É curioso notar como, em situações de urgência, surgem propostas que prometem soluções rápidas, seguras e “naturais”. Isso não é novidade: já vimos coisas desse tipo em epidemias de dengue, na COVID-19 ou no tratamento do câncer. De modo ainda mais preocupante, isso também tem encontrado espaço em emergências obstétricas, a exemplo do “estudo” intitulado “Emprego da Acupuntura em casos de emergências hipertensivas na gestação”. Baseado em partes de um trabalho de conclusão de curso de pós-graduação em Acupuntura do CETN (Centro de Estudos de Terapias Naturais), o suposto estudo ilustra bem o problema: trata-se de uma proposta experimental que não gera resultados úteis, podendo atrasar o tratamento convencional e colocar em risco a vida das gestantes.
O “estudo” em questão relata casos de gestantes com hipertensão, supostamente classificadas como “emergências hipertensivas”, submetidas a acupuntura auricular e sangria no ápice da orelha, o objetivo sendo a redução da pressão arterial. Ainda que, em determinado ponto, o texto mencione a possibilidade de tratamento medicamentoso após uma “estabilização” inicial, fica evidente que as intervenções alternativas foram priorizadas ou colocadas como opção inicial, em vez do manejo efetivo e urgente do quadro hipertensivo. Isso por si só já é alarmante: um quadro de emergência obstétrica não pode ser refém de terapias sem demonstração de eficácia e segurança.
Como de costume em “estudos” desse tipo, percebe-se claramente a ausência de uma metodologia rigorosa: não há grupo controle (ou, se há, não é apresentado adequadamente), não se sabe o número exato de pacientes analisadas (sequer se menciona o número de participantes de cada subgrupo), não se informa se houve randomização (provavelmente inexistente, na inexistência de um grupo controle), nem tampouco se descreve qualquer tipo de critério diagnóstico seguro para classificar a pressão arterial como “emergência hipertensiva”. Pelo contrário, o ponto de corte para considerar a inclusão no estudo foi de pressão acima de 120×80 mmHg, valor que, convenhamos, não configura quadro de urgência ou emergência em quaisquer diretrizes de cardiologia ou obstetrícia. É plausível que a maioria dessas pacientes, portanto, não estivesse nem sequer em condições de risco iminente, o que põe em xeque qualquer suposta eficácia da prática.
A pré-eclâmpsia
A pré-eclâmpsia se caracteriza, em linhas gerais, por um quadro de pressão arterial elevada (uma pressão sistólica superior a 140 e/ou uma pressão diastólica superior a90mmHg) após a 20ª semana de gestação, associada a níveis altos de proteína na urina e/ou disfunção de órgãos-alvo. Não estamos falando de uma condição derivada do “estresse” ou de algo meramente emocional, mas sim de um problema complexo, com base em fatores genéticos, imunológicos e vasculares. Pacientes com pré-eclâmpsia podem evoluir para eclâmpsia, um quadro que envolve convulsões e risco de coma, ou desenvolver complicações potencialmente fatais, como a síndrome HELLP (Hemólise, Elevação das enzimas hepáticas e Baixa contagem de plaquetas), insuficiência renal, descolamento prematuro de placenta, parto prematuro e até morte materna e/ou fetal.
Este “protocolo alternativo” chama a atenção justamente por ser uma alegoria de um problema maior: adisseminação de práticas pseudocientíficas na saúde. Ele exemplifica perfeitamente a criação de uma narrativa sedutora para justificar tratamentos sem fundamento. O texto original evoca conceitos da Medicina Tradicional Chinesa para explicar a pré-eclâmpsia, como “vento do fígado subindo”, “deficiência do Yin” ou “umidade-calor”, sem, em momento algum, fornecer evidências sobre isso. Ao tentar “encaixar” um quadro obstétrico gravíssimo, como a pré-eclâmpsia, em padrões meramente tradicionais e não validados na esfera médico-científica, tentam-se legitimar práticas perigosas, que podem atrasar ou substituir tratamentos que teriam impacto real na redução de complicações e de mortalidade materna e fetal.
A pressa que salva vidas
Em emergências obstétricas, cada minuto conta. A pré-eclâmpsia pode se agravar rapidamente, levando a convulsões, edema pulmonar e outras complicações graves. Se a paciente é levada a acreditar que medidas “naturais” devem vir primeiro, corre o risco de perder tempo valioso antes de receber medicação comprovadamente eficaz. A sensação de “bem-estar” momentâneo, sem acompanhamento e sem controle adequado dos sinais vitais, pode mascarar a progressão para estágios letais.
Basta consultar as principais diretrizes de grandes entidades - como o Colégio Americano de Obstetrícia e Ginecologia (ACOG), a Sociedade Internacional para o Estudo da Hipertensão na Gravidez (ISSHP), a Rede Brasileira de Estudos da Hipertensão na Gravidez (RBEHG) ou mesmo a Organização Mundial da Saúde (OMS) - para constatarmos que nenhuma recomenda um tratamento “integrativo” como abordagem inicial para a crise, e muito menos para a emergência hipertensiva. Pelo contrário: todas indicam intervenção clínica imediata, não apenas com o uso de anti-hipertensivos seguros para a gestação (como nifedipina, hidralazina e, onde disponível, labetalol), mas com o uso de sulfato de magnésio, que é essencial para a prevenção das crises convulsivas, avaliação criteriosa do bem-estar fetal, internação hospitalar, monitoramento intensivo nos casos mais graves e, a depender da gravidade e da idade gestacional, interrupção da gravidez.
É compreensível que as gestantes possam temer medicamentos, ainda mais se estiverem desinformadas ou inseguras sobre efeitos colaterais ou riscos para o feto. Infelizmente, essa insegurança abre brecha para promessas de técnicas “inofensivas” ou “livres de química”. O resultado é uma confusão perigosa, pois o que está em jogo é a saúde de mãe e bebê. Quando se trata de pré-eclâmpsia, um suposto alívio temporário não garante que a doença não continue avançando de maneira silenciosa.
Soma-se a isso nossa dura realidade: a hipertensão é a principal causa de morte materna direta no Brasil (e a primeira como causa isolada), conforme podemos observar na figura abaixo. Precisamos de mais eficiência no pré-natal e de respostas ágeis quando os sinais de pré-eclâmpsia aparecem, não de protocolos duvidosos que atrasam ainda mais o encaminhamento correto.
Bingo pseudocientífico
O trabalho analisado funciona como um exemplo representativo da lógica pseudocientífica. Abaixo mostramos alguns dos elementos que costumam ser comuns a esse tipo de estudo enviesado:
Ausência de critérios de inclusão explícitos e uso de nomenclatura ultrapassada: mulheres com pressão acima de 120×80 mmHg foram rotuladas como “emergência hipertensiva”. É um equívoco grosseiro, pois não respeita padrões internacionais. Além disso, o artigo utiliza nomenclatura que já está em desuso, como DHEG (doença hipertensiva específica da gravidez).
Conclusões precipitadas: com base em observações pontuais, a autora conclui que “em 61,5% dos casos, a acupuntura obteve sucesso na redução dos níveis pressóricos”. Sucesso baseado em que parâmetros? Qual a duração desse suposto efeito?
Ausência de grupo controle: não é feita uma comparação com gestantes que simplesmente repousaram e depois tiveram a pressão aferida (o que não seria indicado na emergência, mas é recomendado na crise hipertensiva, após 15 minutos, uma vez que com o repouso, nesta última, efetivamente a pressão pode baixar); ou gestantes que receberam o tratamento padrão com medicamentos adequados; ou mesmo gestantes que receberam outra intervenção inócua (placebo). Sem controle, não se pode falar em eficácia. E quando não existe evidência de eficácia, não existe efetividade terapêutica, conforme já comentamos.
Confusão entre correlação e causalidade: dada a ausência de metodologia confiável, o estudo não consegue provar que foi a acupuntura que reduziu a pressão – nem mesmo, que ela estava perigosamente alta no início do estudo.
Omissão de dados críticos: não se relata se houve perda de seguimento (se as pacientes retornaram ao pronto-socorro com piora do quadro), não há menção de desfechos maternos ou neonatais relevantes (por exemplo, mortalidade materna, mortalidade neonatal, incidência de eclâmpsia, danos neurológicos, etc.).
Afirmações vagas, grandiosas (e perigosas): a mensagem final de que a auriculoterapia “pode ser utilizada na redução dos níveis pressóricos em gestantes que procuram serviços de emergência” afirma muito mais do que os dados apresentados permitem concluir. E pior, leitoras do artigo podem entender que é aceitável recusar ou adiar o manejo obstétrico preconizado pelas diretrizes médicas, acreditando em uma falsa solução.
O discurso do “complementar”: os defensores de terapias alternativas argumentam frequentemente que não querem substituir as práticas baseadas em evidência, mas apenas complementá-las. Em um mundo ideal, essa justificativa até poderia soar razoável. Todavia, na prática, vemos que tais intervenções são frequentemente apresentadas como suficientes ou como “primeira linha” (como, aliás, dá a entender o referido estudo). Além disso, tempo e dinheiro são ambos recursos escassos. Desta forma, o “complementar” acaba se tornando uma cilada que retira o foco do que realmente precisa ser feito – e, neste caso, feito rapidamente.
