Como se mede a corrupção de um país?

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16 out 2019
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O termômetro é o instrumento adequado para medir a variação da temperatura. A escala mais popular é a Celsius, que adota como referência os pontos de congelamento e de ebulição da água. Quem viu a série Chernobyl deve lembrar que a radiação pode ser mensurada como auxílio de um contador de Geiger (veja aqui como construir um em casa). E todo mundo que já fez regime sabe bem da utilidade da balança para acompanhar a variação do peso. Agora, imagine um aparelho capaz de aferir precisamente a corrupção. Qual seria o nível observado no Brasil? 

Infelizmente, a mensuração da corrupção, como a de qualquer atividade criminal, tende a ser subestimada, ou seja, o que aparece é apenas um pedaço do que realmente acontece, mais ou menos como a ponta de um iceberg. Do ponto de vista científico, a ausência de indicadores confiáveis dificulta a produção de evidências robustas sobre as causas e consequências da corrupção. Na gestão governamental, a falta de dados consistentes limita a implementação de políticas públicas especialmente desenhadas para combater o uso indevido do cargo público para obtenção de benefícios privados (SHLEIFER & VISHNY, 1993). 

Por esse motivo, a maior parte dos trabalhos acadêmicos sobre o assunto utiliza medidas de percepção. Comparativamente, o indicador mais utilizado do mundo é o Índice de Percepção da Corrupção (IPC), produzido pela Transparência Internacional. A Figura 1 ilustra a pontuação de 180 países em 2018. 

 

Figura 1 – Índice de Percepção da Corrupção (2018)

 

mapa corrupto

 

 

 

O IPC varia entre 0 e 100. Quanto menor, mais forte é a percepção da corrupção em um determinado país. De acordo com os dados mais recentes, com escore 35, o Brasil apresentou a pior nota desde 2012, ficando na 105a posição, empatado com Costa do Marfim, Zâmbia e Timor-Leste (nações, com o perdão da palavra, cleptocratas). O Gráfico 1 ilustra a variação do Índice de Percepção da Corrupção no Brasil entre 1995 e 2018.

          Gráfico 1 – Índice de Percepção da Corrupção (BRASIL, 1995-2018)

grafico1

                    

 

A linha pontilhada vermelha ilustra a média do período (1995-2018), que foi de 37,54. Como se vê, desde 2014 que o país vem, literalmente, descendo a ladeira, passando de 43 para 35, o que representa uma variação percentual de 18,6%. Em uma frase: a percepção da corrupção em nossa pátria amada está aumentando. Para melhor compreender o comportamento desse indicador, é importante observar como a corrupção é percebida em outros países. Vejamos o caso dos Estados Unidos da América (EUA). O Gráfico 2 ilustra esses dados em perspectiva comparada. 

 

Gráfico 2 – Índice de Percepção da Corrupção (EUA e BRASIL, 1995-2018)

grafico2

 

Nos Estados Unidos, a média histórica é de 74,54, com desvio padrão de 2,08. No Brasil, como já dissemos, a média do período entre 1995 e 2018 é de 37,54, com desvio padrão de 3,81. Em estatística, além da tendência central da distribuição, que pode ser aferida com a média, a mediana ou a moda, estamos interessados também na variabilidade das estimativas[1]. Na terra de Trump, o IPC passou de 78, em 1995, para 71 em 2018, o que representa uma variação negativa de aproximadamente 9%. No Brasil, passamos de 27 para 35 no mesmo período, o que significa uma flutuação de quase 30%. 

Em resumo, podemos inferir o seguinte: (1) em média, a percepção da corrupção nos Estados Unidos é significativamente menor do que aquela sentida no Brasil e (2) a volatilidade da percepção é maior nas terras tupiniquins. O Gráfico 3 ilustra a variação do Índice de Percepção da Corrupção na América Latina.

 

 Gráfico 3 – Índice de Percepção da Corrupção (AMÉRICA LATINA, 2018)

grafico 3

 

 

A linha pontilhada vermelha representa a percepção média sobre a incidência da corrupção na América Latina em 2018 (36,35). Uruguai (70), Chile (67) e Costa Rica (56) lideram o ranking de integridade (menos corrupção). O Brasil ficou ligeiramente abaixo da tendência central, imprensado entre El Salvador e Peru. Nicarágua (25), Haiti (20) e Venezuela (18) amargam as últimas posições. O Gráfico 4 ilustra a percepção da corrupção no grupo de países do BRICS. 

