Há um ano nascia o primeiro instituto brasileiro criado para a promoção do pensamento crítico e racional, com a missão de garantir que políticas públicas sejam baseadas em evidências científicas. O Instituto Questão de Ciência tenta revitalizar o movimento cético e racionalista no Brasil, levando informação cientifica de qualidade para a população e para órgãos de governo, para que tanto o cidadão comum como membros dos Três Poderes possam fazer escolhas melhores.
Todas as escolhas que fazemos no cotidiano, na vida pessoal ou na esfera pública, são baseadas no que sabemos – ou não sabemos – sobre ciência. Vacinar os filhos, consumir organismos geneticamente modificados, liberar (ou não) pesquisas com células-tronco embrionárias, são todos assuntos que exigem um conhecimento mínimo de como a ciência funciona, para que nossas escolhas sejam racionais, informadas por fatos e valores, não boatos e preconceitos.
Quando falamos em ceticismo e pensamento crítico, muitas vezes somos mal compreendidos como “aqueles positivistas”, ou “aqueles dogmáticos da ciência”.
Aqui cabe, portanto, um esclarecimento. O que entendemos por ciência é uma atitude de interrogação constante, uma disposição de confrontar ideias com dados, uma sistemática de investigação do mundo que vem sendo refinada há séculos, e que nos permite chegar o mais próximo possível da realidade material da natureza.
Sistemática, atitude e disposição se juntam para nos oferecer a melhor descrição dessa realidade, com as melhores ferramentas disponíveis a cada momento histórico: é por isso que podemos afirmar que os cientistas que estudam o clima e a atmosfera são melhores fontes sobre aquecimento global do que os filhos do presidente da República, por exemplo. A ciência pressupõe a capacidade de mudar de ideia frente a novas evidências. Ciência é uma atividade coletiva, comunitária, onde consensos são construídos sob a pressão constante da crítica e da dúvida dos pares.
Organizações como o IQC atuam para garantir que esses consensos sejam difundidos e comunicados à sociedade, e respeitados na aplicação de recursos públicos. Para cumprir essas metas, o IQC decidiu atuar em duas frentes: informação para o público e iniciativas de “advocacy” e fiscalização junto aos órgãos governamentais.
A seguir, os resultados deste primeiro ano:
Informação de qualidade gratuita para todos
Nosso primeiro projeto para informar a população foi a criação de uma revista. Queríamos que fosse digital e gratuita, sem anúncios, e de leitura fácil e acessível. A revista Questão de Ciência, editada pelo jornalista Carlos Orsi, já foi acessada por mais de cinco milhões de leitores. Em um ano, foram publicados 255 textos, entre reportagens, artigos, editoriais e resenhas. Isso corresponde a aproximadamente cinco textos por semana. Nossa revista também traz um conteúdo diferenciado e único no Brasil. É a única revista brasileira de ciência dedicada a promover o ceticismo e pensamento crítico. Nossos artigos buscam proteger o cidadão, sua saúde e seu bolso, e evitar que pessoas sejam enganadas por alegações pseudocientíficas ou anticientíficas.
Além da revista, os diretores do IQC participaram, ao todo, de 57 eventos nos últimos 12 meses, entre palestras e mesas de discussão, deram entrevistas e escreveram artigos para mais de 15 veículos de mídia, de cobertura nacional e regional. O IQC organizou, além do evento de abertura, em novembro de 2018, com a presença do professor Edzard Ernst, um ciclo de seminários sobre a epistemologia da ignorância em parceria com o IEA-USP, e uma série de eventos com o Dr Stuart Vyse sobre superstição e crenças. Fechamos o ano de 2019 com nosso evento de aniversário, um seminário internacional com a presença de dois palestrantes internacionais, Michael Marshall e Loretta Marron, falando do sucesso obtido em seus países de origem para banir o financiamento público da homeopatia.
Neste evento, lançamos a campanha 1023, para conscientizar a população sobre a ineficácia desta prática. Marshall e Marron ainda ofereceram palestras e workshops na Universidade de São Paulo.
Em parceria com a revista Scientific American Brasil, o IQC promoveu, em São Paulo, um painel com Marron, Marshall e o diretor do Science Museum de Londres, Sir Ian Blatchford, onde debateu-se o papel dos museus de ciência no combate à pseudociência.
Participamos também de três eventos internacionais: dois congressos do Center for Inquiry em Las Vegas, e um seminário organizado pelo Aspen Institute e a New York Univeristy. Graças a estas palestras internacionais, ficamos conhecidos como “The Brazilian Skeptics” (os céticos brasileiros), e ganhamos reconhecimento e representatividade no movimento cético global.
Finalmente, o IQC inaugurou seu canal de YouTube, com uma série de vídeos sobre homeopatia e filosofia da ciência, além de termos firmado parceria com a Casa do Saber para produção de vídeos sobre assuntos gerais de ciência, como vacinas, biotecnologia e ciência brasileira.
“Advocacy” e Fiscalização
Cumprindo sua promessa de atuar junto aos órgãos de governo, o IQC fez contato com vários parlamentares, mantendo sempre claro seu caráter suprapartidário. Atendemos, por exemplo, a pedidos de informação feitos pelo deputado federal Tiago Mitraud (NOVO) e pela senadora Mara Gabrili (PSDB). A pedido da senadora, produzimos material de divulgação científica apontando a importância de pesquisas com células-tronco embrionárias.
