Em novembro de 2018, uma mulher na China deu a luz à duas meninas gêmeas, Lulu e Nana, nomes fictícios, provavelmente. O processo de formação dos embriões e a implantação no útero materno foi o de fertilização in vitro (FIV). Até aqui, nenhuma surpresa. Milhões de crianças já foram concebidas dessa forma desde 1978, ano em que a FIV foi realizada pela primeira vez na Inglaterra. O inventor dessa técnica, o britânico Robert G. Edwards, foi agraciado com Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 2010.
A novidade no caso de Lulu e Nana é que, de acordo com o cientista chinês He Jiankui, o genoma dos embriões foi editado: ou seja, foram introduzidas, de forma artificial, mutações no gene CCR5 dos embriões, na fase em que eles eram formados por apenas uma única célula.
O CCR5 codifica uma proteína presente na membrana dos glóbulos brancos, uma célula do sistema imunológico. Esse gene é especialmente importante no contexto da infecção do ser humano pelo vírus causador da aids, o HIV. Isso porque, para penetrar a célula, o vírus deve, primeiro, reconhecer e ligar-se a essa proteína.
Seres humanos são diploides: nossos cromossomos vêm em pares, e cada membro do par contém uma cópia de cada gene. Cerca de 10% da população europeia carrega uma variação genética em que um dos cromossomos contém uma versão parcialmente deletada do gene CCR5, enquanto o outro membro do par contém o alelo normal, sem a deleção. Já em 1% dos europeus, ambos os cromossomos contêm a deleção. Na China, esse variante genético não é encontrado. A deleção parcial do CCR5 faz com que a proteína não seja produzida, impedindo, ou dificultando, a entrada do vírus na célula. Isso faz com que o portador da deleção em CCR5 seja imune à infecção pelo HIV.
Para o seu experimento, Dr. He recrutou nove casais, nos quais o parceiro masculino era HIV+. Espermatozoides foram coletados e utilizados para fecundar os embriões. Após a fecundação, os embriões, ainda em estágio unicelular, foram manipulados geneticamente, por meio da técnica conhecida como CRISPR.
A cirurgia genética, como o Dr. He gosta de referir-se a ela, alterou o gene CCR5 nos cromossomos dos embriões. Os embriões foram, em seguida, implantados nos úteros das mulheres participantes do experimento. Dr. He alega que o experimento funcionou para, pelo menos, um casal, cujas gêmeas, Lulu e Nana, nasceram saudáveis. Ainda segundo ele, os genomas das recém-nascidas foram sequenciados e apenas o gene CCR5 foi alterado.
Em agosto deste ano, Dr. He participou de uma conferência de engenharia genômica em Nova York, onde diversos participantes, inclusive os inventores da técnica CRISPR, estavam presentes. Ali, ele descreveu o experimento de introdução da mutação no gene CCR5 em embriões humanos, mas não revelou que estes embriões haviam sido implantados em mulheres, e que uma delas carregava gêmeas geneticamente modificadas.
O experimento e seu resultado foi divulgado na imprensa e em vídeos, mas não foi submetido à publicação em revista científica, de forma que não passou pela revisão por pares, que seria o procedimento normal em ciência. Do ponto de vista científico, é possível que o Dr. He esteja falando a verdade?
Sim, a tecnologia para esse tipo de manipulação genética já existe. CRISPR, inclusive, não é a única forma de edição de genes em células humanas, mas é atualmente a mais popular e a mais acessível. Então, qual o problema com o feito realizado na China? De fato, há pelo menos duas questões a serem consideradas, uma de ordem ética e a outra, sobre a segurança da técnica.
A questão ética
O sistema CRISPR, que foi utilizado na edição do gene CCR5, é relativamente novo. O primeiro relato de utilização do CRISPR para a transferência de DNA de um ser a outro ocorreu apenas em 2011! Apesar de sua eficiência e especificidade, já foram reportados casos em que outros genes, além dos alvos pretendidos, foram afetados pela técnica. Atualmente, não temos certeza sobre as consequências que a edição genética possa ter sobre as crianças, pois outros genes podem ter sido afetados, de forma imprevisível.
É verdade que bactérias, plantas e animais já foram editados com a mesma técnica, quase sempre com sucesso. Mas, em se tratando de vidas humanas, temos que tomar um cuidado extra. E há um agravante: as mutações obtidas no gene CCR5 dos embriões não são exatamente a deleção naturalmente encontrada em populações europeias. A mutação original é uma deleção de 32 bases na sequência de DNA do gene.
Deleções (ou inserções) de bases que não sejam múltiplos de três, por exemplo, 3, 6, 9, 30, 33 …, resultam na alteração do quadro de leitura do gene e, geralmente, na inativação da proteína cuja “receita” está codificada no gene. Esse seria o caso da deleção de 32 bases, que causa a quebra do quadro de leitura de CCR5 e, portanto, impede a produção de proteína. É por isso que os portadores homozigotos dessa deleção (quando ambos os cromossomos carregam a versão deletada do gene) são resistentes ao vírus HIV, enquanto que os indivíduos heterozigotos, que carregam em um cromossomo a versão deletada de CCR5 e, no outro, cromossomo, a versão normal, são apenas parcialmente resistentes.
