Não há evidência de que avelós cure câncer ou qualquer outra coisa

Artigo
6 mai 2025
planta avelós

A ideia de escrever sobre esse tema surgiu durante o levantamento de dados sobre outra pseudociência: a auto-hemoterapia, que ainda pretendo abordar em um artigo aqui na RQC.

Durante essa pesquisa, tive contato com um grupo do Facebook que exaltava os supostos benefícios da prática para as mais diversas condições de saúde. Em uma das postagens sobre câncer, um comentário afirmava que, embora a auto-hemoterapia fosse uma boa ferramenta terapêutica, o melhor tratamento natural ainda seria o avelós.

Para quem não está familiarizado com o nome – como era meu caso –, trata-se de uma planta - Euphorbia tirucalli - utilizada na medicina popular para diversas enfermidades.

Há 14 anos, a Anvisa publicou a Resolução RE nº 2.917, de 6 de junho de 2011, que proibia, em todo o território nacional, a distribuição e comercialização do produto avelós, bem como a manipulação ou fabricação de medicamentos contendo tal substância. Essa decisão foi motivada pela proliferação de diversos fitoterápicos, divulgados online, que prometiam curar o câncer. No caso, uma instituição chamada “Grupo do Bem” oferecia, por R$ 135, o “Kit Avelós”, um conjunto de fitoterápicos contendo copaíba, graviola, avelós e ervas, além de uma “Pomada Avelós”.

Embora a empresa não esteja mais operando e a decisão da Anvisa tenha impedido que inúmeros produtos prosperassem, a alegação falaciosa sobrevive e continua sendo disseminada em grupos de Facebook. Neles, tive contato com relatos pessoais de milhares de adeptos e iniciantes na prática que, por desespero diante de um diagnóstico devastador de câncer, recorrem a uma alternativa considerada “eficaz e natural”.

Embora o avelós seja utilizado na medicina popular e conte com diversos relatos de sucesso, isso, obviamente, não configura evidência de eficácia. Mais preocupante ainda, seu uso pode acarretar sérios riscos à saúde, como danos hepáticos e renais. Além disso, por mais que relatos de suposto “sucesso” no uso do produto tenham a intenção de confortar e ajudar pessoas desesperadas, especialmente aquelas que acabaram de receber um diagnóstico de câncer, eles prestam um desserviço ao alimentar falsas esperanças e potencialmente aumentar o risco de vida desses pacientes.

Trocar cirurgias, quimioterapia, radioterapia ou qualquer outro tratamento indicado por alternativas sem respaldo científico pode levar a desfechos desastrosos.

Infelizmente, tentar engajar uma conversa apontando a falta de evidências sobre a planta e os riscos associados, na maioria das vezes, não altera a opinião dessas pessoas. Isso ocorre porque muitas vivem em filter bubbles ("bolhas de filtro", ambientes em que se entra em contato apenas com opiniões e crenças semelhantes às próprias) e echo chambers ("câmaras de eco", ambientes virtuais de isolamento intelectual, criados por algoritmos que expõem o usuário apenas a conteúdos alinhados ao que ele já consome). Além de muitas pessoas não estarem abertas a opiniões divergentes, a dinâmica do algoritmo impede que informações contrárias cheguem a estes grupos.

Artigo recente publicado na BMC Health Services Research — uma revista de acesso aberto, com revisão por pares, voltada especialmente para saúde digital, políticas públicas e outros aspectos do sistema de saúde — intitulado Causes and consequences of quack medicine in health care: a scoping review of global experience descreve um estudo que buscou investigar, identificar e classificar de forma abrangente as causas e consequências do charlatanismo nos serviços de saúde.

Para isso, os autores conduziram uma revisão da literatura sobre o assunto.

A revisão identificou diferentes causas para a utilização de práticas pseudocientíficas, como a influência de ideologias políticas, a falta de vontade política, o alto custo de combater falsas curas. Contudo, quatro aspectos, em particular, explicam o comportamento dos participantes que encontrei:

Aumento do custo dos cuidados de saúde convencionais — O encarecimento expressivo de medicamentos e serviços médicos tem levado muitos consumidores a buscar alternativas aos tratamentos padrão desprovidas de validação científica.

