“Mesas quânticas” dependem de fé, não ciência

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20 jul 2023
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pêndulo

 

Quem é leitor frequente da Revista Questão de Ciência deve saber que a física quântica tem sido indevidamente utilizada como pano de fundo por diversas ideias e produtos pseudocientíficos, como os coaches quânticos que oferecem o segredo da prosperidade, terapias inúteis baseadas em física quântica e o analisador de bioressonância quântica.

Por consequência da apropriação indevida do termo “quântico”, muita gente que não é familiarizada com a física quântica verdadeira – uma área que trata principalmente do mundo “muito pequeno” de átomos, moléculas, luz e de partículas elementares, por exemplo – pode acabar com dificuldades para identificar quais são as aplicações genuínas dessa área de conhecimento, como a computação quântica e a criptografia quântica.

É dentro desse contexto que recebemos, recentemente, pergunta de um leitor sobre a “Mesa Quântica Estelar” (MQE), uma prática terapêutica de “reequilíbrio energético” que promete inúmeros benefícios ao paciente, que pode ser uma pessoa, um animal e até um ambiente comercial ou residencial. O selo “quântica”, estampado logo no título do procedimento, pode ter motivado a dúvida enviada: seria a MQE uma prática baseada em boas evidências científicas?

 

“Mesa”

Existem sessões terapêuticas que envolvem diversas “mesas radiônicas”, ou “mesas psiônicas”, como também costumam ser chamadas. Basicamente, consistem de um tabuleiro com diferentes símbolos ou desenhos, cada um com significado próprio, podendo estar relacionado às finanças, à prosperidade, à saúde, aos relacionamentos etc. Os terapeutas, em geral usando movimentos de um pêndulo, alegam ser capazes de avaliar como estão “as energias” dos consulentes em relação a cada uma das questões representadas na mesa, e consertá-las, se necessário.

Os princípios de funcionamento dessas mesas são a “radiestesia” e a “radiônica”, formas diferentes de supostamente cumprir a missão de receber e emanar as “energias” envolvidas no contexto da sessão. Fora da área da saúde, outra situação familiar do uso da radiestesia é a busca por água ou metais subterrâneos por meio do movimento de varetas, pêndulos ou forquilhas para perceber as supostas “energias” emanadas por essas substâncias. Essa prática já foi avaliada anteriormente na Revista Questão de Ciência, mostrando-se ineficaz quando submetida a experimentos controlados.

A radiônica, por sua vez, é uma prática que surgiu nas décadas iniciais do século 20, sob a alegação de que, utilizando equipamentos eletrônicos específicos, seria possível “ler as energias” eletromagnéticas emanadas por uma amostra de sangue ou de cabelo de uma pessoa para determinar sua religião, condição financeira e estado de saúde. O aparelho também teria a suposta capacidade de enviar à pessoa analisada novas frequências, para fins terapêuticos. Cientificamente, quando uma dessas caixas radiônicas é aberta, não se encontra lá nada que seja capaz de cumprir essas promessas.

As mesas mais modernas perderam a associação com equipamentos mecânicos ou eletrônicos para transmissão de frequências ao paciente: hoje parece suficiente que o terapeuta canalize mentalmente as energias – daí o motivo pelo qual a nomenclatura tem se modificado para “mesas psiônicas”.

 

“Quântica”

A ideia central das sessões com as mesas é o tal “reequilíbrio” energético. Espantosamente, isso pode ser aplicado não apenas para ambientes e pessoas ou animais vivos: na prática de MQE, em particular, alega-se a capacidade de resolver até mesmo imbróglios energéticos que estejam dificultando a vida no Além de pessoas, claro, já falecidas.

Ao receber o adjetivo “quântica”, as mesas (a MQE é uma delas) apenas adotam uma retórica mais moderna, usando argumentos que refletem uma incompreensão e utilização indevida da física quântica. Em linhas gerais: o fenômeno quântico verdadeiro da “dualidade” mostra que mesmo partículas elementares possuem características ondulatórias – “vibracionais”, portanto. Esse fato tem sido extrapolado para diversas aplicações pseudocientíficas que inventam coisas como a vibração da saúde, a da doença, a da prosperidade, a do sucesso e assim por diante. Você pode ler mais sobre isso nos artigos sobre o equipamento de bioressonância quântica e no que apresenta o relato de um congresso de saúde quântica.

Associado aos termos “frequências” e “vibrações”, percebe-se, ainda, como vimos, a armadilha clássica de se recorrer ao termo “energia”, que aparece nas explicações para o suposto funcionamento de todos os tipos de mesas radiônicas. Armadilha porque, nas pseudociências, nunca se especifica de que tipo de energia se está falando, ao passo que, em ciência séria, “energia” é algo que pode ser detectado, quantificado e medido de forma objetiva – seja, por exemplo, em quilowatts-hora, no caso de instalações elétricas, ou calorias, quando se fala de alimentos – sem depender da sensibilidade ou sensitividade pessoal de quem quer que seja.

 

“Estelar”

A MQE ainda sustenta operar em uma parceria com os Comandos ou Federações Estelares, constituídos por “seres de luz” que atuariam aqui na Terra contribuindo para a evolução espiritual da Humanidade. Cada um dos “comandos” com sua própria frente de trabalho, como processos de cura, conselhos de carma e resgate de almas.

Assim, o termo “estelar” não tem nada a ver com astrofísica ou astronomia, ciências genuínas. Eles servem apenas como suporte para dar nomes a alguns desses agrupamentos de seres invisíveis: você vai encontrar, por exemplo, o Comando Rigeliano (existe uma estrela chamada Rigel) e o Comando Capeliano (outra chamada Capela).

