Planalto vira repositório de pré-print antivacinas

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5 ago 2021
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Jair Bolsonaro, ao que tudo indica, transformou-se no Comitê Nobel das pseudociências para enfrentamento da COVID-19: toda ideia absurda sobre o vírus, a doença ou vacinas, do tipo que nenhum especialista sério conseguiria ouvir sem cair na gargalhada ou gritar de indignação, encontra pronta acolhida no Palácio do Planalto. O histórico é longo, mas na ocasião mais recente o mandatário abriu os braços para um verdadeiro dossiê de atrocidades, conforme noticiado pelo jornal O Globo.  

O documento acolhido pelo presidente, pelo que é citado na reportagem, é idêntico, ou muito parecido, ao que já havia sido encaminhado ao Ministério Público e ao Judiciário pelo mesmo grupo de antivacinistas, e que circulava em redes de aplicativos de mensagens desde o fim do mês passado. Essa papelada tem lá seu valor como compêndio de folclore: reúne, num mesmo texto, diversos mitos populares do movimento obscurantista antivacinas. Como peça técnica, no entanto, é risível – ou seria, não houvesse o risco muito real de o compilado acabar sendo levado a sério por algum formulador tresloucado de políticas públicas.

Muitas das alegações presentes na versão encaminhada ao Judiciário (e, provavelmente, preservadas na entregue ao presidente) são tão absurdas que, para citar o físico alemão Wolfgang Pauli (1900-1958), “nem erradas estão”. Encaixa-se aí o suposto magnetismo das vacinas: “centenas de vídeos veiculados em mídias sociais têm sugerido que podem existir componentes magnéticos nas vacinas contra COVID-19”, diz o documento.

Ou, ainda, o “altíssimo” número de abortos em grávidas que tiveram contato com pessoas vacinadas, não documentado em nenhuma base de dados séria de todo o planeta. Se a alegação teve origem em algum lugar fora da imaginação dos autores do documento, talvez tenha sido na leitura errônea de uma postagem de rede social inspirada por um site britânico de fake news, e já profusamente desmentida.

 

Genética

O documento tenta descaracterizar as vacinas como vacinas, e propõe chamá-las de “terapias gênicas”. Grande parte do documento busca colocar em dúvida a segurança das vacinas de terceira geração – genéticas e vetorizadas – alegando que estes produtos seriam ainda experimentais, que usam tecnologia muito nova, potencialmente perigosa para seres humanos no curto, médio e longo prazo: podendo, até mesmo, afetar as futuras gerações.

Quase uma maneira de dizer que vamos todos (nós que fomos vacinados, e os filhos que gerarmos de agora em diante) virar jacarés, mas mantendo o discurso dentro do jargão científico, para tentar extrair água de pedra ou, no caso, credibilidade do vácuo.

 

Riscos

Ao tratar do conceito de risco e benefício de vacinas, o documento parte de premissas falsas, de que existem grupos definidos sob risco de COVID-19, e de que fora desses grupos, o risco seria desprezível:

“Em estudos clínicos, a prática habitualmente aceita é análise de risco/benefício estratificada por grupos. Como pretexto para justificar a vacinação para todos, ao contrário, foi aplicado o risco quase completamente associado apenas a idosos, obesos e alguns grupos especiais à toda população.”

Essa afirmação contraria todas as diretrizes de saúde pública globais, ao ignorar, por distração, malícia ou dificuldade cognitiva, alguns fatos básicos. Primeiro, mesmo grupos com baixo risco de desenvolver quadros graves de COVID-19, como jovens sem comorbidades, podem vir a sofrer em grande número, caso o vírus circule livremente (uma pequena fração de um número enorme pode muito bem ainda ser um número grande demais: 1% de 1 milhão é 10 mil). Vacinas são estratégias de saúde pública exatamente porque, além de proteger o indivíduo vacinado, bloqueiam ou dificultam o caminho do vírus rumo a novas vítimas.

Segundo, ninguém é uma ilha: jovens sem comorbidades convivem com idosos e jovens portadores de fatores que agravam o risco de complicação. Se não forem vacinados, podem levar o vírus a essas pessoas mais vulneráveis, contribuindo muito para a disseminação da doença e mantendo-a em circulação.

As campanhas de vacinação começaram com grupos prioritários exatamente para proteger primeiro quem corre mais risco, mas sempre com a finalidade de vacinar em massa, única estratégia possível para realmente limitar a circulação do vírus.

 

 

Retratação

Cita-se em seguida um artigo já retratado, de péssima qualidade, alegando que para evitar três mortes por COVID-19 usando vacinas, teríamos que lidar com duas mortes causadas por vacinas. A alegação é absurda. O artigo foi duramente criticado pela comunidade científica e removido da literatura. Vários editores do próprio periódico responsável por divulgar o estudo renunciaram em protesto, reagindo à irresponsabilidade da revista, como foi noticiado pela Science.

Os dados utilizados pelos autores do artigo em questão foram deturpados, dando a entender que toda morte que ocorre após a vacinação é causada pela vacinação. É um erro lógico fundamental: não é porque B vem depois de A que A é a causa de B. Se você ganhar na loteria depois de ler este artigo, não fomos nós que causamos isso (se discorda, fique à vontade para dividir o prêmio com a gente).

O documento entregue a Jair Bolsonaro, se for o mesmo apresentado ao Judiciário, dá a entender que o artigo teria sido invalidado não por sua baixa qualidade e conclusão cientificamente insustentável, mas por motivos políticos. É a velha cantilena das teorias de conspiração.

Cita-se também “outro estudo”, sem dizer qual, que teria avaliado o parâmetro NNT (“number needed to treat”, número necessário de pacientes tratados para que um deles seja beneficiado). Este número é muito usado em testes clínicos de eficácia para remédios, para avaliar quantos pacientes teriam que ser tratados para que fosse possível observar o resultado em pelo menos um deles. Por exemplo, quantos pacientes hipertensos precisariam seguir o tratamento com um certo remédio de pressão alta para que se possa afirmar que pelo menos um ataque cardíaco foi evitado pelo medicamento.

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No caso da vacina, uma avaliação automática e ingênua do parâmetro buscaria determinar quantas pessoas precisamos vacinar para podermos afirmar que evitamos a morte de pelo menos um vacinado. Vacinas, no entanto, não são remédios para hipertensão: ao reduzirem a circulação do vírus, geram um benefício que vai além do indivíduo “medicado”.

Em intervenções de saúde pública como vacinas, onde a proteção se dá de forma coletiva, o uso do NNT é inadequado, pois a vacinação em massa diminui a circulação da doença na comunidade. Beneficia inclusive os não vacinados, através da proteção de rebanho, ou coletiva.

Artigo publicado pelo Prof. Luis Claudio Correia, da Escola Baiana de Medicina, explica com muita clareza por que o argumento do NNT não se aplica a vacinas. Usando o caso da vacina da Pfizer como exemplo, diz ele, a redução absoluta do risco foi de 0,84, resultando assim em um NNT de 119. Se fosse um medicamento, talvez não o considerássemos de muito sucesso.

Mas no caso de uma vacina para COVID-19, se pensarmos em potencial de transmissão, cada pessoa “não tratada” pode contagiar outras 3 ou 4. Agora, com a variante Delta, esse número está estimado entre 5 e 8. Assim, esses 119 já seriam reduzidos para 30. Se entendermos também, segundo o professor, que não estamos falando de doentes individuais, mas de uma população, então temos apenas um doente a tratar (vacinar): 70% da população, e podemos dizer que o NNT=1.

 

Proteínas doidonas

Outra alegação amalucada do documento antivacinas (sim, é exatamente disso que se trata), é de que as vacinas de mRNA nos transformariam em “fábricas de proteína S”, o que acabaria intoxicando o pobre cidadão vacinado. Para refrescar a memória: as vacinas de mRNA e vetorizadas estimulam o corpo humano a produzir um pedaço do vírus (a tal “proteína S”, ou fragmentos dela) para deixar o sistema imune esperto para quando o vírus inteiro chegar.

O ponto é que, ao contrário do que os antivacinistas dizem, essa produção não é contínua e descontrolada: a instrução para produzir proteína S vem sob a forma de uma molécula instável, que se degrada rapidamente e é apagada.

Se a instrução tivesse realmente a permanência eterna que o dossiê alega, saturando o corpo do indivíduo vacinado com proteínas virais, deveríamos ter visto isso acontecer em todos os animais vacinados durante os testes das vacinas genéticas ou vetorizadas.

Os estudos em animais foram publicados em setembro de 2020 (preprint Pfizer) e fevereiro de 2021 (artigo Pfizer), e julho de 2020 (Moderna). É curioso notar que após aproximadamente um ano, não há registro de que os animais estejam loucamente produzindo proteína S para todo sempre, com prejuízos seríssimos para outros órgãos. A existência destes artigos sobre os estudos em animais já refuta também outra alegação do documento, a de que as vacinas genéticas não conduziram estudos em modelo animal.

A molécula de RNA da vacina é rapidamente degradada após ser traduzida em proteína pela célula, e não teria como, portanto, continuar dando instruções para a manufatura da proteína S durante anos. Ou seja, o RNA é uma molécula que não fica repetidamente sendo lida e transformada em proteína pela célula, como bem explicado aqui e aqui. Essa explicação está também no site do próprio CDC, deixando bem claro que, como qualquer mRNA, o mRNA das vacinas também é degradado pela célula após o uso.

 

E o resto...

As demais alegações do documento antivacinas, como as de que as vacinas podem causar infertilidade, ou inúmeros efeitos adversos que teriam – ou não teriam – sido relatados, são simplesmente alegações jogadas ali para impressionar, sem referências de estudos sérios que as embasem.

Relatos de efeitos adversos existem para qualquer medicamento ou vacina, é assim que se faz vigilância sanitária. É importante notar, no entanto, que relatos não se traduzem automaticamente em efeitos adversos de fato, e por isso precisam ser avaliados para aferir se há relação de causa e efeito que possa ser atribuída às vacinas ou medicamentos.

Uma vez concluída a investigação, efeitos adversos, mesmo extremamente raros, devem constar em bula. Isso não deveria diminuir nossa confiança no sistema, e sim aumentá-la. Mostra que o monitoramento está funcionando e que identificamos efeitos mesmo quando são raros.

O fato é que mais de 4 bilhões de doses de vacinas contra COVID-19 já foram aplicadas. Pouco mais de 1 bilhão já receberam duas doses. Efeitos raros aparecem em vacinações em massa desta magnitude, e isso não quer dizer que sejam comuns.

Relatório do CDC avaliou relatos de efeitos adversos para as vacinas Pfizer e Moderna nos EUA, durante o período de meados de dezembro a meados de janeiro de 2021. Nesse intervalo, aproximadamente 7 mil apontamentos foram recebidos, e destes apenas 640 eram relatos de efeitos sérios. Isso em 13,7 milhões de doses aplicadas. Alergias e anafilaxia foram reportadas para 46 pessoas após vacinas da Pfizer e 16 após Moderna. Isso está dentro do esperado para reações alérgicas em outras vacinas, da ordem de 4,5 casos por milhão de doses administradas.

Para uma ideia de comparação, o número estimado de pessoas alérgicas ao antibiótico penicilina é de 1-5 para cada 10 mil.

Alegar que efeitos raros como anafilaxia, miocardite, etc., seriam comuns é irresponsável e leviano. Apresentar tais alegações sem evidências, com base em impressões pessoais, delírios ou fofocas de rede social, mais ainda. Se alguém tem dados robustos que embasem uma reviravolta na política global de vacinação para COVID-19, que os apresente à comunidade científica. Não à moçada do WhatsApp ou ao Comitê Nobel do Planalto.

 

CORREÇÃO:

 

O texto, tal como publicado originalmente, dizia que mais de 4 bilhões de pessoas já haviam recebido pelo menos uma dose de alguma vacina contra COVID-19. O dado correto é de que mais de 4 bilhões de doses ja foram aplicadas. Esta correção foi feita em 05/08/2021.

 

Natalia Pasternak é microbiologista, pesquisadora associada do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência, membro do Committee for Skeptical Inquiry (CSI), colunista do jornal O Globo e coautora de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto). Atualmente, é "visiting scholar" em Columbia University

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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