A FDA, órgão do governo federal dos Estados Unidos responsável por regular o uso de medicamentos naquele país – e que serviu de inspiração para a Anvisa –, revogou a autorização para que cloroquina (CQ) e hidroxicloroquina (HCQ) sejam usadas no tratamento da COVID-19. Os usos para os quais CQ e HCQ eram liberadas anteriormente – malária e doenças como lúpus – continuam autorizados.
A decisão de vetar o uso de CQ e HCQ contra o novo coronavírus não surpreende ninguém que tenha acompanhado o fiasco político criado em torno desses fármacos e, mais importante, a ciência, com um mínimo de serenidade e de bom senso. Surpresa, se alguma há, foi o recuo da FDA – que havia concedido, em março, a autorização de emergência, agora revogada, após sofrer pressões de Donald Trump – ter demorado tanto.
As razões para a proibição do uso dos fármacos no combate à COVID-19, expressas neste documento da agência federal americana, são claríssimas: a melhor evidência científica acumulada até agora permitiu “determinar que é improvável que CQ e HCQ sejam eficazes no tratamento de COVID-19. À luz dessa determinação, combinada a seguidos informes de efeitos adversos cardíacos e outros efeitos colaterais graves, a agência determina também que os benefícios, conhecidos ou potenciais, da CQ e HCQ não são maiores do que os riscos, potenciais e conhecidos”.
Os estudos que demonstram os fatos resumidos no comunicado da FDA são abundantes e já foram tratados nesta revista, por exemplo, aqui, aqui e aqui. Os fármacos CQ e HCQ devem sua fama global como pílulas mágicas contra COVID-19 a uma série de estudos de péssima qualidade conduzidos na França e ao ativismo de celebridades do Twitter – mais especificamente, do investidor de bitcoin James Todaro, do bilionário Elon Musk, de Donald Trump e de seu eterno aprendiz, Jair Messias Bolsonaro. A sequência principal de tuítes, desencadeada na segunda quinzena de março, é esta, abaixo:
Estas postagens de rede social, e as de seguidores que as amplificaram e multiplicaram, são as únicas credenciais que a CQ e a HCQ tiveram para lastrear a fama de “boas candidatas” ao tratamento da COVID-19. A base científica sempre oscilou entre tênue e inexistente – tão fraca, na verdade, que nem mesmo a Organização Mundial da Saúde (OMS) pretendia incluir os fármacos em seus estudos, antes que a opinião pública criasse pressão nesse sentido.
A paixão de Trump pelos fármacos fez com que diversas indústrias corressem para doar milhões de doses de CQ e HCQ ao governo dos Estados Unidos (fazer mimos no homem mais poderoso do mundo é boa política comercial), mas muitos médicos conscienciosos simplesmente recusaram-se a usá-las. Agora, com a decisão da FDA, esse estoque todo, que já estava encalhado, vai sobrar de vez. Ou, quem sabe, o Brasil se disponha a ficar com ele?
Encalhe para o Brasil
No início do mês, o governo dos Estados Unidos anunciou o envio de dois milhões de doses do encalhe de CQ e HCQ para o Brasil. E no mesmo dia em que a FDA declarava que os riscos desses fármacos, no contexto da COVID-19, superam os benefícios – de fato, que qualquer benefício é “improvável” –, o Ministério da Saúde brasileiro anunciava a ampliação do protocolo de uso de CQ e HCQ, que já vigora no país, para crianças e gestantes.
Autoridades nacionais afirmaram que os estudos usados pela FDA para proibir o uso fármaco contra COVID-19 são “de péssima qualidade metodológica”, e que o Brasil vai “continuar produzindo bons trabalhos”. Não está claro o que “bons trabalhos” significam, nesse contexto, já que o único estudo brasileiro sobre uso de CQ ou HCQ contra o novo coronavírus publicado, até agora, num periódico internacional de boa reputação e com revisão pelos pares teve resultados negativos, perfeitamente consistentes com a decisão da FDA de vetar os fármacos.
Nos Estados Unidos, a interferência política, grosseira e indevida, em decisões de órgãos técnicos do governo, ocorrida em março – quando a FDA deixou-se constranger por Trump e autorizou o uso da CQ e da HCQ para tratar COVID-19 – foi vencida pelas instituições e pela ciência, três meses depois. Já no Brasil, ciência e saúde seguem docemente subordinadas a vaidades políticas e delírios messiânicos. Não superamos o subdesenvolvimento: tratamos, isso sim, de agravá-lo.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)