Quem já não ouviu frases alarmistas do tipo “cozinhar no micro-ondas é perigoso para a saúde e destrói as vitaminas” [1], “o uso contínuo do celular causa câncer no cérebro” [2], [3], “as antenas de transmissão de ondas para celulares causam doenças no sistema imunológico” [4]? Não se alarme! Apesar de inúmeras matérias na mídia a respeito desses assuntos, a grande maioria delas é improcedente. Vejamos os porquês.
Para falarmos da interação da radiação com a matéria, vamos tentar entender um pouco de radiação propriamente dita e, para isso, precisamos rever algumas informações básicas sobre ondas. Abaixo, aparecerão algumas formulinhas, que ajudam a entender o texto, mas não são imprescindíveis. Caso você tenha aversão a equações, pode ignorá-las.
Tipos diferentes de ondas são encontradas na natureza e há muita física interessante presente no nosso dia-a-dia que pode ser descrita na linguagem das ondas , mas, por ora, vamos nos concentrar nas ondas eletromagnéticas, o tipo responsável por fenômenos como a luz que vemos e a comunicação entre rádios e celulares.
Todas elas viajam com a velocidade da luz (c), se estiverem no vácuo, e obedecem a uma equação que diz que essa velocidade é igual à frequência (f) multiplicada por seu comprimento de onda (grandeza tradicionalmente designada pela letra grega lambda, ou “λ”), ou seja, c=λf. Se você pensar numa onda como uma sequência de picos e vales propagando-se (no jargão da física, as ondas que se deslocam no espaço e no tempo, “propagam-se”) , o comprimento é a distância entre dois picos (ou vales) consecutivos; já a frequência é o tempo que transcorre entre o aparecimento de picos (ou vales) consecutivos.
Como o produto de frequência e comprimento, no caso das ondas eletromagnéticas, é um valor constante – a velocidade da luz no vácuo – isso significa que essas duas grandezas são inversamente proporcionais: se uma é alta, a outra é baixa – só isso garante que o valor da multiplicação será sempre o mesmo.
Assim, grandes comprimentos de onda correspondem a baixas frequências, e vice-versa. As infinitas possibilidades para os comprimentos de onda constituem o que é conhecido como espectro eletromagnético, mostrado na figura abaixo. Ondas em diferentes faixas nesse espectro são identificadas por nomes conhecidos: ondas de rádio, micro-ondas, infravermelho, ultravioleta, raios X, raios gama.
Uma característica importante dessas ondas é a energia associada, que é dada por uma constante de valor muito pequeno (a constante de Planck, conhecida pelo símbolo h) multiplicada pela sua frequência, isto é, E=hf. Portanto, as ondas de comprimento de onda minúsculos (e, portanto, alta frequência) são justamente as mais energéticas e com mais chances de interagir com a matéria [5].
As ondas se comportam, mais ou menos, como nós: o que os olhos não veem, o coração não sente! Se caminhamos na rua sem prestar atenção e houver um buraco de um metro de diâmetro na nossa frente, existe uma grande chance de cairmos dentro dele e nos machucarmos. Chamemos isso de uma interação com o buraco. Caso o buraco tenha apenas um centímetro de diâmetro, nem sequer o percebemos, e a probabilidade de haver interação é desprezível. No caso das ondas eletromagnéticas, a propriedade correspondente ao diâmetro do buraco – no que diz respeito à maior probabilidade de interação com a matéria (incluindo o corpo humano) – é a energia, diretamente proporcional à frequência e inversamente proporcional ao comprimento de onda.
Um dado interessante é que as ondas emitidas e recebidas pelos telefones celulares estão na mesma região do espectro eletromagnético que as ondas geradas no forno de micro-ondas, que servem para esquentar os alimentos, de uma forma muito engenhosa: elas são emitidas com uma frequência que faz as moléculas de água se agitarem e assim, aos encontrões, essas moléculas agitam as moléculas vizinhas. Agitação está sempre ligado à calor, algo que nosso corpo também sente. Cabe salientar, no entanto, que as ondas geradas no forno de micro-ondas são ondas estacionárias (não se propagam), ao contrário das ondas que fazem a comunicação entre celulares. As características diferentes de ondas de comprimento de onda semelhantes permitem que uma delas aqueça os alimentos e a outra não cozinhe nossas orelhas, que também contêm água no seu tecido.
Temos agora que fazer uma distinção entre radiação eletromagnética ionizante e não ionizante [6]. Radiações não ionizantes são as radiações cujas energias não são suficientes para ionizar átomos ou moléculas, isto é, separar as cargas negativas das positivas. Essas radiações, de grande comprimento de onda (começando em 100 nanômetros e chegando a vários quilômetros) e baixa frequência, quando muito intensas, podem, por exemplo, causar elevações de temperatura que produzem alterações significativas na matéria – o que chamamos, no dia-a-dia, de queimar, assar, ferver, derreter, evaporar, etc, e que são processos que não se caracterizam como interação da radiação com a matéria, como veremos a seguir.
