Um remédio milagroso que promete realizar curas aparentemente impossíveis, mas que na verdade é inútil; um cientista de boa reputação que, de repente, larga tudo (e joga a biografia no lixo) para abraçar e promover a descoberta; pacientes desesperados que passam a exercer pressão política para que o produto seja liberado de qualquer maneira; passeatas; comícios; CPIs; ações na Justiça; oportunistas que bradam para que o fármaco receba “um teste justo”, enquanto, ao mesmo tempo, fazem todo o possível para inviabilizar (ou desacreditar) qualquer tipo de investigação válida.
Gente, muita gente, que sofre e morre porque decide evitar ou abandonar tratamentos cientificamente validados, e passa a apostar tudo na mágica novidade.
Poderia ser a história da “fosfoetanolamina sintética”, distribuída durante décadas a partir do campus da USP em São Carlos, e que se tornou fenômeno nacional em 2015. Poderia ser a história da cloroquina (e da ivermectina) na pandemia de COVID-19 que paralisou o mundo entre 2020 e 2023. Mas é um resumo da saga do Krebiozen, uma substância “misteriosa” que prometia curar todos os tipos de câncer e que mobilizou a opinião pública americana entre 1951 a 1964, gerando um grau de excitação que levou o presidente Lyndon Johnson a, no fim, tirar um tempinho da escalada militar no Vietnã para convocar uma comissão extraordinária a fim de analisar o caso.
Ao contrário do que ocorreu nos casos da “fosfo” e da cloroquina, os responsáveis pelo Krebiozen foram levados a julgamento por fraude – mas acabaram inocentados por júri popular e, exceto pelo dano a suas reputações, terminaram seus dias impunes.
Déjà vu
O caso Krebiozen, hoje largamente esquecido, é resgatado em livro recente do jornalista (e professor emérito de Jornalismo da Universidade de Illinois) Matthew Ehrlich. A obra, “The Krebiozen Hoax” (“A Fraude do Krebiozen”), é rica em paralelos com o presente – os Estados Unidos da época viviam uma fase de intensa polarização, trazida pela Guerra Fria e pela Caça aos Comunistas – e em lições que, infelizmente, têm grande chance de não serem aproveitadas. Sim, porque, durante a leitura, lembrei-me seguidas vezes da máxima de Hegel sobre o poder didático da história: “A única coisa que a experiência e a história ensinam é o seguinte: as pessoas e os governos nunca aprenderam nada com a história, e jamais agiram com base em quaisquer lições que pudessem ter tirado dela”.
A primeira, mais óbvia, é de como farejar fraude em saúde. Sério, gente, não é tão difícil. Ehrlich, citando o historiador James Harvey Young, oferece uma lista de dez itens: exploração do medo de que os tratamentos oferecidos pela medicina “oficial” sejam dolorosos ou ineficazes; promessa de bons resultados sem efeitos colaterais; alegação de uma descoberta científica fantástica e milagrosa; esquema de causa única e remédio único, mesmo para doenças complexas e multifacetadas, como o câncer; evocação do manto de Galileu, a imagem do cientista perseguido e incompreendido, adiante de seu tempo; apelo a teorias de conspiração (“eles” não querem que o público tenha acesso à cura); mudança de discurso de acordo com as circunstância (“mas nunca dissemos que funcionaria em casos avançados...” depois de terem prometido exatamente isso); apoio em testemunhos individuais, não em boa evidência científica; distorção da ideia de liberdade (de repente, o que está em destaque não é a venalidade de quem oferece curas impossíveis, mas o “direito” do paciente de “tentar qualquer coisa”); e haver grande transferência de fundos das vítimas para os promotores da “cura”.
A segunda lição é a importância de pôr de lado as paixões políticas na hora de avaliar questões que dependem predominantemente de evidência científica. O caso Krebiozen traz exemplos diametralmente opostos dos efeitos desse tipo de erro.
O Krebiozen surgiu numa época em que a Associação Médica dos Estados Unidos, a AMA – que publica até hoje o importante periódico científico JAMA – estava envolvida numa campanha, extremamente impopular entre os setores mais progressistas da sociedade, contra a ideia de serviços públicos de saúde e até mesmo contra a formação de grupos médicos e de seguros-saúde (iniciativas vistas como “socializantes”). Quando a AMA publicou um dossiê condenando o Krebiozen, políticos e organizações mais à esquerda viram um motivo para abraçar o fármaco.
Pouco depois, quando o reitor da Universidade de Illinois, George Stoddard, visto como “ateu” e “esquerdista”, decretou que a universidade não trabalharia mais com o Krebiozen, acusando os proponentes da substância de estarem agindo de má-fé ao se recusarem a fornecer as informações necessárias para um teste rigoroso do produto, a decisão foi usada por forças políticas conservadoras para removê-lo do cargo.
