"Heal" na Netflix: crueldade disfarçada de autoajuda

Resenha
4 fev 2019
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Tela de abertura do documentário "Heal"
Tela de abertura do documentário "Heal"

Elizabeth passa toda a vida adulta praticando yoga, alimentando-se predominantemente de vegetais crus, consumindo sucos “detox”, estudando acupuntura e, de repente, a despeito desse estilo de vida moldado nos mais insistentes conselhos New Age, é diagnosticada com câncer de fígado e intestino, em estágio avançado. Depois de um curso de quimioterapia e um de radioterapia, o tumor principal e as metástases desaparecem, e ela se considera curada. Vitória da ciência, claro! Ou não?

Não de acordo com a interpretação dada à narrativa pelo documentário “Heal – O Poder da Mente”, disponibilizado recentemente pela Netflix no mercado brasileiro.

Mesmo após o médico de Elizabeth sugerir que, talvez, a remissão rápida e relativamente simples possa ser explicada por um erro, do diagnóstico inicial, na avaliação da gravidade do tumor, a razão promovida pelo filme é a liberação de energias emocionais negativas, acumuladas por décadas, desde o dia em que a paciente, ainda criança, foi humilhada pelos coleguinhas de escola por causa de um pacote de biscoitos.

Produzido, dirigido, escrito e apresentado pela atriz Kelly Noonan Gores (vista, por exemplo, no episódio “Sexo, Mentiras e Silicone” da série CSI: New York), “Heal” acompanha a trajetória de duas mulheres. Além de Elizabeth com seu câncer, temos Eva, sofrendo com estranhas erupções cutâneas, sem diagnóstico claro, também em busca de uma cura.

Falas das duas pacientes, e cenas de suas visitas a médicos e terapeutas alternativos, são entremeadas por conversas com autores de best-sellers de autoajuda mística, como Deepak Chopra, Bruce Lypton, Kelly Turner.

Deepak Chopra, um pouco envelhecido, em "Heal"
Deepak Chopra, um pouco envelhecido, em "Heal"

Para quem não os conhece, Chopra defende a ideia de que o corpo humano é um “campo de energia e consciência”, e que é possível parar de envelhecer, ou mesmo rejuvenescer, usando meditação, exercícios físicos e força de vontade.  Existe uma conta no Twitter, @WisdomOfChopra, que produz frases sem sentido que são indistinguíveis dos pronunciamentos pseudoprofundos desse guru. Na verdade, existe até um artigo científico demonstrando que o que ele diz é idêntico a nonsense.

Lypton, por sua vez, acredita que, como a regulação genética – a definição de quais genes serão ativados dentro das células, e em que momento – depende, em parte, de estímulos ambientais, então é possível ligar ou desligar genes com o poder da mente.  Já Kelly Turner viajou o mundo perguntando a pessoas que sobreviveram ao câncer, mesmo contra os piores prognósticos, como achavam que tinham conseguido isso – o que faz tanto sentido quanto perguntar a um ganhador da loteria como escolhe seus números.

João de Deus, antes das denúncias de assédio virem a público
João de Deus, antes das denúncias de assédio virem a público

Também fazem aparições Rob Wergin, o “Conduíte Divino” (que se diz capaz de transmitir “energias de cura” diretamente de Deus para os pacientes), o “médium médico” Anthony Williams e, de modo mais modesto, João de Deus (o filme é de 2017, antes do escândalo atual de abusos sexuais que atinge o brasileiro – pena que nenhum quiromante ou tarólogo tenha avisado Noonan Gores a tempo).

Física Quântica, Buda, Epigenética

Um dos gurus-coaches-mestres-whatever entrevistados cita a frase “cada homem e mulher é arquiteto da própria saúde”, e a atribui ao Buda. Trata-se de uma falsa atribuição: Sidarta Gautama, o Buda que ensinou na Índia por volta de 500 AEC, muito provavelmente nunca disse isso. Mas o erro, afirmado com segurança e um ar de profunda sabedoria, é típico do documentário como um todo: tudo o que se tenta deduzir, ali, das ciências, da física, da epigenética, do efeito placebo, é falso, mal atribuído, ou está fora de contexto.

Primeiro, a física: os participantes do filme parecem todos achar que a equivalência entre matéria e energia da Relatividade, e os aspectos mais surpreendentes da física quântica, de algum modo, validam uma espécie de dualismo – matéria e espírito seriam entidades separadas – e a predominância do espiritual: se “tudo é energia”, então o mundo físico não passa de uma fachada manipulável pela vontade.