Por falar em estrelas, o criador da MQE é brasileiro e tem um apelido baseado nelas: Rodrigo de Aldebaran. Ele teria supostamente “canalizado” os ensinamentos sobre essa técnica. Em outras palavras, significa que teria recebido essa informação por meio de algum tipo de contato ou conexão transcendental. Estima-se que mais de 8 mil pessoas, de diversos países, já tenham sido capacitadas para atuar com MQE.

É neste ponto que a técnica acaba tomando um rumo que vai para muito longe da prática científica e começa a se transformar em religião: revelações feitas por alienígenas invisíveis são como revelações feitas por anjos. Quem as aceita está dando um salto de fé. Na ciência, coisas invisíveis até podem ser objetos de estudo, como o vento, as ondas de rádio e a energia térmica, por exemplo. Mas, estudadas, produzem resultados que podem ser testados, medidos e verificados sem depender dos caprichos, dos desejos e dos sentimentos de médiuns, sensitivos, profetas e/ou das próprias entidades sobrenaturais. Em outras palavras, a ciência rejeita a existência desses seres não por consequência de alguma forma intransigente de pensamento, mas apenas pelo fato de que, quando supostamente atuam, nunca são capazes de gerar resultados coerentes em ambientes controlados.

O contexto de surgimento de novas teorias científicas é completamente diferente dos processos de “canalização” e/ou “revelação” comumente encontrados nas pseudociências. Cientistas que revolucionam suas áreas de estudo com novas ideias não são gênios isolados, que ficam enclausurados meditando até que uma nova teoria surja pronta em suas cabeças. Em geral, estão envolvidos em práticas de pesquisa, em busca da solução de problemas nas teorias vigentes ou se debruçando sobre questões em aberto.

E mesmo depois que eles propõem novas ideias, elas são submetidas ao escrutínio da comunidade científica por meio da publicação em revistas especializadas, de debates e, claro, do confronto com o que há disponível de evidências experimentais de boa qualidade. É só assim que as novidades da ciência vão ganhando espaço, enquanto teorias ultrapassadas vão saindo de cena.

Nas pseudociências, os grandes “gênios” não seguem esse caminho. É comum que relatem alguma experiência pessoal reveladora de toda uma nova “realidade” acerca de como as coisas funcionam. Para piorar, não tarda a acontecer deles mesmos – e/ou seus seguidores – começarem a sustentar indevidamente que suas práticas são “comprovadas cientificamente”.

Apenas para dar um exemplo distinto da MQE, outra terapia já difundida atualmente é a chamada “Barra de Access”. Basicamente, alega-se que, aplicando pressão em pontos específicos da cabeça do sujeito, é possível resolver traumas, sofrimentos e problemas de saúde. Um de seus fundadores explica que desenvolveu a técnica enquanto estava buscando a felicidade, depois de tentar meios espirituais e metafísicos. Pelo visto, ele a encontrou no caminho da pseudociência: supostamente, teria sido apresentado aos 32 pontos da cabeça por meio de uma revelação enquanto meditava.

 

As evidências

A alegação de que a prática da mesa quântica estelar tem validade científica pode ser encontrada nas páginas que oferecem o serviço. Mas será mesmo? Vejamos: uma busca por mesas radiônicas e mesa quântica estelar, por exemplo, na PubMed – uma base de dados que agrega pesquisas científicas na área da saúde – não retorna resultados. Então, onde estão as evidências? Tudo o que se encontra são depoimentos de sucesso. Ainda que um conjunto de testemunhos possa parecer evidência suficiente para ratificar a eficácia dessas práticas, não é. E por vários motivos.

O primeiro é que cada um trata de resultados alcançados em contextos variados, como saúde, finanças, relacionamentos etc. O segundo é que não há dados complementares publicados para colocar os testemunhos positivos em uma perspectiva adequada: por exemplo, permitindo avaliar quantos comentários negativos podem ter sido removidos, ou quantos clientes insatisfeitos, ou indiferentes após a sessão, simplesmente não retornaram para contar a história.

E, ainda, mesmo que esses dados estivessem disponíveis, é fato inegável que depoimentos, bons ou ruins, por mais numerosos que sejam, não passam de evidências anedóticas, pois experiências pessoais não são suficientes para constituir, sozinhas, boas evidências científicas. Não é porque você garante que alguma questão foi resolvida após uma sessão de alguma coisa que isso significa que a prática causou a solução do problema. Outras atitudes suas, ou até mesmo o bom e velho acaso, podem ter sido os verdadeiros determinantes.

É por isso que você não deve encontrar nenhuma agência regulatória de saúde séria aprovando tratamentos ou medicamentos novos apenas por aclamação popular. Práticas terapêuticas precisam ser testadas por meio de ensaios clínicos com desenhos adequados, com desfechos avaliados corretamente, cegamento, randomização e com um número suficientemente grande de pacientes envolvidos.

A suposta validade científica da MQE é apenas aparente, fruto da utilização indevida de termos da ciência, como “frequência”, “vibração” e “energia”, uma estratégia velha conhecida. Não é à toa que, de forma prudente, alguns avisos estampam as páginas que oferecem o serviço, como o de que sessões de MQE não substituem tratamentos psicológicos ou psiquiátricos; e o de que a eficácia da prática é, digamos, “limitada”, já que depende dos esforços do próprio cliente para alcançar os resultados desejados.

A Mesa Quântica Estelar é, portanto, mais um exemplo de pseudociência, uma vez que propõe um arcabouço conceitual que tem apenas aparência científica, sem apresentar evidências convincentes e adequadas que o corrobore. Ademais, a suposta influência e interação com seres espirituais, somada ao relato de “canalização” que deu origem à prática, acaba por adicionar elementos à MQE que vão levá-la muito mais próxima do misticismo e da religião do que da boa prática científica.

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)

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