Existem duas físicas quânticas que, assim como as paralelas da geometria euclidiana, só se encontram no infinito. Uma, estudada e produzida por cientistas em universidades e laboratórios, desvenda a estrutura microscópica da matéria, busca respostas para questões fundamentais da natureza do tempo e do espaço e torna possíveis tecnologias como a televisão e a internet.
A outra é promovida por gente que acha que E=mc2 quer dizer que pensamentos (E, de energia) viram dinheiro (m, de matéria) quando estamos muito motivados (c2, velocidade da luz ao quadrado). Que a série de filmes Matrix era uma espécie de documentário: a realidade teria mesmo um “código-fonte” que pode ser hackeado por mentes iluminadas (iluminação que pode ser adquirida em convenções de auditório de hotel ou seminários online). Que, assim como o “código-fonte da realidade”, o DNA humano pode também ser reprogramado pelo pensamento.
Cada vez mais, quando esbarramos em alguma menção aleatória da expressão “física quântica” no dia-a-dia, é dessa segunda modalidade que as pessoas estão falando. E isso é muito interessante, e é também um problema.
Pop-Sci
É interessante porque confirma um padrão reconhecido, há tempos, por cientistas sociais que se dedicam ao estudo de culturas religiosas, digamos, incomuns – o padrão segundo o qual o misticismo de cada era tende a seguir de perto a (in)compreensão popular da ciência da época, uma visão ao mesmo tempo simplificada e sensacionalizada do conhecimento científico disponível. Visão que, nos últimos cento e poucos anos, vem sendo filtrada pela ficção científica.
Por exemplo, os teosofistas do início do século passado falavam num “corpo etéreo” que serviria de veículo para a alma viajar por aí, quando dormimos ou sonhamos. O “éter”, então, era um material hipotético, dotado de propriedades prodigiosas, alvo de intensa especulação científica. Essa hipótese acabou abandonada ao longo dos anos 1910, à medida que a Teoria da Relatividade de Einstein se firmava. Mas a pseudociência, em geral, tem uma forte tendência conservadora.
Mais ou menos nessa época, médiuns estabeleciam contato com Mestres Espirituais de Vênus e de Marte, planetas então vistos, na especulação científica respeitável, como provavelmente habitáveis. Eram também os anos em que Edgar Rice Burroughs publicava romances populares sobre civilizações baseadas nesses mundos.
Mas, além de ser interessante, esse fenômeno da “quântica popular” também é um problema porque, assim como no caso do “corpo etéreo” ou dos gurus venusianos, o que está em andamento é uma tentativa recrutar o jargão das ciências para fazer com que crenças infundadas ou supersticiosas soem razoáveis ou, mesmo, verdadeiras e incontroversas.
No caso da Física Quântica da Prosperidade, como gosto de chamá-la, a superstição “validada” é a do bom e velho poder do pensamento positivo, a ideia de que a diferença entre sucesso e fracasso está muito mais ligada à atitude mental do indivíduo do que a circunstâncias externas (sorte, família, condições socioeconômicas, etc.) ou, mesmo, ao esforço dispendido diretamente com o objetivo – afinal, às vezes a gente se esforça muito e tudo dá errado, do mesmo jeito. O “quântico”, aqui, é o elo mágico que liga mentalização correta a resultado desejado.
Não se trata de um elo arbitrário: existem pontes metafóricas que ligam conceitos da Quântica de Verdade às versões de cartum que aparecem na Quântica da Prosperidade. As principais envolvem os conceitos de onda, campo, probabilidade, observação e vácuo quântico.
Primeiro, onda: o fato de que a física quântica permite descrever o universo subatômico em termos de ondas é, de algum modo, interpretado como significando que a base da realidade física é maleável. Não há ligação lógica entre uma ideia e outra, é bom deixar claro. A ponte é construída por uma aplicação confusa e inadequada de conceitos do senso-comum.
Intuitivamente, tendemos a associar a apalavra “onda” e suas propriedades (frequência, etc.) a coisas instáveis, invisíveis e intangíveis (ninguém vê ou sente as ondas de rádio que permeiam o ambiente, por exemplo). E o pensamento gera ondas cerebrais, que também são, normalmente, invisíveis e intocáveis. Então, que tal usar o cérebro para afetar as "ondas fundamentais" da realidade?
Há vários problemas aí. O mais óbvio é que existem diferenças importantes entre a ideia intuitiva de onda e as ondas de que a física fala e que existem no mundo real. Um tsunami é uma onda, só para ficar num exemplo nada intangível ou invisível ou manipulável. Outro: o fato de uma coisa não estimular os sentidos do tato e da visão (“intangível” e “invisível”) não a torna menos real, ou mais maleável à vontade humana, do que tijolos ou pedras. Radiação ionizante pode ser tão letal quanto balas de revólver.
Por fim, se ondas cerebrais tivessem a potência necessária para afetar campos eletromagnéticos afastados do escalpo, seríamos capazes de usar antenas de rádio para captar pensamentos, o que felizmente não acontece (imagine a estática!).
Essa ideia injustificada de que “invisível e intangível” implica “maleável pela vontade humana” também é aplicada, pela Quântica da Prosperidade, ao conceito físico de “campo”.
Probabilidade
A física quântica é eminentemente probabilística. Isso significa que certas propriedades das partículas fundamentais da matéria, como posição, existem como probabilidades. Apenas quando uma medição – ou observação – é feita que a posição assume um valor definido.
Na versão caricatural que venho chamando de Quântica da Prosperidade, isso se traduz na ideia de que a realidade só existe quando alguém olha para ela, e que quem olha tem autonomia para decidir o que essa tal de realidade vai ser. Assim, seus problemas não são reais, a menos que você insista em pensar neles.
Essa leitura amalucada acontece pela mistura entre o sentido técnico com que certos termos são usados na ciência (onde medição e observação podem ser feitas por objetos inanimados) e o sentido normal, do dia-a-dia, em que só seres humanos “medem” ou “observam”.
Um dos (vários) problemas que esse sabor de Quântica da Prosperidade enfrenta é explicar como o Universo poderia ter existido antes de haver alguém pra olhar para ele, nos 13 bilhões de anos entre o Big Bang e o início da vida na Terra.
As saídas usuais são propor um “campo de consciência” ou trazer o olho de deus para a jogada. Ambas são manobras que destroem as pretensões científicas da área: não há evidência nenhuma de que um “campo de consciência” exista no Universo, seja lá o que isso for, e quando se põe deus no meio, bem, a conversa passa a ser sobre religião, não ciência.
Vacuidade
Às vezes, tenta-se salvar o “campo de consciência” igualando-o ao vácuo quântico. Na Teoria Quântica de Verdade, o espaço nunca está 100% vazio: mesmo num estado mínimo de energia, partículas aparecem e desaparecem o tempo todo. Há muita pseudociência propondo que essa propriedade do espaço, de nunca estar completamente vazio, poderia ser usada como uma fonte inesgotável de energia.
A caricatura, oferecida por algumas facções dentro da Quântica da Prosperidade, propõe que certos tipos de meditação permitem à mente “acessar o vácuo quântico” e extrair dali não energia infinita para mover carros, turbinas ou naves espaciais, mas “potenciais infinitos” para manipular a realidade e, até, reconstruir moléculas de DNA. Porque vácuo é espaço vazio, meditação é mente vazia, então uma coisa sintoniza a outra – é o que dizem.
Vamos notar como, mais uma vez, pontes metafóricas (“sintonizar”, “mente vazia”) e um simulacro de unidade semântica, que só existe porque os termos são arrancados de seus contextos corretos (a aproximação espúria entre o “vácuo” da Teoria Quântica e o “vazio” da meditação, por exemplo), são usados para dar uma ilusão de substância ao que, no fim, não passa de faz-de-conta e pensamento mágico.
Essa estratégia aparece com frequência no trabalho de Deepak Chopra (não é à toa que esse autor é usado como modelo em estudos sobre falação de merda) e também dá as caras entre defensores do Theta Healing, uma proposta de manipulação da realidade via meditação inventada (e vendida) por uma “mestra espiritual”, Vianna Stibal, cuja biografia tem, como ponto alto, uma condenação por estelionato.
Jogando o mesmo jogo de palavras, poderíamos perguntar como o vácuo quântico consegue se manifestar num espaço tão atulhado de neurônios e neurotransmissores como o cérebro humano. A resposta pode embutir variados graus de ironia.
Reações
Na maior parte do tempo, a Quântica de Verdade ignora solenemente a existência desse parasita, a Quântica da Prosperidade. As razões são fáceis de entender: cientistas precisam fazer ciência, afinal, e palavras e conceitos pertencem à cultura humana mais ampla, não são propriedade de nenhum grupo em particular.
Mas ignorar parasitas nunca é uma boa ideia: além do jargão, veem-se também debilitadas a respeitabilidade e a reputação do organismo hospedeiro. Existe toda uma indústria da Quântica da Prosperidade, com seus astros e celebridades próprios, astros e celebridades que acabam se tornando a face pública da “física quântica” para uma fração significativa do público.
Enquanto o nome de Heisenberg passa a ser cada vez mais reconhecido como o pseudônimo de um fabricante fictício de meta-anfetamina, figuras como Joe Dispenza (autor do imortal best-seller “You Are the Placebo: Making Your Mind Matter”), Gregg Braden (“The Divine Matrix: Bridging Time, Space, Miracles and Belief”) e Chopra apresentam documentários e são tratadas por parte da mídia como “autoridades científicas”.
Além de fazer mal para o bolso da população, a Quântica da Prosperidade ainda deseduca o público de modos muito menos sutis.
Em um vídeo no YouTube, uma das expoentes nacionais da categoria, Elainne Ourives, diz que Isaac Newton “observou o núcleo do átomo” e tirou dali algumas conclusões que a física quântica viria a questionar mais tarde. Se isso soa estranho, é porque o núcleo atômico só foi descoberto, por Ernest Rutherford, quase 200 anos após a morte de Newton.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência