Mas, não é tudo uma conspiração da indústria farmacêutica?

Apocalipse Now
22 nov 2018
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Capa do livro Bad Pharma

 

Poder gera desconfiança, e poucos setores da economia global são tão poderosos quanto a indústria de medicamentos: além de lidar com questões cruciais de vida ou morte que podem afetar populações inteiras, trata-se de uma indústria com receitas globais acima de US$ 700 bilhões ao ano, uma margem de lucro média da ordem de 20% – segundo dados levantados pelo Congresso dos Estados Unidos – e amplo acesso a palácios e gabinetes governamentais.

Não é de estranhar, portanto, que críticas a terapias ditas “alternativas”, “complementares” ou “integrativas” sejam muitas vezes recebidas não com base no mérito dos argumentos apresentados, e sim com um bombardeio de acusações e insinuações contra os críticos, que seriam “prepostos da indústria”.

O médico alemão radicado no Reino Unido Edzard Ernst, um ex-homeopata que se tornou talvez o maior estudioso – e crítico – do uso de terapias alternativas, chegou a elaborar uma lista dos comentários mais comuns que recebe após suas palestras. Entre eles, aparecem: “a indústria farmacêutica suprime as boas notícias sobre tratamentos alternativos” e “a comunidade científica impede que o público se beneficie de tratamentos alternativos”.

Um grupo de quatro estudos, realizados na Alemanha, citados por Ernst e publicados em conjunto, neste ano, pelo periódico Social Psychology, aponta que a percepção de poder – e a desconfiança em relação aos poderosos – é um motivador relevante na hora de um paciente decidir entre opções de terapia “convencional” ou “alternativa”. Outro fator detectado no mesmo trabalho é a “mentalidade conspiratória”, “uma atitude mental que pode ser resumida pela ideia de que ‘tudo o que acontece na sociedade (...) é resultado direto dos desígnios de indivíduos ou grupos poderosos’”. A definição citada no artigo é a mesma apresentada por Karl Popper em sua obra A Sociedade Aberta e Seus Inimigos.

Nesse mesmo livro, Popper nota que “conspirações acontecem (...) mas poucas conspirações são bem-sucedidas”, e aponta a razão: a sociedade é complexa demais para ser controlada desse modo. Toda ação humana acontece dentro de um determinado quadro cultural e institucional, e cada ação gera “muitas reações imprevistas dentro desse quadro, algumas talvez até imprevisíveis”. 

É preciso admitir, no entanto, que os fabricantes de medicamentos fazem por merecer, ao menos em parte, a desconfiança que recebem do público. Em seu monumental livro Bad Pharma, uma dura denúncia de mais de 400 páginas, o médico britânico Ben Goldacre levanta e documenta um impressionante catálogo dos pecados da grande indústria farmacêutica internacional.

E esses pecados não são nada triviais. O livro de Goldacre é um desfile de absurdos e atrocidades, que começam na omissão deliberada de dados clínicos relevantes, incluindo informações essenciais sobre efeitos adversos; passam por estratégias antiéticas de marketing que distorcem o exercício cotidiano da medicina – incluindo atividades  bem difíceis de distinguir de suborno puro e simples – e chegam à manipulação de preços e ao lobby político.

Por conta de propaganda enganosa – promovendo o uso de certas drogas para finalidades não aprovadas – a indústria acumula multas bilionárias impostas por autoridades dos Estados Unidos. As duas maiores multas por fraude já aplicadas nos EUA tiveram como alvo empresas farmacêuticas: US$ 3 bilhões à GSK, em 2012, e US$ 2,3 bilhões à Pfizer, em 2009.

Mas Goldacre é bem claro ao definir o papel que vê para as terapias alternativas no combate a essas mazelas: “nenhum”.

“Se charlatães tirarem algum lucro da fúria justificada que as pessoas sentem por causa dos problemas que você leu aqui, este lucro virá às custas de ações realmente construtivas”, escreve ele. “Terapeutas alternativos que vendem vitaminas e pílulas homeopáticas de açúcar, que não produzem efeito melhor que um placebo em testes honestos, não têm nenhum papel a desempenhar na solução destes problemas”.

O autor completa que os terapeutas alternativos “apenas usam versões mais canhestras dos mesmos truques” empregados pelas figuras menos éticas da indústria farmacêutica, como a distorção dos resultados de estudos científicos, manipulação e omissão da evidência e uso abusivo do marketing.

“Problemas na medicina não querem dizer que pílulas homeopáticas funcionam: não é porque há problemas no projeto de um avião que tapetes voadores voam de verdade”, exemplifica o autor.

A questão fundamental, como Goldacre, Ernst – e, num contexto um pouco diferente, o próprio Popper – afirmam repetidas vezes, é de razão e evidência: por mais que a base de informações que sustenta a medicina tradicional tenha problemas, ela pelo menos mostra que a maioria desses produtos é melhor do que não fazer nada. E melhor do que apenas dar ao paciente a ilusão de tratamento.

No caso das terapias alternativas, a situação é exatamente o contrário disso: a base de evidências existente aponta que esses produtos são inúteis ou, até mesmo, prejudiciais.

Emprestando o espírito da comparação entre avião e tapete voador feita por Ben Goldacre, é a diferença de, querendo atravessar a cidade, entrar num carro que anda, embora faça alguns barulhos estranhos, ou ir para o meio da rua e, ignorando o tráfego, ficar lá estalando os dedos.

Este é o argumento que, de fato, interessa: quem pode  sustentar o que diz com argumentos racionais e evidências?  Quem, por conta disso, merece a confiança – ainda que condicional – da população e acesso a verbas públicas?

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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