Com identidades ideológicas opostas, Stoddard e a AMA estavam certos sobre o Krebiozen, e pelas razões certas – o peso inegável da evidência. Já seus supostos correligionários, dos dois lados do espectro político, estavam errados, e pelas razões erradas – haviam entronizado narrativas que consideravam “politicamente corretas” acima dos fatos.
A história
A terceira lição é a de que não se deve confundir a palavra de um cientista, não importa o tamanho de seu prestígio, com o veredicto da ciência. O inventor do Krebiozen era um médico imigrante iugoslavo, radicado primeiro na Argentina e depois nos Estados Unidos, chamado Stevan Durovic. Mas seu maior campeão, perante as autoridades e a opinião pública, foi o professor de Fisiologia Andrew Ivy.
Em 1951, Ivy era um estadista no mundo da ciência médica norte-americana: havia sido o porta-voz designado pelos Estados Unidos para testemunhar sobre ética médica durante o julgamento dos crimes nazistas em Nuremberg. Na época em que decidiu se tornar a face do Krebiozen, ocupava um cargo único na Universidade de Illinois, um posto criado especialmente para ele: uma pró-reitoria responsável pela supervisão dos três cursos de saúde que a instituição mantinha na época (Medicina, Farmácia e Odontologia).
A posição privilegiada de Ivy na universidade explica o envolvimento inicial dessa instituição na saga do Krebiozen – até a paciência do reitor Stoddard para com Durovic estourar de vez. A causa da ruptura foi a recusa do inventor em revelar a fórmula de seu remédio aos cientistas que deveriam testá-lo, porque supostamente temia ser plagiado, e a recusa em patentear a fórmula (que assim estaria protegida), porque supostamente espiões soviéticos poderiam copiar a patente.
Ehrlich passa boa parte do livro tentando decifrar a esfinge de Ivy, seu apoio inabalável ao Krebiozen, sua determinação em fazer vistas grossas para os sinais evidentes de charlatanismo e o comportamento reiteradamente fraudulento de Durovic, mesmo após sofrer a indignidade de ser arrolado como réu num julgamento criminal por fraude. O processo foi aberto depois que investigação conduzida pela FDA demonstrou que as ampolas de Krebiozen, distribuídas a milhares de pacientes desesperados em troca de “doações” de US$ 9,50 por unidade, continham apenas uma mistura de óleo mineral e creatina – e custavam poucos centavos para produzir.
Uma combinação de afinidade intelectual e vaidade parece ser a melhor resposta. Afinidade pela ideia do que o Krebiozen seria – um produto biológico, possivelmente um hormônio, capaz de suprimir a multiplicação celular – e o amor-próprio de um ego monstruoso. Depondo perante uma comissão de inquérito estabelecida pelo Legislativo do estado de Illinois, Ivy ouviu a pergunta de se algum dia já estivera errado sobre alguma coisa. “Não”, respondeu.
Era uma egolatria inabalável mesmo em face da autodestruição. Dez anos depois do início da batalha pelo Krebiozen, Ivy havia deixado de ser a “consciência da Medicina americana” (título concedido a ele pela revista Time, por seu trabalho em Nuremberg) e se tornado um embaraço, alguém que colegas de velha data fingiam não conhecer nos corredores dos eventos acadêmicos.
Vítimas
“The Krebiozen Hoax” está repleto de narrativas de casos, várias delas organizadas de modo que, no início de um capítulo, ficamos sabendo que pacientes de câncer disseram se sentir melhor, comer melhor, dormir melhor, sofrer menos dor depois de algum tempo tomando o remédio – para, no fim do mesmo capítulo, sermos informados de que esses pacientes haviam morrido da doença, muitas vezes sob grande sofrimento.
Talvez o caso mais pungente narrado seja o de Diane Lindstrom, diagnostica em 1963, aos 18 anos, com câncer ósseo numa das pernas, e com recomendação de amputação. Rejeitando a solução radical, Diane decidiu apostar no Krebiozen. O médico que cuidava dela acusou Ivy de comportamento antiético. Ivy respondeu que o colega era “invejoso”. A decisão virou notícia nacional, com cartas de apoio chegando até do Havaí. Três meses depois, o tumor havia crescido de forma considerável, causando muita dor. Nove meses depois, ela estava morta.
Assim como na história de outras fraudes médicas – deliberadas ou produzidas por autoengano, vaidade desbragada ou boas intenções desencaminhadas, tanto faz – o número total de vítimas é difícil, se não impossível, de estimar. Um comício pró-Krebiozen realizado em Nova York em 1964 reuniu mil e quinhentos manifestantes. Um piquete diante da Casa Branca terminou com algumas pessoas presas.
Ehrlich encerra o livro com uma última lição: “Devemos sempre nos lembrar que a fraude médica quase com certeza estará entre nós para sempre, e devemos ser capazes de reconhecer seus sinais, quando aparecerem”. “Devemos”, sem dúvida. Mas, como sociedade – mais até, como espécie – somos capazes?
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)