 

       Gráfico 4 – Índice de Percepção da Corrupção (BRICS, 2018)

 

grafico 4

  

 

Com média de 37, África do Sul (43) e Índia (41) exibem menores níveis percebidos de corrupção. O Brasil ficou abaixo da tendência central dos BRICS, mas superou a Rússia (28). 

Como essas informações podem ajudar os formuladores de políticas públicas? De acordo com Paul Heywood, professor da Universidade de Nottingham, a percepção sobre a realidade pode ser influenciada por diferentes elementos não necessariamente relacionados à prevalência do fenômeno: em outras palavras, o nível de corrupção que as pessoas acreditam existir pode ser maior ou menor que o nível real, dependendo de fatores que afetam a opinião pública. Por exemplo, quanto maior a liberdade de imprensa, maior a chance de que casos de corrupção ocupem as manchetes dos jornais, influenciando, assim, a visibilidade do tema.

Em 2015, pela primeira vez a corrupção foi vista como o principal problema do Brasil, de acordo com uma pesquisa de opinião do Datafolha. A professora Nara Pavão (UFPE), em um artigo recente, postulou que quando a corrupção é percebida como generalizada entre os candidatos a cargo público, os eleitores tendem a considerar outros elementos no processo de tomada de decisão. 

No Brasil, o Código Penal tipifica os crimes de corrupção ativa (art. 333) e corrupção passiva (art.317), cominando pena de dois a 12 anos de reclusão e multa. No entanto, de acordo com os dados oficiais do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), menos de 1% da população carcerária responde por esses dois crimes. Em um estudo original sobre o assunto, Silva (2016) argumenta que existe uma grande lacuna entre a prática do crime e a sua efetiva punição. 

Portanto, o primeiro desafio para combater efetivamente a corrupção é desenvolver melhores instrumentos para detectá-la. Inegavelmente, o surgimento de índices agregados para mensurar a corrupção alterou significativamente o status do conhecimento científico sobre o tema. No entanto, a maior parte das evidências foi produzida a partir de medidas subjetivas de percepção, que são mais suscetíveis a erros de mensuração. Neste artigo, defendemos que o combate à corrupção depende da adoção de melhores procedimentos técnicos de coleta e análise de dados. 

Em particular, a fiscalização aleatória das atividades governamentais é um procedimento simples e cumpre um duplo papel[2]. Por um lado, as estimativas produzidas a partir de uma amostra escolhida ao acaso tendem a ser mais representativas dos parâmetros populacionais, ou seja, teremos medidas mais confiáveis a respeito da prevalência da corrupção. Por outro, a fiscalização aleatória das atividades públicas tem o potencial de dissuadir o uso indevido do cargo governamental para a obtenção de benefícios privados. Afinal, como todas as autoridades e repartições têm a mesma chance de ser selecionadas, é impossível prever onde será realizada a próxima auditoria.

É lugar-comum defender o fortalecimento institucional como um mecanismo chave de combate à corrupção. Todavia, a definição de ações específicas de controle depende do conhecimento da realidade, e não apenas de como ela é percebida. Não é por acaso que a corrupção aparece como o principal problema do Brasil, mas é justamente a aleatoriedade que pode ajudar a reduzir a sua real incidência.

 

Dalson Figueiredo é Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (DCP – UFPE) e líder do Grupo de Métodos de Pesquisa em Ciência Política. 

Antônio Fernandes é Mestrando em Ciência Política pelo PPGCP/UFPE e membro do Grupo de Métodos de Pesquisa em Ciência Política.

 

NOTAS

[1] O desvio padrão cumpre essa função: ele informa a variação dos valores da distribuição em torno da média. Quanto maior o desvio padrão, mais heterogênea é a distribuição, logo, a média é menos representativa da tendência geral dos dados. Por outro lado, quanto menor o desvio padrão em relação à média, mais homogênea é a distribuição dos dados.

[2] A Controladoria Geral da União (CGU) utiliza o sorteio aleatório como critério de seleção dos casos examinados no Programa de Fiscalização em Entes Federativos. Para mais informações, ver: <https://www.cgu.gov.br/assuntos/auditoria-e-fiscalizacao/programa-de-fiscalizacao-em-entes-federativos/3-ciclo>. Para um estudo sobre corrupção e reeleição no Brasil a partir dos dados da CGU, ver Batista (2013). Para uma análise sobre transparência e corrupção ver a recente pesquisa da professora Nicole Janz <https://politicalsciencereplication.wordpress.com/2019/05/07/research-transparency-in-brazil-creating-impact-step-by-step/>. 

 

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