Não há sinal mais claro de que estamos agora na fase “pós” da pandemia de COVID-19 do que a proliferação de investigações públicas, relatórios sobre lições aprendidas e análises post hoc (depois do fato). Reavaliar e discutir sobre o quão razoável foram as políticas de lockdown (confinamento) é agora algo quase constante na mídia, particularmente no Reino Unido.
No entanto, tendo como pano de fundo o estudo contínuo sobre a pandemia de COVID-19, pontos de vista alternativos e à margem da ciência estão se tornando populares. E os debates online abandonaram grande parte das nuances éticas e políticas que este tipo de discussão merece.
Conter a COVID-19 foi uma tarefa imperfeita e difícil que exigiu ponderar interesses de saúde pública, sociais, éticos, psicológicos, econômicos e políticos diante de um novo vírus que se espalhou rapidamente em 2020. Mas, com o aumento da distância temporal, questões espinhosas e difíceis tendem a se resumir a falsas narrativas e a um histórico de escolhas simples. Em outras palavras, o “revisionismo pandêmico”.
É importante aprender com a forma como comunidades e governos reagiram à crise pandêmica. Com o benefício da retrospectiva, os relatos estabelecidos de intervenções bem-sucedidas e as histórias de fracasso geralmente assumem novos tons. Investir em um aumento no acesso a testes rápidos de antígenos provavelmente valeu a pena. Confiar a amigos políticos a produção de aventais hospitalares, não.
Em uma cultura de saúde global focada na preparação, só um registro sólido de fatos, relatórios e depoimentos de testemunhas bem comprovados pode dissipar a névoa da pandemia e revelar lições. Mas as investigações post hoc também têm sido uma ferramenta política para apontar oficialmente a culpa desde o século XIX.
O ato de olhar para trás no tempo não é apenas um momento de ajuste de contas, mas uma oportunidade de revisão. Como resultado, mesmo análises detalhadas não conseguem evitar que histórias simplistas sobre “crianças assustadas com o confinamento” se instalem. Na maioria das vezes, elas se tornam substitutos para problemas sociais e políticos estruturais, desigualdade, subfinanciamento e debates morais e éticos incômodos sobre quem deve ser protegido ou considerado vulnerável.
A resposta à COVID-19 mostrou que as lições das pandemias anteriores tiveram uso limitado e podem ser prejudiciais quando tiradas do contexto. Pesquisas estabeleceram que esses diagnósticos de sucesso e fracasso podem mudar com o tempo. Relatos há muito estabelecidos sobre o que foi aprendido com a pandemia de gripe de 1918, ou com a poliomielite e o HIV/Aids, não podem escapar do fato de que “a política molda o que lembramos”.
Os surtos de poliomielite que causaram transtornos globais nas décadas de 1940 e 50 foram vistos de forma significativamente diferente ao longo do tempo. O sucesso da vacinação poderia ser comemorado publicamente em um ano, como na Hungria em 1958, para ser descartado como um fracasso espetacular no ano seguinte, quando a epidemia voltou com força total. As lições aprendidas eram altamente contingentes.
O apontar de dedos que se seguiu é muito familiar hoje em dia: o governo culpando o público por não tomar a vacina, as pessoas culpando o Estado por não ter provisões suficientes, debates sobre restrições de viagem e equipamentos de vacinação defeituosos.
Narrativas simplificadas
As nuances que destacavam as complexidades do controle da epidemia de poliomielite logo deram lugar a uma narrativa simplificada: a vacina Salk, a primeira vacina para tratar a poliomielite, foi apontada como a causa de todos os problemas, quando a nova vacina Sabin tomou seu lugar. Após o fim da epidemia, no final da década de 1960, desapareceram as conversas sobre a responsabilidade pela saúde, enquanto as crianças e os adultos que ainda lutavam contra a doença se tornaram invisíveis.
Mais recentemente, a história da Aids é contada com muita frequência como a vitória da “tecnociência” que colocou uma pandemia furiosa sob controle por meio de inovação farmacêutica eficaz e sofisticada. No entanto, em meio ao medo e a raiva da década de 1980, foi uma história complexa construída com base em anos de negligência política preconceituosa em relação à disseminação do vírus.
Isso fez com que os ativistas pedissem uma mudança na regulamentação de medicamentos, que os reguladores aceitassem lentamente novas estruturas para a liberação rápida de medicamentos experimentais e que empresas como a Burroughs Wellcome aproveitassem a oportunidade de obter lucros substanciais com o AZT, o primeiro medicamento antirretroviral eficaz para HIV/Aids.
Nas narrativas achatadas da inovação farmacêutica bem-sucedida, a política dos grupos de ativistas e os efeitos da pandemia nas práticas sexuais muitas vezes se perdem.
No Reino Unido, esse embelezamento do registro histórico sobre a pandemia de COVID-19 está em andamento. Os comentaristas escrevem com alegria contra os proponentes da agora infame estratégia “zero COVID”, transformando a humildade retrospectiva dos defensores da saúde pública em histórias mal direcionadas de culpabilidade moral e política.
Analisando o tom implacável de tais artigos de opinião e o julgamento contundente de postagens proeminentes nas mídias sociais, é como se eles estivessem pedindo que alguns estudiosos da saúde pública, em vez da má administração do governo, arcassem com o ônus moral, econômico e humano dos erros cometidos desde fevereiro de 2020.
À medida que os acertos e erros das restrições e do distanciamento social são examinados, e à medida que os céticos do confinamento acreditam que suas alegações foram justificadas devido às crescentes preocupações com a saúde mental pós-pandemia, o risco não é que uma intervenção extrema de saúde pública perca o apoio popular - o confinamento era, na melhor das hipóteses, a opção menos pior.
O risco real é que essa falsa atribuição de culpa, juntamente com a lembrança errônea do passado, continue a corroer um princípio de solidariedade que está no centro das ações e atitudes em saúde pública.
São as vozes dos que morreram na pandemia, dos mais vulneráveis ao vírus, no passado e no presente, dos mais afetados pelos efeitos debilitantes da COVID longa e dos que defendem uma resposta à pandemia com base em princípios de equidade, que são apagadas desse quadro cada vez mais popular, populista e revisionista.
Lukas Engelmann é Chancellor's Fellow de Sociologia e História da Biomedicina na The University of Edinburgh
Dora Vargha é professora de História e Humanidades Médicas na Humboldt University of Berlin
Este artigo é uma republicação do The Conversation Brasil sob licença Creative Commons. Leia o artigo original