Há muita coisa errada nessa linha de pensamento, começando pelo fato de que a “energia” da física quântica e relativística é uma propriedade do mundo físico, mensurável e manipulável por meio de ferramentas físicas, não um poder abstrato ou divino.

Em lógica e retórica, isso se chama “equivocação”: o erro (ou má-fé) de usar a mesma palavra com sentidos diferentes num mesmo argumento, fingindo que não houve mudança.

Os participantes do documentário mostram-se, seguidas vezes, fascinados por exemplos de que estados mentais estão correlacionados a estados fisiológicos, mas em nenhum momento parecem se dar conta de que isso não representa uma hierarquia – a mente é mais poderosa que a matéria – e, sim, uma identidade: a mente é mais um tipo de estado fisiológico.

Outros conceitos científicos abusados durante o programa são epigenética e efeito placebo, ambos alvos de exageros tremendos. A epigenética – que trata dos mecanismos celulares que levam certos genes a se expressar ou seguir em silêncio – é apresentada como a ponte entre pensamento positivo e a biologia celular: “Se mudo minhas crenças sobre a vida, mudo os sinais que estrão entrando e ajustando o funcionamento da célula”, diz Bruce Lypton, autor de livros como “The Biology of Belief”, olhando para a câmera.

Lypton salta da constatação de que diferentes hormônios podem levar células-tronco idênticas a diferenciar-se em diversos tipos de tecido, ligando e desligando genes, para a conclusão, totalmente injustificada, de que diferentes pensamentos podem ter o mesmo efeito, e em qualquer tipo de célula. Se isso fosse verdade, deveria ser possível transformar um dedo numa orelha – ou regenerar um membro perdido – apenas desejando algo assim.

Salto semelhante é dado por Joe Dispenza, autor de “You Are the Placebo”. O escritor parte da constatação de que o efeito placebo – uma mistura de condicionamento clássico e sugestão – é capaz de levar o corpo a produzir analgésicos opioides, para a alegação, completamente sem pé nem cabeça, de que crença e fé são capazes de induzir o corpo a produzir “qualquer coisa” que seja necessária para resolver um problema de saúde. Dizpensa alega ter sarado de uma lesão grave, na coluna vertebral, usando apenas visualizações e pensamento positivo.

Em síntese

As alegações centrais de “Heal – O Poder da Mente” são de que todas as doenças são autoinfligidas, provocadas por estresse emocional (emoções ruins criam “densidade”, que ou enfraquece o sistema imunológico ou causa câncer, ou ambos) e, portanto, são autocuráveis, e sabemos disso porque física quântica e epigenética blábláblá..

Existe um esforço, não muito sincero, de parecer não culpar a vítima (em algum momento se diz que você não tem culpa de causar o seu próprio câncer, se o estilo de vida moderno inevitavelmente “polui o subconsciente” de todos), mas a mensagem é clara: tudo acontece por uma razão, e a razão está na sua cabeça. Noonan Gores tenta vender isso como  uma palavra de esperança. Mas não é. É uma palavra de desespero e culpa.

A ideia de Kelly Turner, expressa em seu livro “Radical Remission”, de que pacientes que se recuperam de tumores malignos, mesmo depois de esgotadas as opções de tratamento, “encontraram a cura de seus cânceres” é talvez a manifestação mais clara (e ingênua) desse princípio. Colecionar os hábitos desses “sobreviventes radicais” não faz o menor sentido sem um grupo de comparação: o de pessoas que, cultivando os mesmos hábitos, não sobreviveram.

O documentário acompanha um homem, que se apresenta como paciente de câncer cerebral, tendo um êxtase místico nos braços de Rob Wengin, o “Conduíte Divino”. Todos na sala se emocionam, e fica implícito que o paciente acredita ter sido curado. Mas foi? O filme não nos diz. A história para aí.

Eva, a segunda personagem principal, termina o documentário da mesma maneira como começou: sem diagnóstico ou tratamento claro definido para seu problema de pele. Um médico receitou-lhe esteroides; outro, antibiótico. A terapeuta holística que a ajudou a reviver traumas de infância também não produziu nenhum avanço.

A principal cura apresentada em “Heal – O Poder da Mente” é a de Elizabeth, que teve câncer e passou por quimioterapia e radioterapia. Mas o filme se recusa a ligar os pontos: a medicina “ocidental” é um monstro agressivo, e é a terapia alternativa que leva os louros. A realidade é o contrário disso: o uso terapias alternativas eleva o risco de vida para pacientes de câncer.

O verdadeiro “poder da mente”, parece, está em ignorar o óbvio e apaixonar-se por uma fantasia pseudocientífica, cruel – mas muito lucrativa para quem a vende.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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