A caça esportiva de fantasmas

Apocalipse Now
11 mar 2023
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Borley Rectory

 

Aqui nos Estados Unidos, caçar fantasmas já é um hobby talvez até mais popular do que procurar discos voadores. Há convenções, e lojas especializadas oferecendo desde equipamentos sofisticados até kits para iniciantes. Catálogos de livros com títulos como “Guia dos Caça-Fantasmas” ou “Manual dos Caça-Fantasmas” já reúnem dezenas de obras. Pode-se encontrar desde trabalhos de pesquisadores de boa reputação até material de autoria de celebridades da TV por assinatura, e do mundo online.

Aliás, a TV por assinatura provavelmente foi a principal impulsionadora dessa moda, entre o fim do século passado e o início deste, papel que continua a desempenhar até o presente, agora com a ajuda do streaming. O reality show Ghost-Hunters estreou em 2004 no Syfy Channel, onde teve 11 temporadas, transferindo-se, depois de um hiato alguns anos, para outros canais. Ano passado, uma décima-quinta temporada foi ao ar no Travel Channel.

O hobby contemporâneo de caçar fantasmas deve muito à estética e à técnica do show: pessoas que passam a noite no escuro, filmando a si mesmas com câmeras de visão noturna, usando equipamentos como detectores de campo eletromagnético, detectores de movimento, sintonizadores chamados de spirit boxes, ou “caixas espirituais” (equipamentos que vasculham o espectro AM e FM de ondas de rádio, tocando trechos aleatórios das transmissões que eventualmente captam) e gravadores para registrar “anomalias” sonoras que possam ser interpretadas como fenômenos paranormais – mas que, como explica o veterano investigador do sobrenatural Joe Nickell, são melhor entendidas como flutuações aleatórias e ruído de fundo. O campo eletromagnético da fiação dentro das paredes, um pedaço de metal magnetizado, por exemplo; ou, no caso de sons misteriosos, um carro passando numa rua próxima, uma corrente de ar, um rato.

Caçadores muitas vezes levam “sustos” detectando a si mesmos, animais, insetos. Os quase 20 anos de buscas high-tech ainda não foram capazes de produzir evidência conclusiva – ou mesmo sugestiva – de que fantasmas existam, mas para quê estragar a festa?

A atividade toda enquadra-se no que chamo de “camelódromo de mistérios”, uma postura mental ou disposição afetiva em que a verdadeira meta é excitar a imaginação, estimular o senso de estranhamento e passar o tempo elaborando teorias fantásticas – nunca, realmente, resolver o problema ou desvendar os fatos. Em alguns desses programas, a insistência dos “caçadores” em não fazer a pergunta óbvia, não tirar a conclusão evidente, não conduzir o experimento adequado chega a dar vontade de arrancar a TV da parede.

 

A casa mais assombrada

A ideia de usar um aparato tecnológico, superficialmente “científico” para caçar fantasmas e investigar assombrações foi popularizada pela comédia “Os Caça-Fantasmas”, de 1984, mas nasceu no mundo real. O pioneiro foi o britânico Harry Price (1881-1948), talvez a primeira pessoa na história a identificar-se como um caça-fantasmas profissional (um de seus livros chama-se, exatamente, “Confessions of a Ghost Hunter”, ou literalmente “Confissões de um Caçador de Fantasmas”).

Price gostava de se deixar fotografar cercado por parafernália científica, e levava para seus estudos de campo equipamentos como câmeras fotográficas com filme sensível à radiação infravermelha, câmeras de cinema que podiam ser ativadas à distância e termômetros. Sua investigação da Reitoria de Borley, uma casa construída em 1862 parar servir como residência de um pároco anglicano, trouxe-lhe fama – e infâmia – internacional (fotos da reitoria ilustram esta crônica).

Graças aos artigos e livros que Price escreveu sobre o caso, a reitoria ficou conhecida como “The Most Haunted House in England” (“A Casa Mais Assombrada da Inglaterra”), e foi tema de reportagem da revista americana LIFE em 1944. A matéria inclui uma foto que mostra um tijolo voando, ostensivamente parte de um efeito de poltergeist. A mesma imagem foi reproduzida num livro de Price, “The End of Borley Rectory” (“O Fim da Reitoria de Borley” – a casa havia sido demolida após um incêndio), com a seguinte legenda:

“Se, de fato, este foi um fenômeno paranormal genuíno, então temos a primeira fotografia jamais tirada de um projétil poltergeist em pleno voo”.

A prestidigitação retórica é familiar: a estrutura “se isto fosse verdade, então aquilo também seria” permite ao autor avançar uma alegação extraordinária sem, ao pé da letra, comprometer-se com nada. Permite, de fato, embalar qualquer imbecilidade num celofane de “lógica” e sair correndo: se a Lua fosse feita de queijo, camundongos seriam astronautas. Por que não? É instrutivo notar quanto da narração de documentários sobre paranormalidade, discos voadores, saúde alternativa etc. usa o mesmo truque.

A verdade, no caso, era que tanto Price quanto o fotógrafo da LIFE sabiam que o tijolo havia sido arremessado por um dos pedreiros envolvidos no trabalho de demolição. Este fato, e outros levantados por um comitê de investigadores independentes – cujas conclusões foram publicadas em livro em 1956, “The Haunting of Borley Rectory” (“A Assombração da Reitoria de Borley”) – mostraram que os supostos fenômenos sobrenaturais dali eram na verdade naturais, e que Price havia deliberadamente exagerado, distorcido e, em algumas instâncias, criado ou omitido ocorrências e depoimentos para enfeitar a narrativa. Era o camelódromo de mistérios a todo vapor.

 

Mais fraudes

Nos Estados Unidos, o caçador de fantasmas original foi Hans Holzer (1920-2009), que deixou mais de uma centena de livros publicados, incluindo títulos como “Poltergeist”, “Ghosts” (“Fantasmas”), “An Introduction to Ghosts” (“Uma Introdução aos Fantasmas”) e o mais famoso (“um clássico da investigação paranormal”, segundo a editora), “Ghost Hunter” (“Caçador de Fantasmas”), de 1963.

Geralmente, quando se buscam os principais “caçadores” americanos da era pré-reality shows, aparecem, além de Holzer, o casal Warren, Edward (1926-2006) e Lorraine (1927-2019). Para os Warrens, ambos católicos, as assombrações eram causadas por demônios, não fantasmas, e suas aventuras geralmente acabavam envolvendo um exorcista. Como define Joe Nickell, no obituário que escreveu sobre Ed Warren:

“A chegada dos Warrens a uma casa ‘assombrada’ tipicamente transformava supostas estripulias de fantasmas e poltergeists em relatos inacreditáveis de ataques demoníacos”.

Os Warrens publicaram vários livros, escritos em parceria com outros coautores. Algumas dessas obras deram origem a películas de terror, e hoje há toda uma indústria de filmes, à base de sustos baratos e orçamentos mais ainda, protagonizados por versões fictícias de Ed e Lorraine. Alguns autores contratados para trabalhar nos livros que supostamente descreviam as aventuras paranormais do casal hoje dizem que as obras contêm doses significativas de ficção.

Ao contrário de Harry Price e da nova geração, Holzer e os Warrens não apostavam muito na parafernália científica, preferindo visitar o imóvel problemático na companhia de médiuns, paranormais e outros “sensitivos”. No casal Warren, esse era o papel de Lorraine. Tanto Holzer quanto o casal sempre se mostraram muito mais interessados em montar barraquinha no camelódromo de mistérios do que em qualquer outra coisa.

É interessante notar que todos os três se envolveram no episódio do “Horror de Amityville”, a falsa casa assombrada que lançou mil franquias, e nenhum deles foi capaz (ou teve o interesse) de detectar e denunciar a fraude, depois revelada por um dos idealizadores do golpe. Os Warrens são citados nominalmente no livro que deu origem à mania – obra cujas inconsistências gritantes já eram apontadas por jornalistas imediatamente após o lançamento.

 

Teoria

Holzer escrevia numa voz professoral, imperiosa, de quem sabe do que está falando e não tem tempo a perder com gente ignorante que faz perguntas idiotas. É notável quanta bobagem se pode vender depois de acertar o tom e dominar a técnica. Um bom exemplo é esta pérola, extraída de “An Introduction to Ghosts”:

“Astrologia, que é uma arte muito respeitável quando usada adequadamente, alega que a radiação dos planetas, do Sol e da Lua influencia o corpo do recém-nascido (...) não se deve rejeitar a teoria astrológica logo de cara. Afinal, a radiação da bomba atômica, feita pelo homem, afetou as crianças de Hiroshima”.

É dele a explicação atualmente mais popular sobre o que, afinal, seria um fantasma. Mais uma vez citando “An Introduction to Ghosts”:

“Fantasmas não são apenas expressões da personalidade humana deixadas para trás na atmosfera física mas são, em termos da ciência física, campos eletromagnéticos impressos de modo único pela personalidade e pelas memórias do falecido, representam uma pegada energética na atmosfera”.

Não existe, claro, nenhuma evidência de que a personalidade dos mortos deixe “pegadas” eletromagnéticas onde quer que seja, mas a formulação soa “científica” o bastante para animar um mercado respeitável de detectores de campo eletromagnético e de receptores de rádio modificados para finalidades paranormais. Do ponto de vista do método científico, “caçar fantasmas” é um processo de investigação virado de cabeça para baixo: em vez de tratar cada caso como uma pergunta de pesquisa específica – o que, objetivamente, faz os moradores da casa X terem as experiências W, Y, Z... – e construir hipóteses plausíveis e adequadas à evidência, parte-se de uma hipótese geral muito pouco plausível (a de que existe algo chamado “atividade paranormal”) e buscam-se evidências que caibam nela, nem que seja na marra.

Para quem tem vontade de investigar seriamente supostas assombrações e fantasmagorias, uma lista inestimável de sugestões e dicas pode ser encontrada no livro “Missing Pieces” (“Peças que Faltam”), obra conjunta do psicólogo Robert A. Baker com o investigador Joe Nickell.

Além de sugestões básicas para estruturar a abordagem inicial do problema (“efeitos físicos, como odores ou sons, têm causas físicas”), os autores lembram os candidatos a caça-fantasmas de alguns princípios de civilidade que deveriam ser óbvios, mas às vezes acabam ignorados (e que vêm sendo cada vez mais postos de lado no ambiente das redes sociais): propriedade e privacidade são direitos a respeitar; pessoas assustadas ou em sofrimento psicológico devem ser levadas a sério, tratadas com respeito e ouvidas com atenção; fantasmas e gente morta nunca machucaram ninguém. O mesmo, no entanto, não se pode dizer de pessoas vivas, imóveis em más condições e animais assustados. 

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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