Elizabeth passa toda a vida adulta praticando yoga, alimentando-se predominantemente de vegetais crus, consumindo sucos “detox”, estudando acupuntura e, de repente, a despeito desse estilo de vida moldado nos mais insistentes conselhos New Age, é diagnosticada com câncer de fígado e intestino, em estágio avançado. Depois de um curso de quimioterapia e um de radioterapia, o tumor principal e as metástases desaparecem, e ela se considera curada. Vitória da ciência, claro! Ou não?
Não de acordo com a interpretação dada à narrativa pelo documentário “Heal – O Poder da Mente”, disponibilizado recentemente pela Netflix no mercado brasileiro.
Mesmo após o médico de Elizabeth sugerir que, talvez, a remissão rápida e relativamente simples possa ser explicada por um erro, do diagnóstico inicial, na avaliação da gravidade do tumor, a razão promovida pelo filme é a liberação de energias emocionais negativas, acumuladas por décadas, desde o dia em que a paciente, ainda criança, foi humilhada pelos coleguinhas de escola por causa de um pacote de biscoitos.
Produzido, dirigido, escrito e apresentado pela atriz Kelly Noonan Gores (vista, por exemplo, no episódio “Sexo, Mentiras e Silicone” da série CSI: New York), “Heal” acompanha a trajetória de duas mulheres. Além de Elizabeth com seu câncer, temos Eva, sofrendo com estranhas erupções cutâneas, sem diagnóstico claro, também em busca de uma cura.
Falas das duas pacientes, e cenas de suas visitas a médicos e terapeutas alternativos, são entremeadas por conversas com autores de best-sellers de autoajuda mística, como Deepak Chopra, Bruce Lypton, Kelly Turner.
Para quem não os conhece, Chopra defende a ideia de que o corpo humano é um “campo de energia e consciência”, e que é possível parar de envelhecer, ou mesmo rejuvenescer, usando meditação, exercícios físicos e força de vontade. Existe uma conta no Twitter, @WisdomOfChopra, que produz frases sem sentido que são indistinguíveis dos pronunciamentos pseudoprofundos desse guru. Na verdade, existe até um artigo científico demonstrando que o que ele diz é idêntico a nonsense.
Lypton, por sua vez, acredita que, como a regulação genética – a definição de quais genes serão ativados dentro das células, e em que momento – depende, em parte, de estímulos ambientais, então é possível ligar ou desligar genes com o poder da mente. Já Kelly Turner viajou o mundo perguntando a pessoas que sobreviveram ao câncer, mesmo contra os piores prognósticos, como achavam que tinham conseguido isso – o que faz tanto sentido quanto perguntar a um ganhador da loteria como escolhe seus números.
Também fazem aparições Rob Wergin, o “Conduíte Divino” (que se diz capaz de transmitir “energias de cura” diretamente de Deus para os pacientes), o “médium médico” Anthony Williams e, de modo mais modesto, João de Deus (o filme é de 2017, antes do escândalo atual de abusos sexuais que atinge o brasileiro – pena que nenhum quiromante ou tarólogo tenha avisado Noonan Gores a tempo).
Física Quântica, Buda, Epigenética
Um dos gurus-coaches-mestres-whatever entrevistados cita a frase “cada homem e mulher é arquiteto da própria saúde”, e a atribui ao Buda. Trata-se de uma falsa atribuição: Sidarta Gautama, o Buda que ensinou na Índia por volta de 500 AEC, muito provavelmente nunca disse isso. Mas o erro, afirmado com segurança e um ar de profunda sabedoria, é típico do documentário como um todo: tudo o que se tenta deduzir, ali, das ciências, da física, da epigenética, do efeito placebo, é falso, mal atribuído, ou está fora de contexto.
Primeiro, a física: os participantes do filme parecem todos achar que a equivalência entre matéria e energia da Relatividade, e os aspectos mais surpreendentes da física quântica, de algum modo, validam uma espécie de dualismo – matéria e espírito seriam entidades separadas – e a predominância do espiritual: se “tudo é energia”, então o mundo físico não passa de uma fachada manipulável pela vontade.
Há muita coisa errada nessa linha de pensamento, começando pelo fato de que a “energia” da física quântica e relativística é uma propriedade do mundo físico, mensurável e manipulável por meio de ferramentas físicas, não um poder abstrato ou divino.
