As vacinas aprovadas para uso na prevenção da COVID-19 são seguras e têm salvado milhões de vidas em todo o mundo. Todas essas vacinas, independentemente da tecnologia ou plataforma adotada, seguem um mesmo princípio – dar ao sistema imune um “gostinho” do vírus causador da doença, para que esteja preparado para combater o invasor real, se e quando ele chegar.
As vacinas que usam o mecanismo de RNA mensageiro, ou mRNA, fazem isso estimulando o corpo a produzir uma proteína característica do vírus. Isso ocorre apenas por um tempo limitado, e a proteína se degrada rapidamente. Numa infecção real pelo SARS-CoV-2, o vírus induz o corpo a produzir não só essa proteína, mas cópias inteiras de si mesmo – em grandes quantidades, por um longo tempo, e com consequências que podem incluir doença grave e morte.
O sucesso da vacinação é evidente: não só a pandemia deixou de ser uma emergência global após o início da aplicação dos imunizantes, como nos Estados Unidos, por exemplo, a taxa de mortalidade por COVID-19 é cinco vezes maior entre não vacinados, na comparação com vacinados.
A despeito disso, no entanto, circulam na Internet, há mais de um ano, boatos e rumores de que o mundo estaria passando por uma “pandemia de mortes súbitas” causadas pela vacinação, principalmente pelo uso do mecanismo do mRNA. Alguns dos promotores dessa ideia chegaram a ser ouvidos no Senado Federal do Brasil.
Essa narrativa, no entanto, tem um problema grave: se essas mortes estão acontecendo, onde estão os mortos? Durante a pandemia, todos vimos – por exemplo, na tragédia dos grandes sepultamentos coletivos de Manaus – como é impossível esconder surtos abruptos de mortalidade. Eles aparecem: nos hospitais, nos cemitérios, nas estatísticas. E os fatos e os números, tanto nacionais quanto internacionais, simplesmente não apoiam a narrativa da “morte súbita”.
No Brasil
De acordo com o mais recente boletim epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde sobre efeitos adversos supostamente causados pelas vacinas para COVID-19, publicado em junho de 2023, até então o Brasil havia registrado apenas 50 óbitos que tiveram uma "relação causal considerada como consistente com a vacinação" (nível A) em um universo de quase 385 milhões de doses aplicadas em todo país, com exceção do estado de São Paulo, desde janeiro de 2021, início da vacinação, até março de 2023. “Consistente”, aqui, significa que existe alguma lógica em imaginar que a vacina tenha tido relação com o óbito – não que a causa tenha sido confirmada.
A questão da lógica é importante: não é porque uma coisa acontece depois de outra (por exemplo, uma pessoa passar mal depois de ser vacinada) que uma coisa foi causada pela outra. Eventos que se sucedem no tempo podem estar ligados apenas pelo acaso ou coincidência. É por isso que, quando um efeito adverso se segue à aplicação de uma vacina, é necessário analisar qual a probabilidade de as duas coisas estarem conectadas: mal comparando, não é porque o telefone toca depois que você entra no banho que abrir o chuveiro causa a chamada.
Nenhuma das mortes com mais alta probabilidade de relação com a vacina foi de crianças ou adolescentes, com apenas um caso de óbito por miocardite classificado como “indeterminado”, porque “os dados da investigação são conflitantes em relação à causalidade”. Entre adultos, tratando especificamente de mortes atribuídas a miocardite/pericardite, duas condições que muitos associam às vacinas, o boletim encontra cinco óbitos em que a condição foi inicialmente atribuída aos imunizantes. Mas, após investigação, dois foram descartados e três, por terem dados conflitantes, foram classificados como “indeterminados”.
O mais recente Boletim Epidemiológico Especial da COVID-19 publicado pelo Ministério da Saúde em dezembro de 2023 e atualizado agora em fevereiro, registra 211 mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (Srag) associada à COVID-19 na população brasileira entre zero e 19 anos apenas no ano passado, mais da metade (112) em bebês com menos de um ano, e outras 59 em crianças com um a 11 anos de idade. Somando às 3.562 mortes registradas de 2020 a 2022, são quase 4 mil vítimas fatais da COVID-19 nesta faixa etária até o fim de 2023.
Além disso, o mesmo boletim aponta o registro de 2.121 casos de Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P) associada à doença ao longo de toda a pandemia, com 144 mortes, com um número não especificado de ocorrências suspeitas ainda em investigação. Não é coincidência o fato de que o número de casos registrados de SIM-P relacionada à COVID-19 caiu drasticamente com o início da vacinação da população brasileira de 5 a 11 anos, em janeiro de 2022, saindo de 868 em 2021 para 442 naquele ano e apenas 68 no ano passado.