Já a radiação ionizante é capaz de alterar a estrutura de átomos, fazendo com que alguns elétrons se libertem da atração de certos núcleos atômicos. Mudanças assim podem transformar o modo como as moléculas que existem em nossas células se comportam, dando origem a problemas graves de saúde, como o câncer. Essas radiações têm comprimento de onda muito baixo, de frações abaixo dos nanômetros. Começam na faixa ultravioleta do espectro e vão até os raios gama.
A radiação nuclear [7] é uma forma de radiação ionizante, que tem origem no núcleo de elementos químicos que não são estáveis e é emitida principalmente de três formas: por meio de partículas alfa (são o núcleo do átomo de hélio, constituído de dois prótons e dois nêutrons), beta (elétrons e suas antipartículas, conhecidas como pósitrons) e gama (associadas justamente à última parte do espectro eletromagnético) [8]. Existe um postulado, conhecido por Postulado de de Broglie [5] (isso mesmo, com dois “de” ), comprovado experimentalmente, que diz que essas partículas também têm um comportamento ondulatório, e portanto também podem ser descritas em termos de comprimento de onda.
Depois desse longo preâmbulo, se você ainda estiver atento, podemos tratar da interação da radiação com a matéria. Para isso, é preciso deixar claro que os fenômenos mencionados acima, ocasionados por radiação não ionizante (aquecimento, mudança da fase sólida para a líquida, da líquida para a gasosa, vibração molecular) não se configuram como interação no sentido estrito da física, porque não desestruturam a combinação atômica, ou seja, não ionizam as estruturas atômicas e moleculares.
São apenas cinco as principais possibilidades de interação associadas às ondas eletromagnéticas ionizantes, às partículas alfa, beta e gama. Cabe enfatizar que as interações se dão, então, apenas por meio de processos específicos. São eles: efeito fotoelétrico (elétrons são arrancados de um certo material quando atingidos por ondas de frequências específicas), efeito Compton (um processo de colisão entre elétrons e partículas de luz, os fótons), produção de pares (quando uma partícula energética se dissocia produzindo um par partícula-antipartícula), aniquilação de pares (quando um par partícula-antipartícula se une originando uma partícula gama, por exemplo) e Bremsstrahlung (ocorre quando uma carga elétrica muito energética e acelerada encontra com um alvo).
O entendimento detalhado desses processos depende de conhecimentos de física quântica [5] e de física nuclear [7], [8] e, portanto, requer uma discussão mais elaborada tecnicamente. No entanto, o exposto acima devem bastar para se perceber que a interação da radiação com a matéria depende de um enorme conjunto de condições para ocorrer, nenhuma delas presente nas hipóteses levantadas no início deste texto. Veja uma outra abordagem sobre esse mesmo tema em [9].
Nem todas as ondas eletromagnéticas interagem de modo significativo conosco, e as verdadeiramente perigosas são as ionizantes. Nem tudo que sofre radiação fica radiativo: você nunca vai gerar radiação ultravioleta depois de um banho de sol, mas se tiver que fazer um tratamento de radioterapia para eliminar um problema na tireoide, terá que ficar em isolamento para não contaminar pessoas próximas.
Na dúvida, não se alarme e nem espalhe boatos na mídia! Consulte uma física ou, se não achar, um físico!
Débora Peres Menezes é Professora Titular do Departamento de Física da Universidade Federal de Santa Catarina, atual representante brasileira na Comissão de Física Nuclear (C12) da International Union of Pure and Applied Physics (IUPAP), membro do Comitê Gestor do INCT – Física Nuclear e Aplicações e Presidente do Grupo de Trabalho sobre Questões de Gênero da Sociedade Brasileira de Física. Foi Pró-Reitora de Pesquisa e Extensão da UFSC de 2008 a 2012
NOTAS
[1] http://www.ecolnews.com.br/microondas.htm, acessada em 28/02/2019.
[2] https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/celular-pode-causar-cancer-no-cerebro-diz-oms-3wdm1s87vgekmelnvgl0ce6a6/, , acessada em 28/02/2019.
[3] https://www.tecmundo.com.br/dispositivos-moveis/129981-uso-celular-mesmo-causar-cancer-cerebro.htm, acessada em 28/02/2019.
[4] https://www.hojeemdia.com.br/opini%C3%A3o/colunas/k%C3%AAnio-pereira-1.332989/ningu%C3%A9m-compra-im%C3%B3vel-pr%C3%B3ximo-a-antena-de-telefonia-1.497059, acessada em 28/02/2019.
[5] EISBERG, R. M. e RESNICK, R. - Física Quântica. Editora Campus. Rio de Janeiro. 1979.
[6] Emico Okuno, “Efeitos biológicos das radiações ionizantes”, disponível em
http://www.scielo.br/pdf/ea/v27n77/v27n77a14.pdf, acessada em 01/03/2019.
[7] D.P. Menezes - Introdução à Física Nuclear e de Partículas Elementares, EDUFSC, 2002.
[8] K.C. Chung. - Introdução à Física Nuclear ,EdUERJ, 2001.
[9] Marcelo Yamashita – Revista Questão de Ciência, http://revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2018/12/12/seu-celular-nao-vai-fazer-explodir-o-posto-de-gasolina , acessada em 01/03/2019.