Enviamos ofícios à Anvisa e ao CFM, pedindo a remoção da homeopatia do Sistema Único de Saúde e da lista de práticas e especialidades médicas reconhecidas, em respeito ao uso racional dos recursos públicos e à melhor evidência científica. A agência regulatória respondeu alegando que deve “atender as demandas da sociedade brasileira e estabelece em seus regulamentos o nível de evidência aceito internacionalmente em vários países, neste caso, citamos, por exemplo, a Comunidade Europeia, onde tais produtos são regulamentados e vários deles disponíveis há muitas décadas no mercado.” E ainda completa: “há medicamentos homeopáticos cujos efeitos terapêuticos foram demonstrados por estudos clínicos”.
O IQC vai responder juntando toda a evidência científica que demonstra que a homeopatia não tem efeito maior que um placebo, e apontando todos os países – europeus inclusive – que deixaram de financiar a prática a partir do erário. O CFM ainda não respondeu ao nosso ofício.
O Instituto está finalizando seu dossiê “Avaliação crítica das evidências em homeopatia”. O documento nasceu do trabalho de um grupo de pesquisadores colaboradores que decidiu analisar detalhadamente o “Dossiê das evidências em homeopatia” publicado pela Associação Paulista de Medicina (APM), e que vem sendo utilizado como “acessório de palco” por todos os homeopatas que querem mostrar evidencias “científicas” de que sua prática funciona. Spoiler: o trabalho da APM está cheio de falhas metodológicas graves e vieses; baseia-se, majoritariamente, em estudos publicados em periódicos de péssima reputação, e com conclusões equivocadas.
Usando a Lei de Acesso à Informação (LAI), o IQC procurou aferir exatamente quanto de verba pública se gasta com práticas alternativas de saúde no Brasil. Enviamos requisições para todas as capitais do país, perguntando quais das chamadas Práticas Integrativas e Complementares (PICs) são oferecidas nas redes municipais e qual o custo total. Poucas capitais responderam de forma satisfatória. Uma capital, Vitória (ES) no entanto, mandou números detalhados, e podemos usá-la para exemplificar. A capital do Espírito Santo oferece fitoterapia, homeopatia, acupuntura, musicoterapia, auricoloterapia, yoga e xian gong.
O valor mínimo total gasto, por ano, para manter estas práticas é de R$1.540.522,00. Vitória tem 362 mil habitantes. Assim, podemos dizer que Vitória gasta R$ 4,20 em PICs, por pessoa, por ano. Parece pouco. Mas uma única dose de vacina de febre amarela custa R$ 3,50 ao erário. Isso quer dizer que com o dinheiro gasto com PICs em Vitória, poderíamos vacinar quase meio milhão de brasileiros.
Estamos cientes, é claro, de que os danos causados pela falsificação e deturpação da ciência vão muito além da presença de terapias infundadas no sistema público de saúde. Se elegemos as PICs do SUS como primeiro problema a ser tratado, isso se deve a seu grande potencial de dano e às repercussões culturais nefastas do endosso de tais práticas pelo Estado.
Mas não basta saber quanto se gasta e cobrar as agências regulatórias e conselhos federais. Queríamos também ter uma primeira ideia de como o brasileiro enxerga a ciência, com especial atenção para as práticas alternativas em saúde. Para isso, o IQC contratou o Instituto DataFolha. O resultado foi publicado aqui, e aponta para um certo grau de incompreensão dos caminhos da ciência, além de uma aceitação acrítica da medicina alternativa. Sinal de que nosso trabalho é especialmente necessário para esclarecer a população.
Defender a ciência também requer uma certa dose de coragem, já que muitas vezes os praticantes de medicina alternativa, desprovidos de argumentos, apelam para ataques judiciais. O IQC emitiu pareceres para embasar a defesa de dois jovens que foram processados por defender a ciência em redes sociais. Um dos processos já transitou em julgado, com vitória da ciência.
Atuar em educação e ensino de ciências também era um desejo do IQC. Nosso primeiro passo foi oferecer, em parceria com a Federação das Sociedades de Biologia Experimental (Fesbe), um prêmio para o melhor professor de ciências. Este prêmio será oferecido anualmente. O IQC também passou a integrar os programas de escola de ciências e Fesbe Jovem, para oferecer atividades para professores e alunos de escolas públicas.
Para 2020
Em parceria com o Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI) da Unesp, membros da diretoria do IQC vão oferecer um curso de extensão em comunicação pública da ciência. Também ofereceremos um curso “Por que confiar na ciência?”, em parceria com a Casa do Saber.
Em março de 2020, o IQC, em parceria com o Aspen Institute de Nova York e colaboração do Aspen Italia, realizará o “Aspen Congress for Scientific Thinking and Action”, em Roma. Será o primeiro congresso mundial a reunir organizações que promovem ceticismo e comunicação da ciência do mundo todo. O objetivo deste encontro é criar estratégias para combater movimentos pseudocientíficos e anticientíficos que ultrapassam fronteiras, e afetam todo o planeta. Esperamos representantes de mais de 40 países.
Foi um primeiro ano de muitos resultados. Prometemos trazer a ciência para o debate público, e prometemos começar com a questão das práticas alternativas no SUS.. Graças à atuação do IQC, o caráter pseudocientífico da homeopatia tornou-se parte inescapável do diálogo nacional. O Brasil passa a se mover, com protagonismo, no movimento cético mundial. Quem sabe, nosso país acompanhará Inglaterra, França, Austrália, EUA e Espanha na decisão de regulamentar com maior rigor esta e outras práticas que não têm eficácia comprovada, e que ameaçam a saúde e o bolso do cidadão?
O trabalho mal começou.