Arroz e feijão são a marca registrada da alimentação brasileira, com o feijão do tipo carioca respondendo por 70% do consumo da leguminosa no país. É um produto típico brasileiro: não há importação de feijão carioca, apenas do preto. Se quisermos continuar a ter feijão carioca no prato, temos que garantir a produção nacional.
O consumidor já deve ter notado que o preço do feijão carioca andou subindo bastante, chegando, em algumas regiões, a até R$ 14 - R$ 16 o quilo. O motivo? Uma praga chamada vírus do mosaico dourado.
Esse vírus é transmitido pela mosca branca, e uma lavoura infectada pode sofrer perda de 40%-100% da produção. A infestação de mosca branca acomete as lavouras principalmente das regiões centrais do Brasil (MT, GO, DF, BA, PE, MG, SP, PR), de clima mais quente. Apenas o Rio Grande do Sul escapa da praga, graças ao clima mais frio, mas em tempos de aquecimento global, esse cenário pode mudar rapidamente.
As plantas infectadas pelo vírus não crescem, ficam amareladas, o que forma um “mosaico” de verde e amarelo nas folhas. As vagens e os grãos ficam inviáveis. A mosca prolifera rapidamente. Pode-se contabilizar até 300 insetos por planta. O ciclo de vida é de apenas 19 dias, do ovo ao inseto adulto. As ninfas, os insetos que acabaram de sair dos ovos, já são capazes de transmitir o vírus, sugando a seiva da planta. Quando uma mosca adquire o vírus de uma planta contaminada, passa o resto da vida com a capacidade de transmiti-lo para outras plantas. O feijão é especialmente suscetível.
Com a queda na produção do feijão carioca, cresceram as importações do feijão preto.
Medo de tecnologia
A Embrapa desenvolveu, com tecnologia nacional, um feijão geneticamente modificado resistente ao vírus (feijão RMD). Após uma longa jornada desde o seu desenvolvimento, em 2004, e sua aprovação pela CTNBio, em 2011, o feijão RMD foi liberado para comercialização no final de março deste ano. Mas a decisão já está ameaçada.
A Câmara Setorial do Feijão convocou uma reunião para discutir o feijão RMD, motivada por uma nota conjunta do Ibrafe– (Instituto Brasileiro do Feijão, Pulses e Colheitas Especiais) e do CBFP (Conselho Brasileiro do Feijão e Pulses). As associações manifestaram “a necessidade de que as sementes oriundas das experiências fossem incineradas para que se eliminássemos, assim, o risco de que essa cultivar chegasse de alguma forma a ser plantada”.
Os motivos alegados sugerem um profundo desconhecimento da tecnologia empregada e um medo exagerado da reação do público. Entre eles, menciona-se uma suposta falta de evidências sobre a segurança alimentar de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) e o lobby negativo de ONGs e associações anti-OGMs. Quanto ao primeiro ponto, já há consenso científico de que alimentos geneticamente modificados são tão seguros para o consumo humano como suas contrapartidas convencionais.
O problema
Informações da Embrapa Arroz e Feijão estimam que a perda de produção causada pelo ataque da mosca branca seria entre 90 mil e 300 mil toneladas. Isso é suficiente para alimentar entre 6 e 15 milhões de pessoas. A única maneira de combater o mosaico dourado, na ausência do feijão resistente ao vírus, é eliminar a mosca branca com inseticidas.
O custo dos inseticidas indicados – no plural – é alto. Não bastam um único inseticida ou uma única aplicação. Para proteger sua produção, o agricultor precisa usar um coquetel de venenos (uma combinação de três ou quatro princípios ativos), e de 15 a 20 ciclos de aplicação. O preço do tratamento gira em torno de R$ 80 a R$ 150 por hectare, por aplicação. A toxicidade dos produtos utilizados também é alta. O impacto ambiental do uso excessivo de inseticidas – por exemplo, na mortalidade de abelhas – causa preocupação. Além do custo financeiro e do dano ambiental, a medida não é totalmente efetiva. O uso prolongado e excessivo de inseticidas acaba selecionando populações de moscas brancas resistentes, capazes de sobreviver às diversas aplicações.
Esse cenário gera um risco que, muitas vezes, o produtor não está disposto a assumir. Assim, temos dois desfechos: ou o produtor paga o preço dos agrotóxicos e garante a produção, ou ele desiste de plantar feijão na primeira safra (no início do ano, nos meses mais quentes), e o substitui por outra lavoura. Ambas as decisões resultam em aumentos expressivos no preço para o consumidor final, seja para cobrir os custos da produção, seja para cobrir a oferta menor. Além disso, se o produtor, mesmo utilizando as diversas aplicações do coquetel de inseticidas, perder parte da produção, essa perda também será computada no preço final.
A solução
Mas existe um feijão resistente ao vírus, que dispensa inseticida contra mosca branca, criado por cientistas brasileiros.
A equipe da Embrapa, liderada por Francisco Aragão e Josias Faria, utilizou uma estratégia chamada RNA interferente (RNAi). Trata-se, basicamente, de imitar um mecanismo de silenciamento de genes que já existe naturalmente. Na natureza, quando um feijão é infectado pelo vírus, ele desenvolve o que chamamos de pequenos RNAs de interferência (siRNA), que nada mais são do que uma resposta imune da planta à infecção.
Infelizmente, o processo natural demora para ocorrer, e a planta acaba desenvolvendo sintomas severos da doença. O mesmo ocorre com humanos em várias doenças infecciosas: o sistema imune responde, mas às vezes a doença é muito agressiva, e o paciente morre. Para muitas doenças infecciosas graves em humanos, temos vacinas. O que Aragão e sua equipe fizeram é uma técnica muito semelhante: uma vacina para o feijão!
O feijão resistente ao mosaico produz esses pequenos RNAs - que impedem que o vírus se replique na planta - de modo mais rápido e eficiente que a planta comum. Isso não somente salva a planta, mas controla a propagação do vírus, impedindo que a doença circule, que contamine mais moscas e, consequentemente, mais lavouras. Em humanos, chamamos isso de “imunidade de rebanho”; quando grande parte da população está vacinada, a doença não consegue mais circular.
Essa é considerada a medida mais efetiva no controle de doenças. Como acontece com todos os OGMs, o feijão foi submetido a todos os testes exigidos pela legislação brasileira, e aprovado pela CTNBio em 2011.
Vários países adotaram a mesma técnica, gerada no Brasil, para criar plantas resistentes a outros tipos de vírus, como o milho (África do Sul), o tomate (Cuba) e a mandioca (EUA). Nosso feijão também foi escolhido como modelo de biossegurança, no projeto internacional “GMO Environmental Risk Assessment Methodologies (GMO-ERA)”, para a aplicação de uma metodologia nova de análise de políticas públicas chamada Formulação do Problema e Avaliação das Opções (em inglês, PFOA).
Debate
A proposta do PFOA é uma metodologia de análise que leve em conta a participação de governo, cientistas e cidadãos. O feijão da Embrapa foi selecionado como modelo no debate porque ainda estava em fase de testes, representava um alimento essencial do hábito brasileiro e envolvia tanto pequenos como grandes produtores.
O grupo de estudos contava com a presença de representantes de supermercados, associações de donas-de-casa, consumidores, ambientalistas, cooperativas agrícolas, produtores, pesquisadores de sociologia rural. O grupo emitiu um parecer favorável ao feijão RMD, assinalando as vantagens para o produtor e consumidor final, com a redução do uso de agroquímicos, e a necessidade de transparência para o consumidor, respeitando o direito de escolha.
Ou seja, o feijão foi avaliado por um conjunto diversificado e representativo de diversos grupos de interesse da população brasileira, e foi aprovado. Até mesmo associações notoriamente contrárias ao uso de alimentos geneticamente modificados, representadas no grupo de estudo, concordam com a aprovação do feijão RMD.
Menos agrotóxicos
Uma pesquisa conduzida pela Associação Brasileira de Cerealistas (ABRACE) mostrou que 76% dos produtores de feijão enfrentam o problema do mosaico dourado, e apenas 38% destes conseguem controlar a praga. Oitenta e seis por cento enxergam a possibilidade de contar com um feijão GM resistente como positiva, e declaram que pretendem adquirir a semente quando estiver disponível no mercado. Entre os comentários nas respostas, destacam-se “os custos estão altos, as vezes inviabiliza o plantio; para poder viabilizar plantio nos meses de janeiro a março; teremos um feijão mais saudável na mesa dos brasileiros”.
Os empacotadores estão mais divididos: 50 % declaram que comprariam o feijão resistente. No entanto, há que se notar que as justificativas dos 50% que estão receosos com a comercialização do feijão baseiam-se no medo da rotulagem, e da reação do consumidor final, motivada pelo forte movimento anti-OGMs do Brasil. Os empacotadores alegam que o consumidor ainda tem dúvidas sobre a segurança de alimentos geneticamente modificados, e temem a pressão do lobby negativo feito pelas ONGs.
A questão da segurança é uma falsa controvérsia: não há motivo para pressupor, em princípio, que alimentos geneticamente modificados sejam menos seguros que os desenvolvidos por técnicas consideradas “naturais” de melhoramento, e cada OGM individual passa por baterias de testes e estudos que representam um nível de exigência inexistente em outros ramos da agricultura. O feijão da Embrapa cumpriu todas essas etapas.
O cientista social Sheldon Krimsky, em seu livro sobre a interface entre ciência e sociedade na questão dos OGMs, intitulado “GMOs Decoded”, aponta, como principais causas da resistência aos OGMs, a percepção de que haveria incertezas e riscos excessivos advindos da transferência de genes entre organismos muito distantes uns dos outros na árvore da vida (vegetais e animais, por exemplo) e questões de natureza econômica – a “venda casada” de agrotóxicos, o apoio à monocultura e a “modelos neoliberais” de produção agrícola, etc.
Abstraindo, por um momento, o mérito dessas objeções (a percepção de risco, por exemplo, é falsa), o fato é que o feijão resistente ao mosaico dourado da Embrapa não se enquadra em nenhuma delas. O RNAi expresso pela planta modificada é o mesmo que já existe na planta comum infectada pelo vírus; não há nenhuma molécula “alienígena” criada pela alteração genética.
Além disso, a variedade não foi desenvolvida por multinacionais “malvadas", não está acoplada à venda de defensivos – muito pelo contrário – e, por fim, o feijão carioca certamente não é um produto visado pelo agronegócio monopolista global. Não restam, portanto, desculpas para manter o feijão RMD fora do mercado nacional.
Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, coordenadora nacional do festival de divulgação científica Pint of Science para o Brasil e presidente do Instituto Questão de Ciência