Em lógica e retórica, isso se chama “equivocação”: o erro (ou má-fé) de usar a mesma palavra com sentidos diferentes num mesmo argumento, fingindo que não houve mudança.
Os participantes do documentário mostram-se, seguidas vezes, fascinados por exemplos de que estados mentais estão correlacionados a estados fisiológicos, mas em nenhum momento parecem se dar conta de que isso não representa uma hierarquia – a mente é mais poderosa que a matéria – e, sim, uma identidade: a mente é mais um tipo de estado fisiológico.
Outros conceitos científicos abusados durante o programa são epigenética e efeito placebo, ambos alvos de exageros tremendos. A epigenética – que trata dos mecanismos celulares que levam certos genes a se expressar ou seguir em silêncio – é apresentada como a ponte entre pensamento positivo e a biologia celular: “Se mudo minhas crenças sobre a vida, mudo os sinais que estrão entrando e ajustando o funcionamento da célula”, diz Bruce Lypton, autor de livros como “The Biology of Belief”, olhando para a câmera.
Lypton salta da constatação de que diferentes hormônios podem levar células-tronco idênticas a diferenciar-se em diversos tipos de tecido, ligando e desligando genes, para a conclusão, totalmente injustificada, de que diferentes pensamentos podem ter o mesmo efeito, e em qualquer tipo de célula. Se isso fosse verdade, deveria ser possível transformar um dedo numa orelha – ou regenerar um membro perdido – apenas desejando algo assim.
Salto semelhante é dado por Joe Dispenza, autor de “You Are the Placebo”. O escritor parte da constatação de que o efeito placebo – uma mistura de condicionamento clássico e sugestão – é capaz de levar o corpo a produzir analgésicos opioides, para a alegação, completamente sem pé nem cabeça, de que crença e fé são capazes de induzir o corpo a produzir “qualquer coisa” que seja necessária para resolver um problema de saúde. Dizpensa alega ter sarado de uma lesão grave, na coluna vertebral, usando apenas visualizações e pensamento positivo.
Em síntese
As alegações centrais de “Heal – O Poder da Mente” são de que todas as doenças são autoinfligidas, provocadas por estresse emocional (emoções ruins criam “densidade”, que ou enfraquece o sistema imunológico ou causa câncer, ou ambos) e, portanto, são autocuráveis, e sabemos disso porque física quântica e epigenética blábláblá..
Existe um esforço, não muito sincero, de parecer não culpar a vítima (em algum momento se diz que você não tem culpa de causar o seu próprio câncer, se o estilo de vida moderno inevitavelmente “polui o subconsciente” de todos), mas a mensagem é clara: tudo acontece por uma razão, e a razão está na sua cabeça. Noonan Gores tenta vender isso como uma palavra de esperança. Mas não é. É uma palavra de desespero e culpa.
A ideia de Kelly Turner, expressa em seu livro “Radical Remission”, de que pacientes que se recuperam de tumores malignos, mesmo depois de esgotadas as opções de tratamento, “encontraram a cura de seus cânceres” é talvez a manifestação mais clara (e ingênua) desse princípio. Colecionar os hábitos desses “sobreviventes radicais” não faz o menor sentido sem um grupo de comparação: o de pessoas que, cultivando os mesmos hábitos, não sobreviveram.
O documentário acompanha um homem, que se apresenta como paciente de câncer cerebral, tendo um êxtase místico nos braços de Rob Wengin, o “Conduíte Divino”. Todos na sala se emocionam, e fica implícito que o paciente acredita ter sido curado. Mas foi? O filme não nos diz. A história para aí.
Eva, a segunda personagem principal, termina o documentário da mesma maneira como começou: sem diagnóstico ou tratamento claro definido para seu problema de pele. Um médico receitou-lhe esteroides; outro, antibiótico. A terapeuta holística que a ajudou a reviver traumas de infância também não produziu nenhum avanço.
A principal cura apresentada em “Heal – O Poder da Mente” é a de Elizabeth, que teve câncer e passou por quimioterapia e radioterapia. Mas o filme se recusa a ligar os pontos: a medicina “ocidental” é um monstro agressivo, e é a terapia alternativa que leva os louros. A realidade é o contrário disso: o uso terapias alternativas eleva o risco de vida para pacientes de câncer.
O verdadeiro “poder da mente”, parece, está em ignorar o óbvio e apaixonar-se por uma fantasia pseudocientífica, cruel – mas muito lucrativa para quem a vende.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência