Em 17 de dezembro de 2024 foi publicado o artigo “Evaluation of post-COVID mortality risk in cases classified as severe acute respiratory syndrome in Brazil: a longitudinal study for medium and long term” no periódico científico Frontiers in Medicine. As autoras tentaram determinar como fatores como vacinação, idade e condições de saúde influenciam as chances de sobrevivência após uma infecção grave de COVID-19.
O trabalho foi rapidamente “capturado” por redes bolsonaristas, que trataram de utilizar algumas das conclusões indicadas pelas autoras, vinculadas à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), para impulsionar uma falsa a narrativa de que as vacinas contra COVID-19 seriam mais perigosas do que a própria doença. A comoção nas redes sociais chegou a tal ponto que a própria Fiocruz se viu constrangida a publicar nota oficial, reafirmando a segurança e eficácia da vacinação.
Mas, afinal, o que o estudo realmente analisou, e que conclusões se podem tirar dele? As autoras usaram dados de pacientes brasileiros diagnosticados com COVID-19 grave, observando quem sobreviveu e quem não sobreviveu ao longo do tempo. Os dados utilizados foram extraídos do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica (SIVEP). Além disso, as autoras dividiram o estudo em dois períodos: médio prazo (de três meses a um ano após a infecção) e longo prazo (mais de um ano depois). Como em qualquer pesquisa, há aspectos positivos a destacar e pontos que poderiam ser melhorados. Aqui, faremos uma análise crítica das principais escolhas feitas pelas autoras.
Solicitei a uma das autoras os dados utilizados nas análises. Embora os dados possam ser obtidos diretamente do open Data SUS, muitas vezes o banco de dados utilizado na análise final pode sofrer alguns ajustes, como adição de colunas que agregam diversas informações para facilitar as análises. O pedido foi atendido e tenho em mãos o que acredito ser a versão final dos bancos utilizados nas análises, e que serviu de base para a análise crítica apresentada a seguir.
Vacinas
Um ponto intrigante do artigo foi a relação entre a vacinação e o risco de vida. Segundo as autoras, no médio prazo, os vacinados com qualquer vacina contra COVID-19 tiveram menor risco de vida, mas no longo prazo, os dados mostraram um risco maior para quem tomou a vacina, considerando também o número de doses. E esse ponto foi o que mais atiçou a comunidade que insiste na conspiração de que vacinas não são seguras. É exatamente nesse ponto que está a principal crítica ao artigo. Embora as autoras tenham mencionado muitas das limitações do estudo, alguns pontos ficaram de fora do artigo final.
Dentre as limitações mencionadas pelas autoras estão:
Foco em casos graves: O estudo analisou exclusivamente os casos mais graves de COVID-19, classificados como Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), o que limita a aplicabilidade dos resultados para a população geral. Como o estudo inclui apenas pacientes severamente afetados, há um viés de seleção, especialmente porque muitos estudos demonstraram que a vacinação reduz significativamente a gravidade da doença. Os dados analisados refletem apenas os casos em que a vacinação não foi suficiente para prevenir desfechos graves, podendo enviesar as conclusões.
Perda de dados: Alguns campos do sistema de notificação (SIVEP) não são obrigatórios e frequentemente aparecem como “ignorados” ou estão em branco. Isso resulta em uma perda significativa de informações, prejudicando a avaliação de algumas variáveis.
Acesso limitado a dados: Não foi possível incluir informações detalhadas sobre o tipo de vacina administrada, intervalos entre doses, ou intervalo entre os sintomas iniciais de COVID-19 e a vacinação. Essas lacunas dificultam uma análise mais precisa dos impactos da vacinação.
Falta de distinção entre causas de morte: mortes que ocorreram pelo menos três meses após o início dos sintomas foram incluídas, independentemente da causa. Isso pode distorcer a avaliação do risco de mortalidade associada à COVID-19 e à vacinação.
Carência de estudos comparativos: Há poucos estudos com amostras do Brasil pós-COVID, especialmente no longo prazo, o que dificulta a validação dos resultados encontrados e limita a generalização dos resultados.
