Na prática, a teoria sobre "teoria" muitas vezes é outra

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27 jan 2025
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teoria

 

“A evolução é apenas uma teoria”, dizem muitos criacionistas. A maioria dos biólogos evolutivos ou entusiasta do combate ao criacionismo sabe exatamente a resposta padrão. Vamos tomar como exemplo o que diz Richard Dawkins em seu livro “O Maior Espetáculo da Terra: As Evidências da Evolução”, cuja edição em português do Brasil foi publicada em 2009 pela Companhia das Letras. No primeiro capítulo, Dawkins cita duas definições de “teoria”, de acordo com o Oxford English Dictionary:

Teoria, acepção 1: Conjunto ou sistema de ideias ou afirmações apresentado como explicação ou justificativa para um grupo de fatos ou fenômenos; hipótese que foi confirmada ou estabelecida por observação ou experimentação e é proposta ou aceita como explicação para os fatos conhecidos; declaração do que se considera como as leis, princípios ou causas gerais de algo conhecido ou observado.

Teoria, acepção 2: Hipótese proposta como explicação; por conseguinte, mera hipótese, especulação, conjectura; ideia ou conjunto de ideias a respeito de alguma coisa; opinião ou ideia individual.

Segundo Dawkins, “os cientistas usam a acepção 1, enquanto os criacionistas — talvez por malícia, talvez com sinceridade — optam pela acepção 2”, e adiciona que “cientistas e criacionistas interpretam o termo ‘teoria’ em duas acepções bem distintas”.

Para não correr o risco de tirar conclusões com base em uma única fonte (embora eu acredite que ela seja bastante representativa, dada a influência de seu autor), vejamos também o que consta no volume “Ciência, Evolução e Criacionismo”, publicado pela National Academy of Science (NAS, 2008, p. 11):

“No uso cotidiano, ‘teoria’ geralmente se refere a uma suposição ou especulação. Quando as pessoas dizem: ‘Tenho uma teoria sobre por que isso aconteceu’, elas estão frequentemente tirando uma conclusão com base em evidências fragmentadas ou inconclusivas.

“A definição científica formal de teoria é bastante diferente do significado cotidiano da palavra. Refere-se a uma explicação abrangente de algum aspecto da natureza que é sustentada por um vasto conjunto de evidências”.

No discurso, tudo muito bonito. Na prática, contudo, a situação é bem diferente. Ao contrário do que Dawkins afirma, não é verdade que os cientistas chamem de teoria apenas o que se enquadra na acepção 1. E ao contrário do que sugerem Dawkins e a NAS, também não é verdade que os cientistas guardam a palavra teoria para se referir a “uma explicação abrangente de um aspecto importante da natureza, sustentada por muitos fatos reunidos ao longo do tempo”. E como aponta o biólogo evolutivo Arlin Stoltzfus, é bem fácil mostrar isso.

 

Teorias e teorias

Vamos começar com o século 19. Você lembra do John Dalton e seu modelo de "bola de bilhar" para o átomo? Quando Dalton publicou suas ideias sobre o átomo, não eram nem consenso que átomos sequer existiam. Porém, em um de seus cadernos de 1803 (discutido em Rascoe & Harden, 1896), Dalton fala sobre uma “nova teoria sobre a constituição última dos átomos dos corpos”. No momento da concepção da ideia, Dalton já a chama de teoria. Não há aqui “muitos fatos reunidos ao longo do tempo”.

Stoltzfus traz mais uma série de exemplos, dois dos quais gostaria de destacar aqui, uma vez que sou paleontólogo e biólogo evolutivo incipiente. Em 1912, Alfred Wegener publicou a sua “Teoria da Deriva Continental”, da qual você provavelmente ouviu falar nas aulas de Geografia do ensino médio. A ideia demorou pra pegar, muito por conta da falta de evidência, mas isso não impediu que os cientistas continuassem a se referir às ideias de Wegener sobre a deriva continental como uma teoria. Por exemplo, esse artigo de 1928, publicado na Nature, discute um simpósio sobre a “Teoria da Deriva Continental”, quando essa teoria ainda não era amplamente aceita. 

Deixando um pouco a física e a geologia de lado, nos voltemos agora para a biologia evolutiva. Claro que eu não posso deixar de fora uma das maiores obras de todos os tempos — A Origem das Espécies (1859). Darwin usa o termo “teoria” mais de uma centena de vezes. Ele o usa em situação como “não posso duvidar que a teoria da descendência com modificação”, ou simplesmente “minha teoria”, quando fala de forma mais geral sobre o conjunto de ideias.

Darwin também usa o termo no sentido mais específico, por exemplo, ao se referir à “teoria da seleção natural”. Nem a teoria da descendência com modificação, nem a seleção natural, quando publicadas em 1859, eram apoiadas por uma imensidão de evidências (ao contrário do cenário de hoje, evidentemente). Pior ainda é quando ele usa o termo em sentença assim: “É preciso admitir que esses fatos não recebem nenhuma explicação na teoria da criação” (p. 478). Aliás, “teoria da criação” aparece sete vezes na primeira edição do livro, embora Darwin pensasse que ela não se sustentava. Por sinal, desde os tempos de Darwin que cientistas empregavam o termo “teoria de Lamarck”, apesar de as ideias desse naturalista já serem amplamente rejeitadas na época. E nós continuamos a usar o termo. Uma teoria falida continua sendo uma teoria.

Mas esse uso mais solto da palavra “teoria” não é coisa dos séculos 19 e 20. Deixo exemplos elencados por Stoltzfus e trago os meus. Considere, por exemplo, a “Teoria do Equilíbrio Móvel” (Do original, Shifting Balance Theory) da genética de populações. A ideia foi proposta em 1931 por Sewall Wright, mas só mais tarde recebeu o nome. Pelo que pude apurar, antes dos anos 1960, não era tão comum usar-se o termo “Shifting Balance Theory”. Mas ele existe pelo menos desde 1965. Isso reflete um acúmulo de evidência entre as décadas de 1930 e 1960? De forma alguma. E hoje o termo continua sendo usado, mesmo que a situação não seja exatamente das melhores. Em artigo publicado em 2012 na prestigiada PLoS ONE, por exemplo, Chouteau & Angers dizem o seguinte: “Os resultados estão de acordo com as expectativas da Teoria do Equilíbrio Móvel de Wright e representam, até onde sabemos, a primeira demonstração empírica dessa teoria amplamente contestada em um sistema natural” [ênfase minha].

Ainda na genética de populações, a Teoria Neutra da Evolução Molecular era chamada de “teoria” (e.g., Kimura & Ohta, 1971) mesmo antes de acumular um grande corpo de evidência. Aliás, ainda hoje há biólogos (do meu ponto de vista, confusos) que acreditam que os fatos conhecidos atualmente invalidam a Teoria Neutra. Por exemplo, Kern & Hahn (2018) escreveram:

“Argumentamos que a Teoria Neutra foi apoiada desde o início por evidências teóricas e empíricas pouco confiáveis e que, à luz de dados modernos em escala genômica, podemos rejeitar de forma decisiva sua universalidade. A ubiquidade da variação adaptativa, tanto dentro quanto entre espécies, indica que uma teoria mais abrangente da evolução molecular deve ser buscada”.

O trecho em destaque implica que, assim como muitas teorias, haverá um momento (frequentemente décadas) em que ela não será apoiada por evidências robustas, mas ainda assim será uma teoria, por motivos que veremos em breve. Nota: há diversas razões para pensar que Kern & Hahn estão errados em sua avaliação sobre o status atual da Teoria Neutra. Clique aqui para uma resposta ao artigo deles.

Um último exemplo, antes das considerações finais. Existe uma ideia na física muito popular, sobretudo entre o público geral interessado em física e teorias de unificação, chamada Teoria das Cordas. Essa teoria propõe que as partículas fundamentais não são pontuais, mas pequenas cordas vibratórias, cuja vibração determina suas propriedades. Ela busca unificar a gravidade com as outras forças fundamentais em uma única estrutura teórica. Apesar de toda a alegada elegância matemática, até o momento, não há evidência empírica contundente a favor da teoria. Aliás, um dos principais problemas com a Teoria das Cordas é que ela é extremamente difícil de testar, devido suas previsões envolverem a experimentação com altas energias e escalas extremamente pequenas, via de regra fora do alcance da tecnologia moderna. Ainda assim, todo munda chama de teoria.

 

Teorias científicas 

O principal ponto aqui não é argumentar que todas as teorias têm o mesmo valor epistêmico. Isso é loucura e não seria uma conclusão lógica derivada do argumento apresentado. O que quero dizer é que simplesmente não é verdade que os cientistas usam consistentemente o termo teoria para se referir “a uma explicação abrangente de algum aspecto da natureza que é sustentada por um vasto conjunto de evidências”. Não é verdade.

Mas é verdade, sim, que a Evolução, a Relatividade Geral, e várias outras teorias, são teorias muito robustas. Isto é, elas de fato acumularam um forte corpo de evidência ao longo do tempo. Mas não é isso que as torna teorias. Talvez fosse melhor perguntar para um filósofo (aliás, recomendo esta leitura aqui), mas podemos voltar ao Dicionário Oxford, citado por Dawkins. Uma teoria é um “conjunto ou sistema de ideias ou afirmações apresentado como explicação ou justificativa para um grupo de fatos ou fenômenos”. Os princípios que formam esse sistema podem ser biológicos, físicos, químicos, genéticos, etc. Portanto, uma teoria científica é uma estrutura explanatória. Se uma teoria virá a ser bem-sucedida ou não... são outros quinhentos.

Considere a Teoria da Ancestralidade Comum Universal. Segundo essa teoria, todos os seres vivos atuais descendem de um mesmo ancestral. Foi proposta para explicar diversos fatos que observamos nos seres vivos. Por exemplo, a presença de essencialmente a mesma constituição molecular (inclusive o mesmo tipo molécula para carregar a informação genética), bem como os padrões hierárquicos de semelhanças e diferenças morfológicas entre os seres vivos. Uma teoria rival seria a proposta que nega essa universalidade; ou seja, podemos descender de mais de um ancestral. A Teoria da Ancestralidade Comum Universal foi testada contra suas rivais. E passou no teste!

Quando confrontado com “a Teoria da Evolução é apenas uma teoria”, o melhor, talvez, seja focar no “apenas”. Você pode (ou deve) deixar claro os diferentes significados que a palavra teoria tem, mas o ponto central é que a teoria evolutiva é um corpo de princípios científicos que, quando unidos de forma coesa e lógica, forma um cerne estrutural capaz de explicar uma ampla gama de fenômenos. Mais ainda, explica melhor que suas rivais. E tem o benefício de não ser contraditada, de maneira geral, pelos fatos que conhecemos. Então, não é “apenas” uma teoria, mas uma “excelente” teoria.

 

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

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