais horóscopos eram adicionados, mais as frequências dos aspectos encontrados se aproximavam das esperadas por pura chance. O que constitui confirmação prática de um princípio básico da teoria das probabilidades: quanto maior o número de eventos analisados, mais as frequências observadas na amostra se aproximam das frequências do mundo real. Nesse caso, as frequências do mundo real são as do mero acaso. Pelo mesmo motivo, quando fazemos vários lances de cara-e-coroa com uma moeda honesta, é comum que surjam sequências “estranhas”, com diversas caras ou coroas aparecendo seguidamente, mas à medida que mais lances são feitos, mais a proporção cumulativa se aproxima de 50%.

Em outras palavras: Jung demonstrou que os aspectos astrológicos são irrelevantes para o matrimônio. “Nossa investigação mostrou que não apenas os valores de frequência se aproximam da média com o aumento do número de casais, mas que quaisquer pareamentos ao acaso produzem proporções estatísticas similares”, escreveu ele no segundo capítulo de seu ensaio “Sincronicidade: Um Princípio de Conexão Acausal”. “No caso de números grandes, as diferenças entre os valores de frequência dos aspectos favoráveis ao casamento, entre casais casados e pares não casados, desaparece por completo”.

 

Artista da cantada

Astrologia, no entanto, é apenas a primeira camada das bobagens sobre relacionamento e, mesmo mantendo em mente que não existe doutrina irracional inofensiva, talvez seja a mais tolerável, já que pelo menos não é explicitamente misógina, a despeito de promover estereótipos espinhosos. Há pseudociências de relacionamento que enquadram toda a questão do romance e da sedução num esquema predador-presa, ou conquistador-conquistado (para não dizer agressor-vítima).

Essas picaretagens costumam ter como público-alvo o masculino. Algumas pesquisas de opinião internacionais sugerem que, por razões ainda não muito claras, homens heterossexuais tendem a preferir pseudociências “com mais cara de ciência”, enquanto gays e mulheres mostram-se abertos a sistemas (como o astrológico) que apelam diretamente ao misticismo e à intuição.

Isso talvez explique por que os promotores do mercado PUA (“pick-up artist”, algo como “artista da cantada”), voltado ao macho frustrado celibatário involuntário, fazem questão de confeitar seu discurso com um jargão que, aos desavisados, soa mezzo biologia, mezzo engenharia (“indicadores de interesse”, “testes de conformidade”, “escalada kino”, “temperatura de compra”).

 

Canja de galinha

Técnicas e princípios teóricos de PUA são pouco mais do que clichês misóginos de filmes de adolescente dos anos 1980 – algo como a série “Porky’s” convertida em manual de comportamento – que se tentam justificar apelando para princípios supostamente “psicológicos” e “biológicos” que têm tanto a ver com psicologia e biologia de verdade quanto o misticismo quântico tem a ver com a física real, misturados a contribuições da programação neurolinguística, uma pseudociência popular no mundo corporativo.

A ideia que se vende é a de que a construção de um envolvimento romântico e/ou sexual é uma espécie de videogame, a mulher é o “final boss” e o PUA tem acesso aos “cheat codes”. A mentalidade de “conquista” é obviamente machista, e muitas das técnicas ensinadas requerem algum grau de desonestidade para serem aplicadas e beiram a agressão emocional (como o infame “negging”), tudo na tentativa de produzir manipulação psicológica. O que torna a coisa toda uma calhordice sem tamanho, para começo de conversa, mas isso não impede muita gente de se perguntar se, afinal, funciona.

Desconheço estudos randomizados comparando técnicas de PUA a interação humana sincera e cordial (e duvido que algum comitê de ética aprovasse algo assim), mas suspeito que há muita gente que acha que funciona por razões análogas às que levam muita gente a achar que homeopatia ou canja de galinha funcionam contra, digamos, resfriados.

Do mesmo modo que é normal e natural que resfriados passem, independentemente do que se faça a respeito deles, é normal e natural que algumas interações humanas levem à intimidade, não importa como tenham começado. Memória seletiva leva o PUA a contar os sucessos, descontar os fracassos, e aí temos a origem de uma forte convicção pessoal – forte e totalmente errada.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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