Como já mencionado, a análise foi dividida em duas seções, uma de médio prazo (de três meses a um ano após a infecção) e longo prazo (mais de um ano depois). No médio prazo, as autoras relatam que a sobrevivência foi pior para aqueles que não tomaram a vacina. Além disso, observou-se uma separação clara entre não vacinados e aqueles que tomaram duas ou três doses, reforçando que a vacinação pareceu oferecer maior proteção durante o período. Até aqui, nada para causar comoção.
O problema foi com a interpretação do longo prazo. Alguns resultados são reportados de forma a sugerir relação de causa e efeito entre vacinação e morte, como o de que o risco de vida foi de 69% a 94% maior para pessoas vacinadas, em comparação às não vacinadas. Mais especificamente, quem tomou uma dose da vacina teve risco de vida de 2,02 a 2,49 vezes maior em relação aos não vacinados. Quem tomou duas doses encarou um risco de 92% a 97% maior.
Aqui vale destacar mais algumas limitações do estudo. O período de longo prazo analisado inicialmente incluiu 1.523 observações, das quais apenas 1.406 continham informações sobre o status de vacinação contra a COVID-19. Essa limitação reduz o tamanho da amostra analisável e pode comprometer a robustez dos resultados, especialmente ao considerar subgrupos ou ao tentar generalizar os achados. Além disso, as autoras não informaram como os dados ausentes foram tratados. O que podemos concluir é que não entraram na análise introduzindo mais um viés, caso os dados faltantes não estejam distribuídos de forma aleatória, impactando a validade das conclusões sobre a relação entre vacinação e mortalidade no longo prazo.
E temos também o viés de tempo de imortalidade, que ocorre quando um estudo observa apenas os pacientes que sobreviveram a um determinado período após a exposição ou tratamento, excluindo os que morreram antes desse intervalo. Isso pode levar a uma superestimação da taxa de sobrevivência ou da eficácia de uma intervenção, pois os indivíduos que não sobreviveram ao período anterior ao início da análise não são considerados, distorcendo os resultados. Esse viés é especialmente importante em estudos longitudinais, onde a consideração dos diferentes momentos de falecimento pode influenciar a interpretação dos efeitos de tratamentos ou condições, como no caso da mortalidade pós-COVID-19 e/ou vacinação.
Revisão
Dois pontos chamam a atenção quando artigos com limitações desse tipo são publicados.
O processo de revisão por pares, que em tese deveria garantir que apenas estudos considerados relevantes e de boa qualidade por especialistas sejam publicados, parece cada vez mais reduzido a mera formalidade ou jogo de cena. Uma revisão adequada do artigo poderia, além de indicar maneiras de contornar as limitações mencionadas pelas autoras, enfatizar um resultado que ficou em segundo plano, por conta da polêmica em torno das vacinas: a mortalidade pós-COVID no Brasil parece ser mais alta nas regiões Norte e Nordeste, onde os indicadores sociais, como educação, condições de moradia e distribuição de renda, são mais baixos.
Essas desigualdades refletem o acesso desigual aos serviços de saúde nessas áreas. Além disso, sequelas persistentes, como comprometimento funcional em sobreviventes de casos graves, têm sido associadas a um aumento da mortalidade a longo prazo. Esses fatores ressaltam a complexidade da mortalidade pós-COVID, destacando a interação entre condições de saúde preexistentes e as desigualdades sociais no país. Tudo isso poderia ter sido melhor abordado no estudo, caso os revisores e editores entendessem melhor o sistema de dados abertos no Brasil, em que não é nada trivial conseguir informações, como as próprias autoras relatam.
Outro ponto que ainda causa espanto é o despreparo para comunicação institucional. A Fiocruz divulgou nota que, embora tenha sido vista como resposta à repercussão negativa do estudo, nem sequer o menciona, ou as limitações encontradas.
Luiz Gustavo de Almeida é Coordenador de Educação Científica do Instituto Questão de Ciência