No artigo que publiquei no último fim de semana, sobre a história do “esporte” de caçar fantasmas e assombrações, faltou espaço para tratar de dois assuntos: a cena brasileira e alguns dos equipamentos de alta tecnologia usados na atividade. A eles, portanto.
No Brasil, historicamente, a investigação e a explicação do aparente sobrenatural tem sido mais uma prerrogativa deixada para as religiões, e um terreno disputado entre diferentes sistemas de crença. Os mais antigos talvez se lembrem das críticas ao espiritismo feitas pelo bispo católico Boaventura Kloppenburg (1919-2009), ou das polêmicas entre as abordagens “católica” e “espírita” da parapsicologia – a do padre Oscar Quevedo (1930-2019) e a do engenheiro Hernani Andrade (1913-2003), respectivamente.
Nesse cenário, a transformação da busca pelo sobrenatural num hobby-espetáculo baseado em parafernália high-tech – estimulada, nos Estados Unidos, por programas de TV como o reality show Ghost-Hunters e filmes de terror como a franquia Atividade Paranormal (de onde veio a ideia de usar sensores Kinect de vídeo game para “detectar” espectros) – passa por filtros específicos. O que não significa que já não esteja em curso.
No YouTube, destacam-se atualmente dois canais, o do casal gaúcho Rosa Jaques e João Tocchetto, os “Caça-Fantasmas Brasil” (“Caça-Fantasmas Brasileiros” é título de livro assinado pela dupla e publicado pela Planeta em 2016), e o do grupo de Guaratinguetá (SP) “KBC Caçadores de Fantasmas”.
Desobsessão
Jaques e Tocchetto atuam juntos desde a década de 1990, e seu canal no YouTube data de 2008, contando com cerca de 390 mil inscritos. O trabalho dos dois pode ser considerado uma ponte entre o espiritismo popular brasileiro – que mistura a doutrina espírita propriamente dita a sistemas afro-brasileiros, ao misticismo católico e a superstições folclóricas – e o estilo americano de ghost-hunting. Jaques, a estrela do show e figura principal da dupla, apresenta-se como sensitiva ou vidente, e entra em diálogo com as “energias” e “espíritos” que diz encontrar nos locais considerados “assombrados” para convencê-los a partir e descansar em paz.
Os vídeos postados pelo casal têm detectores de campo eletromagnético apitando, imagens de câmera noturna e eventuais sustos em cantos escuros, mas no fim retratam performances de uma versão bem peculiar daquilo que a doutrina espírita nacional chama de “sessão de desobsessão” – momento em que espíritos desorientados recebem a instrução necessária para seguir adiante.
O casal não se apresenta como espírita e rejeita identificar-se com qualquer religião, embora insista no respeito a todas. Em entrevista ao podcast Inteligência Ltda., Jaques e Tocchetto descrevem uma cosmovisão particular: a de Deus como um “vórtice no centro de tudo” e da Humanidade como produto de experimentos de inseminação artificial realizados por extraterrestres em primatas pré-históricos.
Não há como considerá-los investigadores científicos dos fenômenos que são chamados a atender: acreditam já ter todas as respostas, ferramentas e explicações de que precisam – seu trabalho é pôr esse “conhecimento” em prática para resgatar almas. Trata-se de uma mitologia sincrética, talvez até uma meta-religião, de caráter semiprivado.
Spirit Box em Guaratinguetá
Já o grupo KBC está bem mais próximo do modelo do caçador de fantasmas de reality show americano, ainda que com uma roupagem (e vocabulário) bem particular do interior paulista. Seus vídeos no YouTube são produzidos com animações e trilha sonora, editados de modo a ressaltar momentos de susto e construir algum suspense, em geral bem forçado. O líder da equipe, João Paulo, faz o máximo para manter os demais num estado sugestionável e de apreensão constante; a aparência física e a atitude remetem a Jason Howes, o líder original dos Ghost-Hunters televisivos americanos. O grupo também foi entrevistado pelo Inteligência Ltda., e ali reconhece a inspiração direta trazida pelo reality show dos EUA.
A técnica narrativa ágil e a construção mais voltada para o entretenimento fazem diferença: mesmo com menos tempo de estrada, o canal tem três vezes mais inscritos que o do casal Jaques e Tocchetto.
O uso de tecnologia é extenso, incluindo a chamada spirit box – um receptor de rádio que varre as frequências de AM e FM e toca trechos aleatórios das transmissões que encontra. Caçadores de fantasmas interpretam esses fragmentos como manifestações espirituais, a despeito do fato de que são, obviamente, palavras e frases retiradas da programação normal das estações de rádio, além de ruídos e estática.
O KBC começou como canal de humor (“Kid Boy Chechéu”) antes de se especializar em paranormalidade, e hoje conta com uma equipe de quatro investigadores – João Paulo Fabrício dos Santos, Josenir Américo, Gleison Vinícius da Silva e Pedro Henrique de Melo Santos. Tem ainda dois patrocinadores fixos – uma loja de informática e uma “bruxa de poder, curandeira de luz” do Instagram, que oferece consultas pelo WhatsApp.
Diferentemente do casal do canal Caça-Fantasmas Brasil, que alicerça as conclusões a que chega nos supostos poderes especiais de Rosa Jaques e sua mitologia particular, o KBC se apoia na leitura de seus instrumentos – termômetro, campo eletromagnético e, o que parece ser a estrela atual do show, a spirit box. Isso dá um verniz de precisão científica ao que fazem. O problema é que não existe teoria consistente que ligue as leituras desses equipamentos à presença de entidades sobrenaturais. Não existe nem mesmo uma teoria consistente sobre a existência de tais entidades.
Como admite até mesmo Troy Taylor, apresentador do podcast American Hauntings e autor de um dos guias sobre assombração mais respeitados na comunidade caça-fantasmas dos Estados Unidos, “Ghost Hunters Guidebook” (“Guia dos Caça-Fantasmas”), equipamentos como o detector da campo eletromagnético são utilizados “com base em teoria, não em fato absoluto. Acreditamos que podem captar distorções em campos energéticos causadas por fantasmas – acreditamos, mas não sabemos”.
Elefante assombrado na sala
A caça de fantasmas por meio de equipamentos supostamente científicos é um exemplo daquilo que o médico epidemiologista John Ioannidis chama de “campo nulo” – uma área de pesquisa onde não existem efeitos reais, em que todos os efeitos medidos não passam de erros, flutuações aleatórias e vieses. Como escreveu o saudoso físico Victor Stenger (1935-2014):
“A realidade desconfortável que os caçadores de fantasmas evitam cuidadosamente – o elefante na minúscula sala assombrada – é, claro, que ninguém nunca provou que esses equipamentos de fato detectam fantasmas. A suposta conexão entre fantasmas e campos eletromagnéticos, temperaturas baixas, radiação, fotografias estranhas etc. não se baseia em nada além de palpites, teorias sem comprovação e conjecturas delirantes”.
Ou, como o historiador Colin Dickey escreveu para a revista The Atlantic:
“Toda essa tecnologia [dos caça-fantasmas] funciona mais ou menos segundo o mesmo princípio: gerando muita estática e efeitos aleatórios, na esperança de capturar ruído aleatório e outros fenômenos passageiros. O caçador de fantasmas, por sua vez, busca padrões, convergências momentâneas, coincidências significativas. Para o crente, é aí que os fantasmas habitam: na estática, nos defeitos, nos borrões”.
Se brasileiros interessados em fantasmas querem seguir algum exemplo americano, sugiro que deixem Ghost-Hunters de lado e se inspirem em gente como Kenny Biddle – um ex-caça-fantasmas que hoje em dia se dedica a investigar a sério supostos fenômenos paranormais, mas em busca de explicações que realmente façam sentido, não de sustos ou números de audiência.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)