A arte marcial das pseudociências

Apocalipse Now
14 nov 2020
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enter the dragon

 

Grande clássico do cinema de ação e aventura, o filme Operação Dragão (Enter the Dragon, 1973), dirigido por Robert Clouse (1928-1997) e estrelado por Bruce Lee (1940-1973), muitas vezes é exibido sem as cenas iniciais, em que o monge-lutador Lee (interpretado, é claro, por Bruce Lee) conversa com o abade do monastério Shaolin e discute sua filosofia de artes marciais. O que é uma pena. O intróito filosófico tem muito a ensinar para quem lida com pseudociências e pseudoterapias. Diz Lee:

“Quando o oponente expande, eu contraio. Quando ele contrai, eu expando. E quando surge uma oportunidade… eu não golpeio. O golpe sai por conta própria”.

Isso talvez soe profundo (ou pseudoprofundo) demais, mas na verdade poderia, com muito poucas mudanças, ser uma descrição razoável do processo de andar de bicicleta (ou dirigir o carro por um caminho já muito conhecido): uma certa quantidade de treino se converte em conhecimento tácito, em uma coordenação entre sentidos, pensamentos e músculos que, de tão arraigada, torna-se espontânea e permite que ações complexas sejam realizadas de modo quase inconsciente.

Mas o assunto aqui é outro. Em tempos recentes, essa linha de diálogo cinematográfico tem me vindo à cabeça, de modo cada vez mais frequente, quando analiso o discurso de proponentes de terapias “alternativas” e de falsas curas para a COVID-19. Senão, vejamos…

 

 

O oponente expande, eu contraio

Quando a crítica às terapias alternativas ou não comprovadas aponta os riscos desses tratamentos, seus proponentes adotam o discurso do uso “integrativo” e “complementar”, ou partem para o jogo da redução brusca de expectativas: homeopatia, por exemplo, que para seu fundador Samuel Hahnemann (1755-1843) era a única e verdadeira cura de todos os males da Humanidade, rejeitada apenas por imbecis e idiotas, desinfla-se até virar algo meio amorfo, uma “abordagem mais humana” da Medicina, um placebo bonzinho ou algo do tipo.

E isso vale não apenas para velhas conhecidas como homeopatia ou acupuntura, cuja “visão ideal” — no sistema brasileiro de saúde, ao menos — é a de técnicas aplicadas sob supervisão médica atenta a eventuais complicações, e nunca em substituição a tratamentos cientificamente comprovados (o quanto essa “visão ideal” corresponde aos fatos é outra história).

A tática de contração diante do olhar crítico é abraçada também, por exemplo, pelos áulicos da fosfoetanolamina sintética (de cura total e absoluta do câncer, reduzida a apenas mais um suplemento alimentar), pelo pessoal da cloroquina — que de remédio milagroso para pacientes de UTI virou um mero profilático — e, agora, da nitazoxanida, que de descoberta histórica que precisava ser compartilhada com urgência com a Humanidade virou algo que “jamais” foi sugerido “para ninguém”.

Mesmo a Associação Brasileira de Medicina Antroposófica tem uma manifestação de apoio ao calendário nacional de vacinas, a despeito da histórica oposição doutrinária da antroposofia às imunizações.

 

 

Ele contrai, eu expando

Mas, e quando olhar crítico de afasta? Aí as promessas e pretensões expandem-se como o Universo logo após o Big Bang. O humilde “precisamos de mais estudos” vira “eficácia comprovada”. Uma passada pela página do Ministério da Saúde sobre Práticas Integrativas e Complementares oferece uma janela para esse marketing desbragado do pensamento mágico, que sai da toca quando quem fala ou escreve presume que só desavisados e clientes em potencial estão olhando: ali, a ozonioterapia (um método sem comprovação de eficácia para nenhuma condição de saúde e considerado apenas experimental), por exemplo, é descrita como tendo uso regular nas áreas de “odontologia, neurologia e oncologia, dentre outras”.

Há ainda quem promova homeopatia contra o câncer, ou médicos antroposóficos que dizem que doenças infantis para as quais existem vacinas — doenças que são potencialmente letais, e que podem deixar sequelas graves por toda a vida — são na verdade boas oportunidades que as crianças estão perdendo, por causa da vacinação.

Veja este trecho de entrevista (íntegra no link acima) publicada pela Sociedade Antroposófica Brasileira: “Na Europa, muitas mães ainda cultivam a antiga tradição de levarem [sic] os filhos para visitar as outras crianças com doenças exantemáticas com o objetivo de proporcionar uma imunização natural. Mas, hoje em dia, fica cada vez mais difícil para esse pequeno ser usufruir os benefícios que estas doenças ‘naturais’ podem lhe proporcionar. De um lado, temos as vacinas e de outro os antitérmicos…”

“Doenças exantemáticas”, caso alguém esteja se perguntando, são aquelas “que se manifestam por meio da pele, como o sarampo, a rubéola e outras”.

 

O golpe sai por conta própria

Essa compartimentalização retórica é útil de várias maneiras. Ao permitir que até mesmo as propostas mais extravagantes apresentem uma face civilizada para a comunidade externa, lubrifica o processo de captação de clientela. Permite que tanto radicais quanto moderados sintam-se em casa, uma face fingindo que a outra não existe, ou apontando-a como anomalia.

Diferentemente das ciências, onde em geral é fácil determinar onde está a corrente principal — o consenso — e as propostas mais especulativas, no mundo alternativo o centro está, de fato, em toda parte: as diversas “correntes” se veem como iguais e a decisão de qual deve predominar neste ou naquele momento não é epidêmica, e sim mercadológica.

A apresentação das versões mais “razoáveis” aos não iniciados é um ponto importante. Psicólogos descrevem como as primeiras impressões que temos sobre algo ou alguém tendem a criar um efeito de “âncora”, prendendo as impressões seguintes a um espaço emocional delimitado: se uma ideia maluca é apresentada inicialmente de forma humilde, tentativa e razoável, pode ser difícil, em interações subsequentes, reconhecer a maluquice.

O processo de expansão e contração das alegações também, é claro, dificulta muito a tarefa dos críticos, que sempre acabam sendo acusados de atacar a “versão errada”, ou “entender mal” a crendice em questão. O vaivém ainda ajuda a conquistar o benefício da dúvida frente ao senso comum, e a pintar céticos como extremistas dogmáticos.

 

Imagens e ilusões

É fácil perder-se em meio à cortina de fumaça de “poréns”, “talvez”, “quem-sabe” e “que-mal-que-tem” — e, enquanto procuramos o caminho de volta, mais algum pobre desavisado resolveu “flexibilizar” a quimioterapia e dar uma chance aos florais. Minha experiência pessoal é de que o melhor é, sempre, ignorar os castelos de cartas e focar na base, na inconsistência central de cada proposta: seja o absurdo das diluições infinitas, a monstruosidade de tratar doenças infantis como “oportunidades de crescimento espiritual” ou os sucessivos fracassos deste ou daquele medicamento milagroso em testes clínicos bem conduzidos.

Chamar atenção para esses pontos é o melhor jeito de levantar qualquer âncora de boa-vontade que tenha sido plantada.

Voltando a Operação Dragão, ao final da introdução filosófica o abade, interpretado por Roy Chiao (1927-1999) dá o seguinte conselho ao discípulo Lee: “O inimigo tem apenas imagens e ilusões, por trás dos quais esconde seus verdadeiros motivos. Destrua a imagem e você quebrará o inimigo”. É um bom conselho.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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