Vulnerabilidade dos pacientes — O medo é um fator emocional determinante que torna indivíduos mais suscetíveis a falsas promessas. Pacientes com doenças graves, crônicas ou dolorosas, em especial, tendem a depositar fé em promessas de “cura” ignoradas ou rejeitadas pela medicina convencional.

Analfabetismo científico — A falta de compreensão sobre o funcionamento da ciência favorece a adesão a práticas pseudocientíficas e aumenta a vulnerabilidade a fraudes e desinformação.

Propaganda enganosa — No caso do avelós, a influência deriva tanto da tradição da medicina popular quanto da ampla circulação de testemunhos na internet, mais do que de campanhas publicitárias formais.

Um detalhe importante dessa análise é que não houve distinção entre práticas que utilizam substâncias ativas — e que, portanto, podem apresentar efeitos colaterais (como a naturopatia, avelós, entre outras) — e aquelas que recorrem a substâncias inócuas, como a homeopatia.

 

Uso ancestral

Para os que não estão familiarizados, o avelós — também conhecido como coroa-de-cristo ou pelo seu nome científico Euphorbia tirucalli Linn — é uma das mais de 1.836 espécies do gênero Euphorbia L. Trata-se de um arbusto de seiva leitosa e tóxica, nativo de regiões desérticas da África e da Ásia, e presente em praticamente todas as regiões do Brasil.

De acordo com o artigo The traditional use of the latex from Euphorbia tirucalli Linnaeus (Euphorbiaceae) in the treatment of cancer in south Brazil, o avelós é  uma planta com diversas partes de potencial farmacológico. Originalmente, era indicada como rubefaciente (substância que provoca vermelhidão na pele), purgativo, vesicante (substância que pode causar bolhas), antiflatulento e antissifilítico.

Tradições folclóricas indicam seu uso para tratar reumatismo, asma, tosse, dor de ouvido, cólicas, impotência sexual, fraturas ósseas, feridas e diarreia. O pó da planta é usado em edemas cutâneos e casos de caspa, enquanto suas raízes são empregadas no tratamento de picadas de cobra, e suas infusões são utilizadas para aliviar dores ósseas. A seiva, cáustica, é usada contra o câncer. Nenhuma dessas indicações tem respaldo científico, e apenas algumas poucas foram testadas, e apenas em vidro de laboratório, sem avançar para testes clínicos em humanos.

A pesquisa, publicada em 1998, traçou um diagnóstico preliminar sobre o uso tradicional do avelós no tratamento do câncer pela população da Região Metropolitana de Porto Alegre.

Como resultado preliminar, as entrevistas com os pacientes — ou com seus amigos e parentes — indicam que pessoas diagnosticadas com câncer acabam, de alguma forma, entrando em contato com a informação de que o avelós tem propriedades curativas. Na maioria das vezes, o primeiro contato ocorre por meio de conhecidos próximos, que ouviram falar sobre a planta em templos religiosos, especialmente os de orientação católica ou espírita.

A maioria dos pacientes relatou ingerir a seiva com leite, água ou mel. Outros entrevistados afirmaram utilizar substâncias paralelas, como babosa e misturas de cachaça com mel.

Os usuários também destacaram que não informam seus médicos sobre o consumo do avelós, mas, felizmente, continuaram seguindo as terapias convencionais.

Um padre católico entrevistado disse que passou a distribuir e recomendar a seiva da planta após observar bons resultados ao utilizá-la para tratar uma lesão pulmonar.

Quanto à literatura científica, verificou-se que a seiva do gênero Euphorbia é rica em ésteres de diterpenos, substâncias que despertam interesse da comunidade científica devido ao potencial  farmacológico.

A concentração dessas substâncias ativas na seiva é geralmente baixa (entre 0,05% e 1%). Ainda assim, mesmo em concentrações reduzidas, todas apresentam atividade irritante sobre a pele e as mucosas.

A partir disso, os autores concluem que, embora não existam ensaios clínicos que comprovem a segurança e a eficácia da utilização do avelós no tratamento do câncer, é possível que alguma das moléculas presentes em seu látex tenha, de fato, atividade antitumoral — o que justificaria investigações mais aprofundadas sobre o tema.

Naturalmente, considerando que se trata de um estudo com quase 30 anos e realizado em uma localidade específica, seria imprudente afirmar que não houve avanços na pesquisa sobre o Euphorbia tirucalli desde então.

Infelizmente, ainda são escassos os estudos que investigaram o uso medicinal da planta em outras partes do país. Trabalho publicado em 2009, intitulado Medicinal knowledge and plant utilization in an Amazonian coastal community of Marudá, Pará State (Brazil), contribui para essa discussão. Nesse estudo, o autor investigou quais plantas são utilizadas para fins terapêuticos na vila de Marudá, bem como o conhecimento tradicional associado a elas.

Para contextualizar, Marudá é uma vila que, na época do estudo, tinha 1.805 habitantes — número para o qual não há atualizações recentes.

Foram coletadas 229 espécies de plantas medicinais diferentes, distribuídas em 81 famílias e 176 gêneros. Entrevistas relataram o uso de 508 remédios caseiros, sendo que 63% das receitas eram simples, utilizando apenas uma planta, e 37% eram misturas compostas, tanto de plantas com outras plantas quanto de plantas com outros produtos.

Focando especificamente no avelós, a seiva e o chá da planta eram recomendados para o tratamento de câncer, mordidas de cobra, sífilis, entre outras condições.

Essas indicações tradicionais não são exclusivas do Brasil. Uma pesquisa realizada na Índia, intitulada "Medicinal Value of Euphorbia Tirucalli", aponta que o uso folclórico da planta ocorre em diversas partes do mundo, incluindo África e na própria Índia.

Embora essas práticas estejam amplamente disseminadas, é importante reiterar que todas as utilizações carecem de respaldo científico, sendo, na melhor das hipóteses, confirmadas apenas por estudos in vitro. E, antes que alguém argumente que estou desmerecendo o conhecimento tradicional e sugerindo que o avelós, mesmo sem ensaios clínicos, tenha demonstrado sua eficácia por meio do teste do tempo e das alegações de saúde prevalentes, é necessário trazer um contexto histórico relevante.

Embora práticas como essas tenham sobrevivido – frequentemente sendo fortalecidas por experiências anedóticas entre indivíduos e na internet –, é importante lembrar que outras práticas pseudocientíficas também se mantiveram em evidência por séculos até serem devidamente investigadas e consideradas ineficazes ou, em alguns casos, prejudiciais, como no caso da homeopatia e da sangria, que foram amplamente desacreditadas ao longo do tempo.

 

Novas evidências?

Pesquisas sobre a avelós ainda são muito recentes, estando predominantemente na fase de ensaios in vitro, com poucos estudos realizados em modelos animais. Contudo, uma das alegações mais notórias no Brasil acerca da planta é sua suposta propriedade antitumoral, e, por isso, tratarei especificamente desse desfecho, com base em dois artigos .

O primeiro, intitulado "In vitro screening of cytotoxic activity of euphol from Euphorbia tirucalli on a large panel of human cancer‑derived cell lines", publicado em 2018, investigou o efeito antitumoral do eufol (um álcool extraído da avelós) em linhagens celulares derivadas de câncer humano. O estudo analisou o efeito citotóxico do eufol, extraído da seiva de Euphorbia tirucalli, em 73 linhagens celulares humanas, provenientes de 15 modelos de tumores sólidos.

Para verificar a eficácia do tratamento, as placas tratadas com o eufol foram comparadas com as não tratadas. Também foram feitos outros testes.

Os resultados mostraram um efeito antitumoral que variava com o tipo de tumor.

Com base nesses achados, conclui-se que o eufol pode ser um agente promissor para diversos tipos tumorais, em especial para cânceres de esôfago e pâncreas.

Contudo, o estudo apresenta diversas limitações, como a ausência de células normais correspondentes aos diferentes tipos tumorais avaliados. Além disso, embora não seja uma limitação em si, é importante destacar um conflito de interesse econômico relevante. O estudo foi financiado pela Amazônia Fitomedicamentos Ltda, que também forneceu o eufol utilizado na pesquisa, e um dos autores do estudo é também detentor da patente do eufol. Conflito de interesse, por si só, não invalida resultados, mas serve como alerta, pois há a possibilidade de que os autores possam ter subestimado limitações ou problemas durante a pesquisa, enquanto superestimaram os achados positivos.

Em 2020, foi publicado um artigo intitulado “Consumption of latex from Euphorbia tirucalli L. promotes a reduction of tumor growth and cachexia, and immunomodulation in Walker 256 tumor-bearing rats”, que teve como objetivo determinar o efeito da administração tradicional de avelós (algumas gotas da seiva da Euphorbia tirucalli diluídas em uma garrafa de água) sobre tumor em ratos de laboratório.

Observou-se que todos os animais tratados com as soluções nas concentrações de 25 e 50 μL/mL apresentaram uma redução da massa tumoral em comparação aos animais controle.

Os autores concluem que são necessários mais estudos em modelos animais e humanos para elucidar os mecanismos envolvidos na atividade antitumoral da seiva, bem como determinar as doses apropriadas.

Embora a planta seja utilizada na medicina tradicional, ela ainda carece de respaldo científico e não existem, até o momento, evidências suficientes para considerá-la uma terapia segura e eficaz. Se isso não fosse motivo suficiente para desencorajar o uso, é importante ressaltar, mais uma vez, que a seiva do avelós é tóxica e pode provocar efeitos colaterais graves.

Como descrito no artigo “Euphorbia tirucalli L. (Euphorbiaceae) - The miracle tree: Current status of available knowledge, o contato acidental com os olhos pode causar conjuntivite ou até cegueira. Além disso, alguns estudos relataram efeitos carcinogênicos em camundongos, levando ao desenvolvimento de tumores malignos.

Diante desse cenário, fica evidente que a decisão mais prudente é evitar o contato e o consumo do avelós, ao menos até que existam evidências confiáveis sobre seu uso.

Por fim, é fundamental perceber que substituir um tratamento convencional pelo avelós equivale a jogar roleta russa com quatro balas no tambor: uma representa a toxicidade da seiva; outra, o abandono de uma terapia comprovada; a terceira, os potenciais efeitos carcinogênicos; e a quarta, a ausência de controle sobre a dosagem. Mesmo que se sobreviva às primeiras tentativas, cada nova rodada mantém o risco elevado — tornando a tragédia estatisticamente provável.

 

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

ANVISA. Resolução - RE Nº 2.917, de 6 de Julho de 2011. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2011/res2917_06_07_2011.html#:~:text=%EF%BB%BFRESOLU%C3%87%C3%83O%20%2D%20RE%20N%C2%BA%202.917,o%20inciso%20VIII%20do%20art.

SETAYESH, M. et al. Causes and consequences of quack medicine in health care: a scoping review of global experience. BMC Health Serv Res. 2024 Jan 11;24(1):64. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/38212750/.

CATALUÑA, P. e RATES, S. The traditional use of the latex from Euphorbia Tirucalli Linnaeus (Euphorbiaceae) in the treatment of cancer in South Brazil. ISHS Acta Horticulturae 501: II WOCMAP Congress Medicinal and Aromatic Plants, Part 2: Pharmacognosy, Pharmacalogy, Phytomedicine, Toxicology. Disponível em: https://www.actahort.org/books/501/501_46.htm.

FERREIRA, M. Medicinal Knowledge and plant utilization in an Amazonian coastal community of Marudá, Pará State (Brazil). J Ethnopharmacol. 2009 Oct 29;126(1): 159-75. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19632314/.

GUPTA, N. et al. Medicinal Value of Euphorbia Tirucalli. Systematic Reviews in Pharmacy, January-December 2013, Vol. 4, Issue 1. Disponível em: https://www.sysrevpharm.org/articles/medicinal-value-of-euphorbia-tirucalli.pdf.

SILVA, V. et al. In vitro screening of cytotoxic activity of euphol from Euphorbia tirucalli on a large panel of human cancer-derived cell lines. Exp Ther Med. 2018 Aug;16(2): 557-566. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30112023/.

MARTINS, C. et al. Consumption of latex from Euphorbia tirucalli L. promotes a reduction of tumor growth and cachexia, and immunomodulation in Walker 256 tumor-bearing rats. J Ethnopharmacol. 2020 Jun 12:255:112722. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32114165/.

MWINE, J. e DAMME, P. Euphorbia tirucalli L. (Euphorbiaceae) - The miracle tree: Current Status of avaliable knowledge. Scientific Research and Essays Vol. 6(23), pp 4905-4914, 16 October, 2011. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/55755533.pdf.

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