Uma das dificuldades de se escrever sobre homeopatia para a Revista Questão de Ciência é escolher algum tema que ainda não tenha sido desmentido por aqui, já que, a despeito de ter sido inventada antes da existência do estetoscópio e da teoria dos germes, a prática se mantém a mesma há mais de 200 anos.
Recentemente, porém, houve uma “atualização” nas justificativas para as crenças infundadas da ultradiluição (quanto menos princípio ativo, mais potente o medicamento) e da memória da água (a água conserva uma “memória” das propriedades físico-químicas do soluto, após ser agitada) com menções frequentes à mecânica quântica motivadas, talvez, pela onda mística que cita, de maneira errada, esta área da física.
No último 10 de abril, Dia Internacional da Homeopatia, o senador Nelsinho Trad presidiu uma sessão especial em comemoração à data. No requerimento para a comemoração em período de expediente, assinado pelos senadores Nelsinho Trad (PSD/MS), Mara Gabrilli (PSDB/SP), Soraya Thronicke (PSL/MS), Izalci Lucas (PSDB/DF), Paulo Paim (PT/RS) e Wellington Fagundes (PL/MT), lê-se:
“A homeopatia é um método baseado no ‘princípio dos semelhantes’, que objetiva fortalecer e otimizar a homeostase (o nosso poder de autocura), partindo da premissa de que qualquer sintoma causado por uma substância em altas doses numa pessoa saudável, promoverá resposta de cura se administrada em doses mínimas em pessoas doentes cujos sintomas sejam semelhantes aos da substância”.
As partes em itálico introduzem alguns dos preceitos dogmáticos que regem esta prática quase-religiosa, que contém vários pontos em comum com o kardecismo. A primeira expressão “poder da autocura”, além de atribuir ao doente parte da culpa pela manutenção da doença, remete à doutrina do vitalismo.
A ideia de que as doenças seriam causadas por uma espécie de desequilíbrio na energia vital poderia fazer algum sentido nos séculos 18 ou 19 – antes da comprovação da teoria dos germes e dos avanços da bioquímica e da genética no século passado. Hoje, é só uma crendice mesmo. Esse misticismo, nunca verificado de maneira controlada pela ciência, também está presente em outras terapias energéticas como reiki e qigong, por exemplo.
A segunda parte em itálico explica por que homeopatas administram, por exemplo, Allium cepa para curar resfriado. Essa poção homeopática é feita a partir da ultradilução de extrato de cebola, pois a hortaliça, ao ser cortada, faz com que os olhos lacrimejem e o nariz escorra, sintomas similares ao resfriado. Alguma compreensão da diferença entre correlação e causa mostraria que, embora os sintomas sejam parecidos, as causas são completamente diferentes – o resfriado é causado por um vírus. Pensamento crítico e bom senso, porém, não são frequentes na realidade alternativa homeopática.
A sessão no Senado, que se iniciou “sob a proteção de Deus”, conforme invocação do presidente da cerimônia, teve como objetivo celebrar o Dia Internacional da Homeopatia e contou com representantes da Associação Médica Homeopática Brasileira, Associação Brasileira de Farmacêuticos Homeopatas e Associação Brasileira dos Cirurgiões Dentistas Homeopatas, além de outros praticantes e defensores da doutrina.
Em sua fala inicial, o senador Trad agradeceu pela sugestão da pauta “tão significativa do ponto de vista da saúde pública” e emendou: “Assim como a imunologia usa de vírus vivos atenuados, inativados ou de partículas dos vírus, a homeopatia estuda compostos com uma concentração que não seja mais tóxica, mas capaz de ser reconhecida pelo corpo humano como indutora da resposta desejada”.
Misturar alhos com bugalhos é uma das estratégias de práticas pseudocientíficas para se disfarçar de ciência e conseguir alguma respeitabilidade perante o público. No caso da fala inicial do senador, a analogia com vacinas é descabida simplesmente pelo fato de que não existe nada relevante nas poções homeopáticas – nas vacinas há.
A implausibilidade teórica da homeopatia pode ser resumida neste trecho de artigo publicado na Folha de S. Paulo: “Um medicamento homeopático usual tem uma diluição chamada de 30 CH, ou ‘centesimais hahnemannianas’. Isso equivale a 1 parte de princípio ativo em 10^60 (o número 1 seguido de 60 zeros) partes do solvente. Pode-se afirmar com segurança que, nesse nível de diluição, a probabilidade efetiva de se encontrar uma única molécula do princípio ativo na solução é zero. Essa diluição é equivalente a dissolver uma xícara de café em um recipiente do tamanho de uma galáxia, cheio de água”.
Os discursos que se seguiram foram marcados por ideias conspiracionistas de que haveria um preconceito em relação à homeopatia e uma falta de interesse da “Big Pharma” em financiar estudos clínicos sobre a prática. Também reivindicou-se uma maior inserção da homeopatia nos currículos das escolas de Medicina. Para dar um verniz de respeitabilidade, e seduzir o ouvinte despreparado, mencionou-se o reconhecimento da homeopatia pelo Conselho Federal de Medicina (CFM); uma pesquisa de opinião com o percentual de pessoas que utilizam e reconhecem o valor científico da homeopatia; e diversos artigos publicados em revistas dedicadas exclusivamente a promover a prática.
Durante a pandemia, ficou explícito que um conselho de classe, como o CFM, não merece confiabilidade ou credibilidade da perspectiva da ciência. Instituições assim existem, basicamente, para defender interesses econômicos e ideológicos de seus associados, como mostra, por exemplo, o texto de um abaixo-assinado de médicos contra o CFM, que é acusado de sustentar “posturas anticientíficas e com viés político, dando apoio a tratamentos que já foram amplamente estudados e cuja ineficácia é comprovada pelos maiores e mais reconhecidos centros de pesquisas médicas do mundo”. Apesar de trecho do manifesto se referir ao famigerado “tratamento precoce”, o excerto se aplica perfeitamente à homeopatia.
Pesquisas de popularidade sobre a homeopatia deveriam apenas levantar um alerta para a qualidade do ensino de ciências. Se, conforme mencionado da sessão do Senado, uma pesquisa de opinião mostra que 75% de um grupo de pessoas (não foram apresentados mais detalhes da pesquisa, como o tamanho e a composição da amostra) reconhece o valor científico da homeopatia, isso quer dizer que as escolas e universidades estão falhando no ensino do pensamento crítico, já que a homeopatia se encaixa perfeitamente no padrão ouro do negacionismo científico – metanálises confiáveis mostram que a prática não funciona melhor do que um placebo, e a fundamentação teórica é completamente capenga.
Uma artimanha comum em falas pseudocientíficas é apresentar, em defesa da tese espúria, muitos artigos, formalmente “científicos”, sem nenhum valor . Essa técnica é chamada de Gish Gallop, em referência ao criacionista Duane Gish, que aplicava a estratégia de sobrecarregar e surpreender seus oponentes com referências obscuras ou irrelevantes, durante debates públicos. No caso da sessão do Senado, os artigos apresentados foram publicados em revistas de homeopatia – é como se considerássemos a existência de alienígenas comprovada usando como base artigos da Revista UFO. Uma análise crítica detalhada das referências normalmente citadas pelo Gish Gallop homeopático pode ser encontrada no contra dossiê das evidências sobre a homeopatia.
A afirmação de que a comunidade científica teria algum preconceito contra a prática da homeopatia não se sustenta. Em primeiro lugar, quem precisa mostrar a validade de uma hipótese é seu proponente. Além disso, a espinha dorsal da homeopatia, ao menos na retórica da maioria dos homeopatas atuais, é a memória da água – e ela não existe (leia aqui, aqui e veja aqui uma das grandes especialistas do país na física da água). Um único artigo sobre esse assunto, publicado na revista Nature, é um dos exemplos de como não se deve fazer ciência: supressão de dados, problemas na análise estatística e falta de reprodutibilidade foram alguns vícios apontados pelos editores.
É importante que se diga que, apesar do artigo na Nature ser um marco da ciência ruim, ele continua a ser citado em disciplinas esotéricas em universidades públicas de boa qualidade. Isso mostra que, ao invés de se reivindicar a presença desse tipo de ensino nas escolas, deveríamos nos perguntar por que ele ainda está lá junto com várias outras práticas semirreligiosas, presentes no rol da Política Nacional das Práticas Integrativas e Complementares no SUS.
Na cerimônia, não faltaram também queixas contra o suposto poder opressor da “Big Pharma” sobre a “pequena” indústria farmacêutica homeopática. Só não disseram que, de acordo com o relatório anual de 2021, os ativos da Boiron, uma gigante da indústria farmacêutica homeopática, ficaram em torno de 770 milhões de euros, contra passivos totais da ordem de 239 milhões de euros, numa relação ativo/passivos de 3,22x.
O discurso dos representantes da homeopatia é, portanto, completamente furado: a fundamentação teórica contraria fatos da física e da química; não existe nenhuma metanálise confiável atestando que a prática funciona melhor do que um placebo; e o discurso da opressão do poder econômico da indústria farmacêutica não-homeopática cai por terra se observarmos a razão ativo/passivos da Boiron. Do ponto de vista da ciência, a homeopatia é um caso paradigmático de negação da realidade. Resta aprofundar nos motivos sociológicos que levam as pessoas a perpetuar a irracionalidade/ignorância nos mais diversos setores da sociedade.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência