Você sonha com a morte de um parente, com uma promoção no trabalho, e, no dia seguinte (ou mesmo ao longo da semana), a coisa sonhada se realiza. Experiências assim podem ter um impacto emocional profundo! Mas, afinal: significam alguma coisa?
Se por “alguma coisa” entende-se transmissão de pensamento ou o poder de ver o futuro, a resposta é não. Por dois motivos.
Primeiro, não parece haver espaço, nas leis conhecidas da Física, para forças capazes de transferir pensamentos diretamente de um cérebro a outro, ou de projetar no cérebro humano informação vinda do futuro. (Para quem acha que as leis conhecidas da Física são pouca coisa, lembre-se de que são elas que permitem que sondas pousem em Marte, que o GPS descubra onde você está e que a tela de seu computador funcione).
Segundo, há uma explicação muito mais simples, que dá conta desses fenômenos sem a necessidade de apelar para a ficção científica: a Lei dos Números Muito Grandes. Ela garante que, dado um número vasto o suficiente de oportunidades, até as coisas mais improváveis acabam acontecendo, por puro acaso.
Loterias são um exemplo clássico: a chance de alguém acertar as seis dezenas da Mega Sena, por exemplo, é menor que 1 em 50 milhões (coisa muito improvável). Mas, de vez em quando, alguém ganha! A chance de haver um ganhador cresce com o aumento da quantidade de apostas. Quanto maior o número de apostadores, mais oportunidades de o prêmio sair.
Um efeito indireto, e aparentemente paradoxal, da Lei dos Grandes Números é tornar eventos que são muito improváveis na escala do indivíduo (você ganhar na Mega Sena) quase inevitáveis, em termos populacionais (alguém, em algum momento, ganhar o prêmio).
Mas, como aplicar essa Lei a coisas como sonhos premonitórios? As probabilidades da Mega Sena são dadas e fixas. Sonhos são outra coisa, é verdade – mas, ainda assim, podemos fazer algumas estimativas.
De acordo com algumas pesquisas, as pessoas têm de três a cinco (ou quatro a sete) sonhos por noite. O Brasil tem cerca de 200 milhões de habitantes. Isso dá, ficando na faixa inferior, de três a cinco, de 600 milhões a um bilhão de sonhos, toda noite. Mas estima-se que 95% dos sonhos sejam esquecidos logo ao acordar – ainda assim, restam de 30 milhões a 50 milhões de sonhos lembrados pelos sonhadores, logo na manhã seguinte.
Agora, precisamos avaliar qual a probabilidade de um sonho ser interpretado como premonitório. É preciso notar que existe alguma flexibilidade aqui.
Talvez uma pessoa que sonhe com um passarinho machucado, na mesma semana em que cai um avião, venha a acreditar que o sonho foi uma profecia, por exemplo. Ou uma pessoa sonhar com um parente saindo de férias e algo – que metaforicamente pode ser interpretado como “férias” – acontecer com ele: morrer, ganhar na loteria, divorciar-se... Nessas circunstâncias, imagino que estimar uma taxa de 1% de sonhos supostamente premonitórios não seja um chute muito alto.
Mas sejamos mais estritos e vamos abolir as interpretações muito elásticas. Fixemos a probabilidade em 0,0001%, ou uma chance em 1 milhão, que o matemático francês Émile Borel certa vez definiu como a probabilidade dos eventos efetivamente impossíveis na escala humana.
Com isso, Borel queria dizer que, confrontado com uma probabilidade de apenas um em 1 milhão ou menos, seria mais razoável, do ponto de vista prático, tratar a ocorrência como impossível: seria irracional esperar que o evento se materializasse, da mesma forma que é irracional contar com a Mega Sena da virada para pagar as contas das festas de fim de ano.
Pois bem. Se há, a cada noite, de 30 milhões a 50 milhões de sonhos que serão lembrados pelos sonhadores no dia seguinte, e se 1 sonho em 1 milhão acaba parecendo “profético” por puro acaso, então podemos esperar de 30 a 50 sonhos “premonitórios” no Brasil – todos os dias. O que é efetivamente impossível, para um indivíduo, acaba tornando-se inevitável na escala da população como um todo.
Isso também é parte da explicação para coincidências aparentemente “fantásticas”, como quando um amigo em quem estamos pensando resolve nos ligar na mesma hora. A outra parte da explicação para essas ocorrências, caso alguém esteja se perguntando, é a subjetividade do foco da atenção: se o computador de uma repartição pifa quando eu apareço para ser atendido, é só mais um dia no serviço público. Agora, se o computador da delegacia pifa quando o João de Deus chega, todo mundo fica uóóóó.
Alguém, por acaso, parou para contar quantas outras delegacias tiveram defeito elétrico no mesmo dia?
Esta é uma regra boa para manter em mente: o quase impossível tende a se tornar provável, ou até inevitável, à medida que as oportunidades se acumulam.
Como toda regra, no entanto, ela pode ser levada longe demais: uma interpretação tragicamente equivocada desse princípio é conhecida como falácia do apostador. O nome vem da principal vítima desse tropeção do raciocínio, apostadores em jogos de azar.
O jogador equivocado presume que, já que todo resultado cedo ou tarde aparece, basta jogar tempo suficiente para, uma hora, acabar ganhando. Outra versão da falácia é a de que certos resultados “atraem” resultados complementares: uma roleta que dá muitos números pares estaria “devendo” uma sequência de ímpares, uma onda de azar “tem de” dar lugar a uma de sorte.
O problema com a falácia é que “tempo suficiente” – para sair o resultado desejado, para a roleta enfim gerar uma série de resultados ímpares, para o azar virar sorte – pode ser muito tempo mesmo. Tempo mais do que suficiente para o apostador perder tudo o que tem, por exemplo. Se não fosse assim, os cassinos estariam todos falidos.
A lição final é meio complicada: por um lado, não devemos nos espantar quando o que nos parece improvável, na escala individual, acontece com alguém, no contexto de uma grande população ou de um grande número de tentativas. Por outro, eventos improváveis na escala individual são mesmo improváveis, e é um erro e uma irresponsabilidade contar com eles.
Então, não se espante se alguns de seus sonhos acabarem sendo “premonitórios”. Mas não aposte sua vida neles!
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência