De camundongos e pessoas na comunicação científica

Artigo
15 jun 2021
Autor
camundongo

 

Em 2019, James Heathers, então pesquisador na Universidade Northeastern, EUA, criou a conta no Twitter @justsaysinmice (“diga apenas em camundongos”, em tradução livre) para chamar a atenção ao problema de que muitas notícias de descobertas na área da saúde omitirem, ou darem pouco destaque, ao fato de basearem-se em estudos feitos com animais. Chamativas, manchetes como “suplemento alimentar pode ser a resposta na luta contra o Alzheimer”, “dieta rica em sal provoca demência e outras doenças do cérebro” ou “antibiótico comum oferece novo caminho contra o Alzheimer” podem gerar falsas esperanças em pacientes e familiares, de que uma cura ou prevenção está próxima, quando na verdade as pesquisas ainda estão longe de uma aplicação clínica; se é que algum dia chegarão a se mostrar úteis em humanos.

Heathers, no entanto, não foi o primeiro a mostrar preocupação com isso. Já em 2006, o jornalista especializado em saúde americano Gary Schwitzer criou o site Health News Review com o intuito de avaliar como mídia e assessorias de imprensa relatavam os achados no campo. Ao longo de 13 anos, Schwitzer e uma equipe que chegou a 50 profissionais, de diversas áreas, analisaram mais de 2,6 mil artigos noticiosos e matérias veiculados por alguns dos principais meios de comunicação em língua inglesa e 600 textos de divulgação ("press-releases") de instituições de ensino e pesquisa, seguindo dez critérios informativos, envolvendo desde os custos dos tratamentos propostos a informações de eventuais vantagens sobre alternativas existentes, além da consulta a fontes independentes.

No geral, a maioria das peças revisadas se mostrou apenas mediana e falhou em responder adequadamente aos cinco principais critérios de avaliação, com 32% podendo ser classificadas como ruins, com duas ou menos estrelas de um máximo de cinco na análise. Entre os principais problemas identificados ao longo destes anos, tanto nas reportagens quanto nos releases, estavam enquadrar os resultados numa visão mais otimista; destacar desfechos secundários ou substitutos, sem explicar as limitações deste tipo de análise; uso impróprio de relação de causalidade para estudos observacionais, dependência de uma única fonte, muitas vezes com conflitos de interesse não revelados; e relatos anedóticos, em que casos isolados de pacientes são usados para ações de relações públicas.

De olho no problema, a bióloga Marcia Triunfol, consultora científica do Departamento de Pesquisa e Toxicologia da Humane Society International, uma organização de proteção e defesa dos direitos dos animais, e Fabio Gouveia, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, da Fiocruz, decidiram investigar se a omissão da referência ao uso de modelos animais nas manchetes das notícias também acontecia nos títulos dos artigos científicos, e se esta ausência influenciava a forma e quanto os estudos eram reportados. Para isso, eles focaram pesquisas sobre o mal de Alzheimer com camundongos publicadas com acesso aberto entre 2018 e 2019, apresentando os resultados no artigo “What’s not in the news headlines or titles of Alzheimer disease articles? #InMice”, publicado nesta terça-feira, 15, no periódico PloS Biology.

"O que nos levou a fazer este artigo foi uma observação”, conta Marcia. “Primeiro, tem este Twitter do James Heathers, com mais de 70 mil seguidores, que expõe exatamente esta questão das histórias, das notícias, que omitem que o estudo foi feito em camundongos nas manchetes. Mas a gente começou a observar que na verdade isso também acontece em artigos científicos, que os autores também omitiam no título do artigo científico que o estudo tinha sido feito em camundongos. Eu pegava um estudo sobre Alzheimer, via o título e achava: ‘que legal, essa pesquisa foi feita com humanos’. Mas aí eu lia o estudo e pensava: ‘não, mas espera aí, o estudo foi feito em camundongos!’. E isso começou a me chamar muito a atenção. Aí, com conversando com o Fabio, decidimos ver se existia alguma relação entre essas duas coisas”.

Assim, a dupla primeiro fez um levantamento no repositório de artigos PubMed de pesquisas com acesso aberto que usaram modelos com camundongos para estudar o Alzheimer entre 2018 e 2019, identificando um total de 623 estudos. Destes, 405 deixavam claro em seus títulos se tratarem de experimentos com animais, classificados então como “declarativos”, enquanto 218 não traziam a informação já no seu título, chamados então de “não declarativos”. A seguir, os autores verificaram quais destes artigos foram acompanhados pelo Altmetric Explorer, plataforma web que produz relatórios sobre a repercussão digital de pesquisas científicas, incluindo notícias, redes sociais e citações, chegando a 382 artigos (94,3%) no grupo dos “declarativos” e 212 (97,2%) no dos “não declarativos”.

Numa primeira análise, a presença ou não da ressalva de que o estudo havia sido feito em camundongos não determinou se a pesquisa acabaria sendo divulgada pela mídia generalista. Ao todo, 295 (77,2%) dos artigos do grupo declarativo geraram pelo menos uma notícia, num total de 887 matérias, ou cerca de três reportagens por artigo, enquanto 173 (81,6%) dos artigos não declarativos também foram noticiados. A média de reportagens por artigo do segundo grupo, no entanto, foi bem maior, de 3,9 para um total de 682 peças noticiosas, indicando uma repercussão mais ampla quando a informação sobre modelo animal era omitida.

Mas a omissão do "em camundongos" influenciou a maneira como a notícia foi divulgada, com as manchetes jornalísticas tendendo a omitir (ou declarar) que o estudo foi feito com animais dependendo de se a informação estava ou não no título do artigo científico. Das 862 reportagens com título sobre estudos do grupo declarativo, 397 (46,1%) também foram declarativas. Já no grupo das pesquisas não declarativas, apenas cerca de 10%, ou 70 das 673 notícias analisadas (nove delas não tinham título), traziam a ressalva. Isto é, quase 90% seguiram a decisão dos autores do estudo, de omitir a informação sobre modelo animal do título.

Isso fez com que, no final, a maioria das notícias sobre as descobertas não informasse, já na manchete, que ela tinha sido feita em animais, não em humanos. Das 1.535 notícias relativas aos dois grupos de estudos, apenas 467 (30,4%) tinham a ressalva na chamada, enquanto 1.068 (69,6%) omitiram o importante detalhe. Problema que assume ainda maiores proporções com a ascensão das redes sociais como veículo de disseminação e consumo de notícias. Em outra análise, Marcia e Fabio observaram que os estudos com títulos declarativos geraram uma média de 9,7 publicações no Twitter, enquanto as pesquisas com títulos sem a ressalva foram alvo de uma média de 18,8 tuítes cada, quase dobro.

"Isso pode criar falsas esperanças, principalmente para as pessoas com Alzheimer e os familiares destas pessoas”, comenta, citando como exemplo a recente notícia da aprovação pela FDA, a agência de regulação de medicamentos e alimentos dos EUA, do aducanumabe, primeiro tratamento para supostamente prevenir a doença, e primeiro novo remédio para ela em 18 anos, em decisão que foi alvo de críticas por muitos especialistas.

“Tem muito pesquisador e médico que não está convencido do efeito deste remédio nos ensaios clínicos. O fato é que esta é uma doença que é uma questão de saúde pública. As populações estão envelhecendo, o número de pacientes está aumentando cada vez mais e não há basicamente nada a se fazer. Há paliativos, os remédios que tratam de alguns sintomas, sono, apetite, isso ou aquilo, mas não é realmente um tratamento. Mas, se formos ver as manchetes sobre a aprovação do medicamento, a sensação que dá é que é uma grande inovação, quando na verdade não sabemos ainda. A gente precisava anunciar isso com um pouco mais de cautela”.

As razões para que os cientistas decidam incluir ou omitir, no título de um artigo científico, o fato de que a pesquisa foi feita em camundongos ainda são um mistério. Em seu estudo na PLoS Biology, a dupla explora diversas hipóteses, como obrigatoriedade da informação no título pelas regras de publicação do periódico ou restrições de espaço, sem encontrar diferenças significativas entre os dois grupos. A análise, no entanto, revelou que mesmo as publicações científicas que exigem destaque para a ressalva por vezes falham em aplicar suas próprias regras, com 11 artigos tendo passado com títulos não declarativos nos oito periódicos que dizem requerer a informação. Diante disso, Marcia e Fabio creditam a escolha a uma decisão puramente autoral.

"Tentamos investigar várias possíveis razões para isso, mas meio que esgotamos as hipóteses que tínhamos”, diz Marcia, que não quis especular se o motivo não seria a impressão, sugerida inclusive pelo seu estudo, de que as pesquisas que omitem a informação nos títulos costumam receber uma atenção maior da mídia e do público.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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