Que não se imprima a lenda

Editorial
26 dez 2018
Cartaz do filme The Man Who Shot Liberty Valance

Em editorial anterior, chamamos a atenção para a responsabilidade da imprensa brasileira na construção do mito de João de Deus, mito que acabou contribuindo para multiplicar o número de vítimas do autoproclamado médium.

 Numa demonstração de que maus hábitos custam a morrer, no noticiário sobre o primeiro depoimento do acusado à polícia, feito no último dia 17, veículos de imprensa, mesmo entre os mais respeitados, logo se lançaram numa nova campanha de mitificação do homem de Abadiânia, embarcando, com gosto, na enumeração de uma série de eventos que teriam acompanhado o depoimento – eventos em si corriqueiros, mas que, dado o recorte sensacionalista escolhido pelas diferentes reportagens, passaram a parecer "sinistros" ou “misteriosos”.

Assim, falhas elétricas na delegacia de polícia, acidentes e problemas de saúde em pessoas próximas ao caso converteram-se em chaves semânticas para induzir o leitor, que paga por exemplares em papel ou enfrenta paywalls virtuais em busca de informação confiável, a especular sobre envolvimentos “sobrenaturais”.

Exemplos dessa mistificação irresponsável encontram-se, por exemplo, na Folha de S. Paulo, no jornal O Globo, e em O Estado de S. Paulo, entre outros. Coletivamente, ao optar pelo sensacionalismo fácil, esses órgãos mostraram-se indignos do padrão a que o jornalismo sério e profissional deveria aspirar, se seu objetivo é destacar-se dos amadores e mal-intencionados que tanto prosperam nesta era assombrada por distorções e “fake news”.

Se o primeiro depoimento do acusado João de Deus à polícia é fato de óbvia relevância jornalística, a insinuação ingênua de que fenômenos “inexplicáveis” ou “espirituais” acompanham a figura do suposto médium só faz reforçar a imagem de um ídolo que, segundo as denúncias de centenas de mulheres, tem pés de barro.

Problemas elétricos e panes de computador são ocorrências diárias em incontáveis repartições públicas de todo o Brasil, de delegacias de polícia do Centro-Oeste ao lamentado Museu Nacional do Rio de Janeiro. Acidentes automobilísticos ocorrem pelo país com uma regularidade que, infelizmente, há tempos deixou de ser surpreendente. E jornalistas passando mal em meio a horas seguidas de cobertura – ao ar livre, com alimentação e hidratação precárias – também não são exatamente material de manchetes.

Quando a reportagem e a edição do Globo, da Folha ou do Estadão endossam, em textos e títulos, a ideia de que haveria uma associação mágica entre problemas que já fazem parte da rotina nacional do serviço público (computador travado, tomada queimada) e a presença de João de Deus, seus jornalistas abraçam e vendem ao leitor uma “lógica” tão “válida” quanto a de insinuar que o fogo no Museu Nacional foi causado por uma antiga maldição relacionada às múmias egípcias do acervo.

É algo que talvez se pudesse esperar de um tabloide britânico, mas jamais daqueles que se pretendem os maiores e mais sérios jornais do Brasil.

 Que a delegada encarregada do caso tenha, no calor do momento, se impressionado com as coincidências, é compreensível; que repórteres e editores tenham se deixado levar acriticamente é uma falha para com o dever do jornal de oferecer a melhor informação disponível, com a melhor contextualização possível, ao leitor.

“Imprima-se a lenda” – frase de efeito imortalizada no filme The Man Who Shot Liberty Valance, ou O Homem que Matou o Facínora, no Brasil – é algo que funciona bem na ficção, mas não deveria ter lugar no verdadeiro jornalismo.

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