Nem Lulu nem Nana carregam a deleção de 32 bases em CCR5. Aparentemente, um dos cromossomos de Nana contém uma deleção de quatro bases e, no outro, ocorreu a inserção de uma base. Já que ambas as alterações levam à quebra do quadro de leitura, Nana provavelmente não produz a proteína CCR5, e deve ser imune à infecção por HIV.
Por outro lado, Lulu apresenta, em ambos os cromossomos, uma deleção de 15 bases em CCR5. Sendo 15 um múltiplo de três, não há quebra do quadro de leitura. A proteína codificada por essa versão de CCR5 deve conter cinco aminoácidos a menos, e é impossível prever se ela vai funcionar ou não. Portanto, não sabemos se Lulu tornou-se imune à infecção por HIV, se continua igualmente suscetível, ou se ficou até mais sensível à infecção viral.
Apesar do Dr. He haver conseguido introduzir mutações no gene desejado, essas não foram exatamente iguais a deleção de 32 bases originalmente almejada. E, pelo menos no caso da Lulu, as consequências da mutação introduzida são imponderáveis.
Dada a novidade da técnica CRISPR e, como observado no experimento do Dr. He, a falta de precisão na manipulação genética, há uma moratória sobre a utilização do CRISPR para a edição de genes humanos desde 2015. Essa moratória, sem efeito legal, foi acordada por cientistas da área, com o objetivo de dar mais tempo para aprimorar os protocolos de experimentação e estudar as possíveis consequências da edição de genes em embriões humanos.
Pesando os riscos
Novas tecnologias são descobertas e inventadas constantemente na área da engenharia genética, e de forma acelerada nas duas últimas décadas. Desde os anos 1970, sabemos como manipular o DNA de seres vivos. A replicação e clonagem de DNA exógeno (de espécies diferentes da do hospedeiro) se tornou algo simples e corriqueiro em laboratórios do mundo todo. Quando Paul Berg (Nobel de 1980) descobriu como introduzir pedaços de DNA de um vírus humano em uma bactéria, diversas questões de segurança e ética surgiram. Estas foram sendo debatidas e resolvidas pela comunidade científica. Hoje, temos total segurança sobre os procedimentos adotados nos laboratórios.
Em 1975, foi instituída uma moratória sobre a clonagem de genes humanos em bactérias. O motivo era essencialmente o mesmo da moratória atual sobre o CRISPR: não se sabia quais poderiam ser as consequências da clonagem de genes de uma espécie em outra. A clonagem de um gene viral de humanos na bactéria Escherichia coli e sua replicação em centenas de vezes poderiam teria um impacto terrível. Imagine se o clone escapasse do laboratório, se propagasse na natureza e infectasse animais e pessoas, causando doenças terríveis!
A ignorância sobre as consequências da clonagem causava receios inclusive nos cientistas da área, e com razão. Portanto, foi decretada a interrupção de todos os experimentos de clonagem de genes humanos até que se tivesse uma noção melhor sobre as consequências da Engenharia Genética. Para o alívio da comunidade dos cientistas e de todos nós, em pouco tempo se chegou à conclusão de que as bactérias de laboratório que carregam os clones não sobrevivem na natureza, de forma que não havia perigos imediatos. Nem a longo prazo: passaram-se já mais de 40 anos e nenhum acidente ou catástrofe biológica aconteceu. Essas ficaram restritas a alguns livros e filmes de ficção científica.
Porém, Dr. He desrespeitou a moratória sobre o uso de CRISPR em seres humanos. Na época da moratória sobre a clonagem de genes nos anos 70, havia poucos laboratórios que atuavam na área. Além disso, quase todos estavam em países do hemisfério ocidental, sendo, portanto, de fácil fiscalização. Já a moratória sobre o CRISPR em 2015 tem de ser aplicada em centenas ou milhares de laboratórios em todos os cinco continentes.
Devemos também lembrar que, nos anos 70, a comunidade científica, sendo basicamente ocidental, era bastante homogênea em relação aos seus valores éticos. O mesmo não se pode dizer sobre a comunidade científica atual, que se encontra espalhada pelo mundo, e por vezes em povos com valores morais distintos dos nossos. Segundo o próprio Dr. He explicou, a aids é muito estigmatizada na China, portadores do HIV são discriminados de diversas formas: pelos empregadores, pela sociedade e até pela comunidade médica. Sob a ótica do Dr. He, a prevenção da aids em recém-nascidos suplanta o risco da cirurgia genética. Ele também afirma que algum cientista, em algum lugar do mundo, um dia realizaria o mesmo experimento: ele foi apenas o primeiro a fazê-lo.
Há também a questão ética da utilização da edição de genes em embriões não somente para curar ou evitar doenças, mas para o melhoramento genético dos descendentes. Por exemplo, genes poderão ser manipulados com o intuito de aumentar o QI, tornar a aparência física mais compatível com o que é admirado na sociedade – em tese, pode-se manipular qualquer característica humana para a qual se conheça uma origem genética precisa. O próprio Dr. He aborda este tema em um de seus vídeos. Ele afirma que é contrário à cirurgia genética para fins que não o de curar ou prevenir doenças.
Pessoalmente, acho que a eugenia molecular é inevitável: acontecerá mais cedo ou mais tarde. Mas os cientistas devem agir com muita cautela e não se apressar em produzir seres humanos com técnicas ainda não completamente seguras. Estaremos apenas a um passo do “admirável mundo novo”?
Beny Spira é biólogo, professor livre-docente do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo