Publique bem ou morra!

Artigo
1 set 2021
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No mundo científico, há maneiras tradicionais de convencer pessoas. Uma delas é a defesa de um trabalho científico para uma banca de cientistas que perguntam, avaliam, comentam, e, finalmente, reconhecem que o achado científico tem valor, e merece crédito dos pares do autor. Mas como o alcance destas bancas de arguição é pequeno, porque conta, em geral, com pares regionais, a publicação em revistas científicas é a forma mais antiga e tradicional de divulgar novos achados ao resto do mundo.

Em tempos de redes sociais, todos se sentem orgulhosos em ter publicado alguma coisa. A palavra ‘publicação’ caiu na boca do povo, mas em geral este tipo de publicação apenas reflete liberdade de expressão de cada indivíduo. Ainda assim, postagens ofensivas ou pornográficas podem ser filtradas pelo crivo de conteúdo inapropriado, e chegam a ser deletadas. Não estamos tão abandonados assim, na selva das redes. Mas, diferentemente da publicação no Twitter, as publicações científicas precisam ser avaliadas de forma rigorosa, por cientistas de reputação igual ou superior.

Quando submetemos a uma revista especializada um artigo, detalhando nossos experimentos, resultados e interpretações, existe um corpo de editores que faz uma avaliação inicial. Por exemplo, um artigo sobre úlcera gástrica não deve ser publicado em uma revista de ortopedia. Certamente conhecer o editor ajuda muito nesta fase de pré-seleção, mas quando o tema do artigo está no escopo da revista, o editor raramente toma uma decisão unilateral. Ele submete o artigo para um conjunto de revisores com a mesma expertise que a sua. Apenas após estas avaliações é que se decide pela publicação ou não.

Não estando frente a frente com os autores, os revisores, geralmente protegidos pelo anonimato conferido pela revista, acabam sendo mais agressivos nas críticas, por vezes até ofensivos e enviesados por alguma rixa antiga. Por esta razão, em algumas revistas é permitido que autores sugiram cientistas que não gostariam que revisassem seu trabalho, por motivos pessoais ou por serem algum concorrente invejoso. As revistas podem ou não respeitar o desejo dos autores. Outra forma de controlar pequenas vinganças e atritos entre autores e revisores é liberar, ao final, de forma pública, os nomes dos revisores. Isso faz deles personagens mais técnicos e mais equilibrados, que passam a se conter na hora de julgar um artigo.

Costumeiramente, os editores solicitam a avaliação de três revisores. Dependendo do impacto dos resultados - por exemplo, um artigo sobre a eficácia de uma vacina contra COVID-19 -, podem convidar cinco ou seis revisores. Cada dia é mais difícil conseguir o trabalho voluntário de revisores científicos. Ler um artigo e avaliar cada detalhe costuma consumir muito tempo, quando fazemos isso de forma exemplar. Durante a grande pandemia, em função da necessidade urgente de inúmeros revisores especialistas na área de doenças infecciosas, muitos deles já atarefados, atendendo pacientes, algumas revistas passaram a gratificar financeiramente os revisores, garantindo assim a necessária celeridade.

Revistas do mundo inteiro precisaram acelerar o processo de revisão de artigos sobre COVID-19, uma doença nova e letal, o que nem sempre deu certo, porque a revisão rápida, muitas vezes realizada por pessoas que não eram da área, permitiu a publicação intempestiva de artigos fraudulentos, que tiveram de ser retirados posteriormente.

Mesmo antes da pandemia, havia uma tendência crescente de maior transparência no processo de publicação em revistas científicas. O primeiro passo foi cobrar o preço da publicação de quem publicava, e não de quem lia. Assim, hoje em dia, a grande maioria das revistas cobra uma taxa, nem sempre barata, dos autores que têm seus artigos aceitos. A ideia é que os cientistas solicitem este recurso das agências de fomento ou de suas instituições. Países mais pobres costumam ter algum desconto, porque os grupos editoriais entendem que ciência não é prioridade para estes governos. Com isso, cada um de nós, com ou sem dinheiro, pode ler qualquer artigo disponível na internet, de forma gratuita. Ou seja, hoje temos muito mais acesso à informação científica do que há 20 anos; isso se chama open access (“acesso aberto”).

O segundo passo foi a exigência da disponibilização dos protocolos de pesquisa e das bases originais de dados, para que, em caso de dúvida sobre as análises, qualquer revisor pudesse conferir se os testes estatísticos estavam corretos; isso se chama open data (“dados abertos”). Tudo isto ainda é alvo de muito debate na comunidade, porque os cientistas ainda relutam em entregar suas bases de dados, ou pelo medo de que concorrentes tenham acesso, ou por julgar que os dados pertencem a eles, e não a toda a Humanidade.

O open access contribui, por outro lado, para o aparecimento das revistas predatórias. Estas revistas não costumam estar associadas a nenhuma instituição ou sociedade científica, cobram altos valores para publicar, e fazem uma revisão por pares de péssima qualidade, em tempo recorde. Convencem autores jovens e inexperientes de que suas revistas publicam de forma mais ágil, quando, na verdade, só querem lucrar.

A pandemia também tornou popular a publicação rápida, sem revisão por pares, em repositórios de rascunhos de artigos, antes de serem publicados; isso se chama preprint. A ideia por trás destes repositórios é disponibilizar dados frescos, para que qualquer cientista leia e opine. Todos podem comentar e discutir, fazendo com que os autores aperfeiçoem o artigo antes de enviar para a revisão pelos pares. O preprint também serve para divulgar um resultado que pode salvar vidas, de forma bem mais rápida. O processo de revisão por pares pode demorar semanas ou meses, mas se uma medicação causou mais mortes ou salvou mais vidas, por exemplo, a notícia precisa ser espalhada o quanto antes, pelo preprint. Mas lembre-se, se um revisor cuidadoso verificar que os métodos daquela pesquisa estão errados, é possível que um artigo com dados positivos no preprint nunca seja publicado em uma revista séria.

Portanto, há que se tomar cuidado quando baseamos nossa conduta médica em um artigo do preprint ou artigo publicado em revista predatória. E como saber que uma revista é séria e confiável? Bem, existe uma forte tendência de que artigos publicados em revistas sérias sejam mais citados por outros cientistas, o que culmina no aumento do índice de citação daquela revista; isso se chama fator de impacto.

O sistema de revisão por pares ainda é muito criticado, mas até hoje nada conseguiu substitui-lo de forma tão eficiente, apesar dos erros humanos que podem, eventualmente, acontecer. Uma revista com alto fator de impacto pode publicar um artigo ruim, ou uma revista ruim publicar um artigo bom, mas como no falso dilema entre a direita e a esquerda, o melhor caminho ainda é o da democracia. A publicação após revisão por pares é a democracia da ciência moderna.

Qualquer cientista convidado a revisar um estudo, branco ou preto, latino, asiático ou europeu, pode condenar ou aprovar os dados científicos que lhe são apresentados. Após a publicação, a comunidade científica segue debatendo os resultados, que podem se sustentar ou não. No fim, um consenso, contra ou a favor, ajuda a aumentar a probabilidade de que apenas boa ciência chegue à vida cotidiana dos cidadãos.

Em países como os Estados Unidos da América, publicar é uma forma de garantir a divulgação da ciência que fazemos, e sem isso, os cientistas por lá deixam de ser pagos e perdem seus empregos. É a filosofia do ‘Publish or perish!’, que numa versão abrasileirada estaria mais para ‘Publique bem ou morra!’.

 

Marcus Lacerda é médico infectologista e pesquisador

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