Causas “emocionais” para questões orgânicas multifatoriais: boa parte das “intervenções alternativas” se sustenta na noção equivocada de que a pressão alta (especialmente na gravidez) resulta exclusivamente de estresse ou alterações emocionais. Não negamos que fatores psicológicos podem afetar momentaneamente a pressão arterial, mas a fisiopatologia da pré-eclâmpsia não se explica por “excesso de nervoso” ou ansiedade. Reduzir a complexidade deste tema a uma questão puramente “psicoemocional” gera a perigosa sensação de que basta relaxar (com lavanda, chás, escalda-pés ou auriculoterapia) para controlar a pressão. Pacientes com labilidade pressórica (a pressão que “sobe com estresse”) ou com hipertensão do jaleco branco (a pressão que só sobe em consulta médica) têm maior risco de desenvolver pré-eclâmpsia. Isso por si só é já um sinal de alerta, obrigando ao encaminhamento médico.
Problema sistêmico
Infelizmente, o texto mencionado não é apenas um devaneio isolado; ele escancara aquilo que acontece frequentemente quando pessoas em contexto de vulnerabilidade (como as gestantes) encontram, no sistema de saúde ou em redes sociais, profissionais que oferecem “soluções rápidas e naturais” para problemas graves. São soluções amparadas em crenças sem lastro científico e que podem adiar o cuidado efetivo.
Não se trata de demonizar qualquer prática que não seja estritamente farmacológica. O problema aqui é o uso de terapias não validadas como substitutas ou barreiras ao tratamento convencional, especialmente quando se corre contra o relógio. A ideia de que “não faz mal tentar” ignora o risco de adiar intervenções efetivas.
Há também uma dimensão social. Um estudo mal fundamentado, mas com uma roupagem de “pesquisa acadêmica”, pode ser divulgado em palestras, redes sociais ou meios de comunicação menos criteriosos. Muitas pessoas acreditam piamente que tudo que descobrem através de pesquisa no Google e páginas online é verdade. Pacientes que leem sobre o tema na internet podem questionar: “Por que não tentar primeiro a acupuntura, já que um artigo disse que dá certo e é menos invasivo?” Sem contar os casos nos quais autoridades e conselhos de classe acabam legitimando tais práticas devido apenas à sua popularidade.
O papel dos profissionais que lutam por uma medicina mais científica é fiscalizar, denunciar e esclarecer a população a respeito dos riscos envolvidos em práticas como esta. Não há espaço, em situações emergenciais, para “terapias experimentais” que não cumpram os critérios básicos de plausibilidade e critérios éticos de pesquisa clínica.
Considerações finais
Ao propor (e divulgar) a acupuntura auricular como intervenção prioritária em “emergências hipertensivas” da gestação, o “estudo” arrisca confundir profissionais e pacientes, já que a mera roupagem de “pesquisa acadêmica” pode passar uma falsa impressão de legitimidade. Embora a iniciativa se apresente como “experimental”, ela não cumpre os critérios científicos necessários para tanto. A falta de um delineamento metodológico adequado, a ausência de grupo controle e a definição incorreta dos critérios de inclusão comprometem seriamente a validade dos resultados apresentados.
Mais alarmante ainda é o fato de que, sob o rótulo de um protocolo experimental, as gestantes foram submetidas a uma intervenção que atrasou a administração de tratamentos convencionais comprovadamente eficazes, o que configura flagrante violação ética. Não conseguimos encontrar o referido trabalho publicado em nenhuma revista nacional ou internacional, o que de fato nos parece impossível, dados tantos problemas graves e vieses. Mas presumimos que tenha sido aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), o que, caso se comprove, é inaceitável. Como autorizar um projeto de pesquisa para tratar emergências hipertensivas com auriculoterapia? Como permitir a execução de uma pesquisa com tantas e tamanhas falhas metodológicas?
A verdadeira fronteira na saúde não é entre medicina “convencional” e “alternativa”, mas entre o que é fundamentado em evidências e o que não é. Em emergências, não podemos renunciar ao que realmente funciona. Se há uma lição deste episódio, é o alerta que traz: a saúde materna não comporta ilusões. Quando lidamos com pré-eclâmpsia e eclâmpsia, cada minuto de atraso no cuidado adequado pode custar uma vida – ou duas.
André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros "Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades" e "50 Casos Clínicos em Farmacologia" (Sanar), "Porque sim não é resposta!" (EdUFABC), "Tarot Cético: Cartomancia Racional" (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?...e o que não é" (Editora Contexto).
Melania Amorim é Médica Ginecologista e Obstetra, Professora Associada de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Campina Grande e Docente do Programa de Doutorado em Saúde Integral do Medicina Integral Prof. Fernando Figueira.