“Este medicamento não foi submetido a estudos clínicos para comprovação de eficácia.”
Independente dos critérios de demarcação adotados, há consenso de que a homeopatia é uma das pseudociências mais notáveis. (Mahner, 2013) Como as outras infames medicinas alternativas, disfarçadas sob o inocente e pomposo nome de “Práticas Integrativas e Complementares” pelo Ministério da Saúde brasileiro, a homeopatia é assunto abordado constantemente nos artigos desta revista. Estes artigos me levaram a frequentar as prateleiras dos produtos homeopáticos, vendidos em Ilhéus (BA) tanto em farmácias quanto em lojas de produtos ditos “naturais”.
Aprendi, nos artigos deste Instituto Questão de Ciência, que a homeopatia está sob intenso escrutínio em países como Canadá, França, Inglaterra e Austrália. E que, por manter medicamentos homeopáticos nas mesmas prateleiras em que ficam medicamentos de verdade, a rede de supermercados Walmart e a maior rede de farmácias dos Estados Unidos, a CVS, estão sendo processadas por fraude contra o consumidor e ameaças à saúde pública pelo Center for Inquiry (CFI), organização que promove o pensamento crítico e o combate às pseudociências.
Também nos EUA, o órgão oficial de proteção ao consumidor, a Comissão Federal de Comércio (FTC, na sigla em inglês) decidiu obrigar fabricantes de produtos homeopáticos a rotularem seus “medicamentos” com um aviso de ineficácia. Depois de ler esses artigos, passei a observar mais atentamente as caixas dos produtos homeopáticos nas prateleiras de Ilhéus (BA), o que me levou às descobertas que relato a seguir.
Apenas dois produtos homeopáticos são encontrados nas farmácias da cidade. Os populares “Complexo 35” e “Complexo 46”, produzidos pela Farmácia e Laboratório Homeopático Almeida Prado. Os vendedores (e farmacêuticos!) respondem ao pedido de “Quero um 46” ou “Um 35, por favor” com a indicação imediata do produto. Nas lojas de produtos ditos “naturais”, outros “complexos” da marca também podem ser encontrados. Sugerindo um monopólio, confirmado por vendedores e farmacêuticos, todos os produtos homeopáticos disponíveis no mercado em Ilhéus vêm desta empresa, com variações em torno do tema Complexo Almeida Prado número “XX” e total ausência de produtos concorrentes. Os preços praticados (R$ 20,00-R$ 30,00) são superiores aos cobrados na loja virtual da Almeida Prado.
Em julho de 2019, detectei pela primeira vez o bizarro texto que abre este artigo, em uma embalagem do “Complexo 35”. Misturada aos avisos rotineiros de medicamentos uma frase se destacava: “As indicações terapêuticas deste medicamento foram definidas conforme dados publicados na literatura homeopática, antroposófica ou anti-homotóxica.”
Para completar, o aviso na embalagem finalizava informando a ausência de testes de eficácia, na forma transcrita na primeira linha deste artigo. Comprei duas caixas de lotes diferentes do mesmo produto, depois de observar que o aviso aparecia apenas nas embalagens que indicavam produção em fevereiro de 2019, mas não era encontrado nas caixas datadas de agosto de 2018.
Depois de comprar e analisar outras caixas dos produtos Almeida Prado em diferentes ocasiões, farmácias e lojas “naturais’’, foi possível detectar um padrão semelhante nas embalagens dos produtos homeopáticos. Nas caixas dos lotes mais antigos dos “complexos” 10, 28 e 35 não há o aviso. Ele aparece somente nas caixas mais recentes, produzidas depois de janeiro/fevereiro de 2019. Constata-se que, coincidentemente, a mudança nas embalagens e bulas da Almeida Prado acompanhou ao cronologia de eventos internacionais, como o descredenciamento da homeopatia na rede pública Inglesa, completado em março de 2018, e indo ao encontro das exigências da FTC.
As diferentes versões das bulas dos três “complexos” disponíveis em Ilhéus também foram analisadas e apresentaram padrões de evolução semelhantes aos observados nas embalagens. As bulas informam que foram aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária em 13/06/2016 e em 23/01/2019.
Em vez de apenas acrescentar o conteúdo sincero, como nas embalagens, houve também uma supressão de texto, o que põe as versões variantes das bulas em aparente contradição umas com as outras. Como nas caixas, nas bulas dos “complexos” houve o acréscimo dos mesmos enunciados, digamos, “esclarecedores”. Mas além do acréscimo, houve a remoção de uma frase presente nas versões anteriores das bulas: “Os componentes da fórmula deste medicamento foram devidamente experimentados em humanos”, o que aparentemente contradiz os dizeres atualmente inscritos também nas embalagens, que negam a existência de testes clínicos.
Talvez a frase suprimida fizesse referência ao processo homeopático de “provações”, um protocolo sem nenhuma validade científica, em que pessoas saudáveis experimentam certas substâncias e materiais, que depois serão usados em formulações homeopáticas, e descrevem suas impressões subjetivas a respeito. Se esse era o caso, a remoção se explica para evitar a confusão com testes clínicos adequados.
Em relação ao “Complexo 46”, encontrado em todas as farmácias e lojas “naturais” de Ilhéus, não foram observadas mudanças na embalagem como nos demais “complexos” analisados.
A caixa deste “complexo” informa que, junto das supostas substâncias homeopáticas, os comprimidos apresentam 0,005 g de Picossulfato de Sódio, uma substância química comumente utilizada no preparo para exames de colonoscopia. Apesar de sua identidade visual ser praticamente a mesma dos “complexos homeopáticos” da marca, a embalagem do produto informa que se trata de um laxante.
Valério Andrade Melo é engenheiro florestal, com mestrado na área pela Universidade Federal de Viçosa. É professor de ecologia no Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Santa Cruz, onde coordena o Coletivo Cético M.Faraday do Programa Caminhão com Ciência, um projeto permanente de extensão que faz popularização da ciência em escolas da região sul da Bahia. É editor da Wikipédia, com foco em verbetes sobre biodiversidade, educação, religiões e pseudociências, membro do Grupo Wikimedia no Brasil e do Guerrilla Skepticism on Wikipedia.
REFERÊNCIA
Mahner, M. 2013. Science and Pseudoscience: How to Demarcate after the (Alleged) Demise of the Demarcation Problem. In: Pigliucci, M.; Boudry, M. (eds.) Philosophy of pseudoscience: reconsidering the demarcation problem. Chicago: The University of Chicago Press, p. 29–43.
NOTA: Versões da loja virtual da Almeida Prado, onde podem ser encontradas as bulas mencionadas.
Complexo 1
Versão atual: http://bit.ly/alpaco1
Versão 2017: http://bit.ly/alpaco1a
Complexo 10
Versão atual: http://bit.ly/alpaco10
Versão 2017: http://bit.ly/alpaco10a
Complexo 28
Versão atual: http://bit.ly/alpaco28
Versão 2017: http://bit.ly/alpaco28a
Complexo 35
Versão atual: http://bit.ly/alpaco35
Versão 2018: http://bit.ly/alpaco35a