Um pseudo-documentário americano de pouco mais de uma hora de duração estreou no Twitter na segunda-feira, 21 de novembro, e mesmo (ainda) sem legendas em português, já circula no submundo dos aplicativos de mensagens da comunidade antivaxxer brasileira. Por causa disso, e mesmo correndo o risco de chamar atenção indevida para essa peça de má ficção, creio que é o caso de escrever a respeito e explicitar o absurdo, a desonestidade e as falácias que bombardeiam o espectador que se submete aos 68 minutos de “Died Suddenly” (“Morreu De Repente”, em tradução literal).
Primeiro, ao absurdo: a tese central do filme é de que as vacinas para COVID-19 (aparentemente, todas elas, não importa qual o fabricante ou a tecnologia) seriam parte de um plano elaborado e implementado por elites satânicas – no sentido literal da palavra – para reduzir a população global, causando uma epidemia de mortes súbitas e abortos.
A tese é insustentável por várias razões. Uma delas é que simplesmente contradiz os fatos. As taxas de mortalidade vêm caindo desde a implementação das vacinas para COVID-19, não o contrário.
A taxa de excesso de mortes – número de pessoas mortas na comparação com a média dos cinco anos anteriores à chegada da pandemia – era, em 31 de janeiro de 2021, de 34% no Brasil (onde a vacinação teve início em 17 de janeiro do mesmo ano) e de 29% nos EUA (onde a vacinação havia começado em 14 de dezembro de 2020). O dado mais recente disponível no Our World in Data para os dois países é de 7% no Brasil (30 de setembro) e 2% nos EUA (9 de outubro).
Ou seja, se a vacina é um plano das elites (incluindo Bill Gates, o Rei Charles da Inglaterra, George Soros e a ONU) para aumentar a mortalidade global, essas elites são ridiculamente incompetentes. Um plano satânico realmente efetivo para reduzir a população de forma drástica seria deixar o vírus se espalhar indiscriminadamente. Como? Por exemplo, promovendo a falsa ideia da imunidade de rebanho “natural”; desencorajando o distanciamento social e o uso e máscaras; promovendo remédios inúteis, para gerar uma falsa sensação de segurança na população; espalhando o medo de vacinas. Quem teria feito tudo isso?
Depois do absurdo vem a desonestidade, que se desdobra em vários níveis. O vídeo está repleto de clipes de pessoas caindo, desmaiando, tendo convulsões, extraídos ao que parece de registros de câmeras de segurança – há pelo menos dois casos de pessoas que caem sob vagões de metrô –, câmeras de celular e telejornais, com a insinuação de que essas pessoas todas sofreram “morte súbita” causada por vacinas.
Mas muitos desses clipes na verdade não mostram mortes, apenas desmaios ou quedas. Nem sequer há evidência de que muitas das pessoas que aparecem nos clipes foram vacinadas contra COVID-19. Alguns clipes datam de antes do início da vacinação.
E mesmo se todas as pessoas que aparecem nos clipes sofrendo algum revés tivessem sido imunizadas, qual a razão para vincular o desmaio, morte ou queda à vacina? Alguém pode tomar vacina e, ao voltar para casa a pé num dia quente, desmaiar de insolação. Ou ir para a balada, embebedar-se e passar mal. Ou comer um lanche estragado antes de ir para o posto de saúde, e ter uma diarreia quinze minutos depois da injeção. Qualquer um pode ter um problema de saúde súbito a qualquer momento, e o fato de o problema manifestar-se depois da vacina pode muito bem ser apenas uma coincidência.
Aqui chegamos a outro ponto em que o “documentário” mostra-se claramente desonesto: números do VAERS, o sistema de comunicação de eventos adversos atribuídos a vacinas do governo americano, são apresentados como se fossem os números de evento adversos confirmados. O que é uma alegação fraudulenta.
O VAERS é um sistema onde qualquer pessoa que ache que sofreu um efeito adverso de uma vacina pode entrar e deixar um comunicado. Mas, como os exemplos da insolação e do lanche ruim mostram, a existência, ou não, de uma relação real de causa e efeito entre a vacina e a adversidade precisa ser investigada, para eliminar erros, comunicados falsos e coincidências. Ainda mais num ambiente cultural e psicológico saturado de medo e apreensão, é altamente provável que um número significativo de pessoas procure o VAERS para comunicar problemas imaginários e coisas que não têm nada a ver com a vacina.
No Brasil, a Anvisa tem um sistema semelhante ao VAERS americano, e no início do ano o ministro Marcelo Queiroga, tentando agradar ao chefe, cometeu numa entrevista o mesmo erro dos produtores do documentário.
No campo das falácias, a mais utilizada é exatamente a de confundir sequência temporal com sequência causal – isto depois daquilo, logo isto por causa daquilo, o que é um raciocínio inválido: depois não é sinônimo de porque –, somada ao acúmulo de casos isolados: os astros de “Died Suddenly” são agentes funerários (!!) que alegam estar encontrando coágulos sanguíneos misteriosos nos cadáveres que têm recebido para embalsamar, após o início da vacinação. Um dos supostos agentes ouvidos, dando entrevista contra a luz para não ser identificado, ilustra este artigo.
Pondo de lado a questão de até que ponto agentes funerários seriam competentes para fazer avaliações que esperaríamos ouvir de médicos legistas (uma categoria de especialistas que, curiosamente, não se vê representada no filme), e supondo que todos os agentes funerários apresentados sejam mesmo agentes funerários e todos os supostos coágulos sejam mesmo coágulos e não papel machê, tiras de borracha ou tripas de galinha – porque, dada a forma desonesta como os clipes de desmaios e de quedas foram manipulados, a expectativa de integridade quanto ao resto do filme é muito baixa –, o que se tem é um conjunto de anomalias cuja extensão, significância e conexão com as vacinas jamais é estabelecida, apenas (mal) insinuada.
E este é o ponto crucial: todo o vídeo é feito de falácias e insinuações, sem nenhuma evidência. Não há nada de substantivo em “Died Suddenly” que conecte os problemas “denunciados” no vídeo, sejam os claramente falsos (aumento da mortalidade, que como vimos não está acontecendo) ou os duvidosos (desmaios, coágulos) aos imunizantes.
O “documentário” tenta estabelecer uma linha temporal – “essas coisas” teriam começado a acontecer depois do início da vacinação – mas, além da inferência ser inválida (depois não é porque), nem sequer fica claro se “essas coisas” são mesmo algum tipo de fenômeno real. E nem somos apresentados a provas convincentes de que, caso sejam, já não estavam acontecendo antes de a vacina chegar. Mesmo a sequência temporal é mal estabelecida.
O vídeo tenta ainda ligar o aumento no número de natimortos durante a pandemia às vacinas. Neste caso temos um problema real, mas a causa não é o imunizante, e sim, provavelmente, o impacto da pandemia na atenção pré-natal. O fenômeno já era notado em agosto de 2020, antes, portanto, de haver vacinas disponíveis.
Um dos produtores do vídeo é o ex-caçador de recompensas e atual podcaster de extrema-direita Stew Peters, que num discurso certa vez acusou o médico Anthony Fauci, principal responsável pelo combate à COVID-19 nos Estados Unidos, de “liberar uma arma biológica” (as vacinas), e em seguida pediu que ele fosse linchado. Gente fina.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)