Já entre toda população brasileira, o último boletim contabiliza mais de 38,2 milhões de casos de COVID-19 e 708.638 mortes atribuídas à doença de fevereiro de 2020 até dezembro de 2023. E, novamente, os números mostram a importância da vacinação, saindo do pico de 424.107 mortes em 2021 - a maior parte nos primeiros meses do ano, quando a aplicação dos imunizantes mal havia começado - para 74.797 em 2022, e 14.785 no ano passado.
Todos esses números confirmam que as vacinas contra COVID-19 aprovadas e aplicadas no Brasil são seguras e eficazes, e que os eventuais riscos trazidos pela vacinação são muito menores aos sofridos por quem decide encarar a doença sem a proteção do imunizante: vamos lembrar que as mortes que talvez possam ser atribuídas à vacina não passam de 50, enquanto que as mortes por COVID-19, antes de haver vacinas disponíveis, eram da ordem das centenas de milhares, número que caiu drasticamente depois dos imunizantes terem se disseminado.
Os 50 óbitos que tiveram relação considerada “consistente” com a vacinação representam 0,013 casos por 100 mil doses aplicadas. Artigo publicado em The Lancet – Infectious Diseases, citado no Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde, estimou que a vacinação evitou no Brasil entre 700 mil e 880 mil mortes até o final de 2021. Assim, para cada óbito com relação consistente com a vacinação, entre 43.750 e 55.000 vidas foram salvas pelos imunizantes.
Lá fora
Dados internacionais também não apoiam a ideia de que as vacinas para COVID-19 estejam causando mais mortes do que evitam.
O Escritório Nacional de Estatísticas da Inglaterra (país que adotou a vacina de mRNA em dezembro de 2020) produz tabelas comparando as taxas de mortalidade de vacinados para COVID-19 às de não vacinados – e não apenas mortes provocadas pelo SARS-CoV-2, mas também mortes por “outras causas”. Esses números são importantes porque permitem testar as hipóteses de que a vacina não protege contra COVID-19 (nesse caso, as taxas de mortalidade de vacinados e não vacinados deveriam ser iguais ou muito próximas) e de que as vacinas induzem mortes (nesse caso, a taxa de morte por “outras causas” deveria ser maior entre os vacinados).
O que as tabelas dizem? Os números (normalizados por faixa etária) mais recentes, de maio de 2023, mostram que, em termos de mortalidade geral, a taxa entre os ingleses que receberam pelo menos uma dose de vacina é 9% menor do que a dos não vacinados. Já a dos ingleses que receberam quatro doses é 10% menor. No caso de mortes relacionadas à COVID-19, a taxa dos vacinados é 50% (pelo menos uma dose) e 54% (quatro doses) menor do que a dos não vacinados.
E quanto às mortes não relacionadas a COVID-19? A taxa de mortalidade dos vacinados é 6,5% (uma dose) e 8% (quatro doses) menor do que a dos não vacinados – diferença que vai no sentido oposto ao esperado caso a hipótese “vacinas causam mortes súbitas” estivesse correta. No apanhado mês a mês, entre abril de 2021 e maio de 2023, a taxa geral de mortalidade dos não vacinados sempre se mostra mais alta do que a dos vacinados.
Atenção
A pandemia de COVID-19 foi um evento traumático para todo o mundo, que além de ceifar vidas e prejudicar a economia, agravou a polarização política que já vinha se instalando em diversas partes do planeta, inclusive no Brasil. Essa polarização acabou fazendo com que questões de ciência e de saúde pública acabassem se transformando em sinalizações de aliança política – de repente, ser a favor das vacinas, ou desconfiar delas, passou, para muita gente, a representar não o resultado não de deliberação racional, mas torcida ideológica.
Nenhum lado da disputa política ficou imune. Hoje é fácil lembrar da oposição visceral de Jair Bolsonaro aos imunizantes, mas também houve o episódio da corrida de parte da esquerda em defesa da vacina russa Sputnik V, rejeitada (por bons motivos) pela Anvisa.
Nesse ambiente, é muito fácil chamar a atenção para correlações espúrias e para casos isolados e mal explicados, criando a impressão de que existe um problema grave onde não há nada – ou inflando certos riscos, tirando-os de contexto. Mas um olhar para o quadro completo mostra que as vacinas aprovadas para COVID-19 são eficazes, seguras – e que o risco de não se vacinar é muito maior do que o de receber o imunizante.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência