Depois de mais de 50 anos, Erich von Däniken ainda insiste em ver um motoqueiro espacial no relevo maia de Palenque. Ele reafirmou isso durante sua apresentação à plateia de brasileiros durante o Brazil UFO Summit realizado no auditório do Anhembi em 4 de dezembro, e à qual este repórter esteve presente – como membro da audiência pagante (R$ 260 pelo assento, fora a taxa de conveniência pelo ingresso online).
Em 1968, no livro que lançou sua carreira de celebridade internacional, Eram os Deuses Astronautas?, o autor suíço afirmava que uma tampa de túmulo, esculpida em alto-relevo e descoberta em Palenque, no México, mostra uma divindade pilotando um veículo espacial.
“Hoje em dia, qualquer criança identificaria o veículo como um foguete”, escreveu ele no texto de 68. “O ser agachado manipula diversos controles indefiníveis e mantém o calcanhar do pé esquerdo num pedal (...) será que tudo que ligamos a viagens espaciais não passa de um produto tolo da imaginação?”, perguntava ele ao leitor, meio século atrás, sem sinal aparente de ironia.
De todas as “evidências” da suposta presença de alienígenas no passado da Terra apontadas por Von Däniken, o relevo de Palenque (datado do ano 683) é uma das mais fáceis de refutar. De fato, um dos primeiros livros a analisar criticamente o trabalho do suíço, The Space-Gods Revealed, de Ronald D. Story, publicado em 1975, dá cabo do assunto de modo mais do que satisfatório.
Story, além de identificar o “piloto” do foguete com Pacal – um rei maia, não um deus extraterrestre – aponta o significado mitológico das diversas figuras que aparecem no relevo, e chama atenção especial para o quetzal, o pássaro, semelhante a um galo, empoleirado no que seria o “bico” da nave, e uma cobra de duas cabeças, enrolada no que seria a “fuselagem”. Pobre do quetzal quando o foguete atingiu velocidade supersônica.
Aos brasileiros de 2018, Von Däniken reconheceu, com alguma relutância, que a figura humana é mesmo o rei maia, mas insistiu que sua leitura alienígena da imagem faz mais sentido do que a interpretação mitológica da arqueologia tradicional. Por quê?
Rorschach arqueológico
Ora, porque é o que ele acha. Apresentado imagens esculpidas por povos antigos de diversas partes do mundo, ele chama atenção para “capacetes, e mãos manipulando controles”, em estátuas e relevos produzidos nas Américas e na China. “Tudo, tecnologia mal compreendida”, sentencia. “Os povos da Idade da Pedra basearam-se em algo que não eram capazes de entender”, declara o simpático ancião de paletó azul.
O que dizer dessa hipótese? “Arqueologia de manchas de tinta”, responde o arqueólogo Kenny Feder em seu livro Frauds, Myths and Mysteries, referindo-se ao teste psicológico de Rorschach, em que o paciente é apresentado a manchas de tinta que pode/deve interpretar como achar melhor. “Quando se desconhece uma cultura, você pode tirar praticamente tudo o que quiser das imagens, mas você com certeza não está fazendo ciência”. O que a tampa do sarcófago mostra é Pacal, posicionado entre símbolos mitológicos da Vida (acima) e da Morte (abaixo).
Mas para entender isso é preciso despir-se dos olhos de homem moderno, acostumado à iconografia da ficção científica, do cinema e das histórias em quadrinhos, e mergulhar na mentalidade maia de 1400 anos atrás. A plateia de Von Däniken não sabe isso – e portanto fica impressionada e aplaude, quando parte da imagem da tumba de Pacal ganha cor e decola da tela do power point, elevando-se num rabo chamejante de foguete.
Menos sexo, mais DNA
Em Eram os Deuses Astronautas?, Von Däniken levanta a hipótese de que os visitantes alienígenas, confundidos com deuses, teriam “fecundado artificialmente” ou “acasalado” com fêmeas primatas pré-humanas, dando início ao desenvolvimento de nossa espécie. Ele sugere ainda que astronautas terrestres poderão fazer o mesmo no futuro, ajudando povos primitivos de outros mundos a “saltar um estágio na evolução”.
Em São Paulo, 50 anos mais tarde, essa biologia rudimentar, que parece saída de uma história em quadrinhos de super-herói antiga – em sua introdução ao livro de Story, Carl Sagan nota que as ideias de Von Däniken têm “o mesmo nível intelectual de gibis do Superman, mas sem o charme do Superman” – ganha uma camada extra de sofisticação: agora os alienígenas não fazem sexo (esperamos que consensual) ou inseminação artificial (forçada) com as “nativas”, mas espalham seu DNA pelo cosmo.
Evolução
A vida inteligente por todo o Universo, assim, tem forma humana porque sua origem é DNA humano. Ciência e religião tornaram-nos arrogantes, sentencia o autor: a ciência nos apresenta como o ápice da evolução; a religião, como os favoritos do Criador.
Isto ainda é biologia rudimentar, mas em vez de saída de uma revistinha do Superman de 1950, parece ter vindo de um roteiro de Stan Lee de 1962. O que talvez seja progresso, mas ainda assim é fantasia, não ciência.
Semear planetas distantes com DNA humano não garante a evolução de formas humanoides – a bem da verdade, não garante a evolução de nada. E nenhum cientista sério jamais diria que o ser humano é o ápice da evolução: qualquer bactéria que exista no mundo, hoje, é resultado de 4 bilhões de anos de seleção natural e evolução, muito mais que o Homo sapiens. Esses micro-organismos seriam, portanto, muito mais “evoluídos”.
Religião
O verdadeiro apelo das ideias de Von Däniken – e talvez da ufologia como um todo? – está não no campo da ciência, mas da religião. Em sua síntese, todas as religiões estão, ao mesmo tempo, certas e erradas: certas em seus princípios éticos e no contorno geral de seus mitos sobre influências celestes, mas erradas quanto à fonte dos princípios e à “verdadeira natureza” das influências por trás dos mitos. É uma manobra não muito diferente da realizada por Dan Brown em seus romances, mas esses são claramente apresentados como obras de ficção.
Se em Eram os Deuses Astronautas o autor estava mais preocupado em transformar divindades de povos minoritários ou extintos em visitantes do espaço, nas décadas seguintes as religiões abraâmicas – judaísmo, cristianismo, islamismo – entraram também na mira. O livro de 1968 especula que o “deus de Moisés” talvez fosse algum tipo de criatura espacial, mas essa não era a principal atração, e sim os maias, incas e antigos egípcios.
Já em seu livro mais recente lançado no Brasil, com o título Os Deuses Eram Astronautas (note, por favor, a sutil transformação da pergunta de 1968 numa afirmação em 2018 – operação realizada não pelo próprio Von Däniken, é preciso reconhecer, mas por seus editores brasileiros), o autor dedica um capítulo inteiro à aparição mariana de Fátima, Portugal, em 1917, um fenômeno caro à tradição católica. Ele afirma considerar que a chamada “dança do Sol” de Fátima representa “boa indicação da presença de um grupo de extraterrestres”.
Fora de círculos religiosos – ou ufológicos – o evento é comumente tratado como um fenômeno meteorológico, como um halo solar ou a passagem rápida de nuvens diante do Sol, só que filtrado pela sensibilidade religiosa de uma multidão excitada, que esperava ansiosamente por um milagre.
Antes da apresentação do suíço, falou à plateia Giorgio A. Tsoukalos, conhecido como apresentador do programa Ancient Aliens do History Channel. “Não há deuses”, sentenciou Tsoukalos, com uma ênfase que deixou parte da plateia desconfortável.
Esse público, que não chegou a encher o auditório (pelo menos um setor foi fechado pela organização, forçando os que haviam comprado ingressos para essa área a trocar de lugar) era formado, em grande parte, por pessoas de meia idade ou pouco acima. Alguns casais de namorados, diversos grupos de senhoras.
Estudos demográficos mais antigos sugeriam que a ufologia seria um interesse predominantemente masculino, mas talvez a dinâmica do público de TV a cabo – ou o sentimento religioso imbuído, já que mulheres tendem a se envolver mais em atividades religiosas que homens – esteja mudando isso.
Comércio
Von Däniken deu a entender que considera o Dilúvio Universal descrito na Bíblia um fato histórico – outro ponto em que está em completo desacordo com a ciência – mas que a “verdade” sobre os patriarcas bíblicos, que receberam orientações de extraterrestres, está oculta na Grande Pirâmide de Gizé. Com esse discurso, ele consegue soar fundamentalista e herético ao mesmo tempo.
Alegar que existe uma “verdade mais profunda que a verdade”, uma verdade esotérica, não é, claro, novidade. Sociedades místicas valem-se disso para atrair adeptos há séculos. Quem entra em contato com essa verdade torna-se, automaticamente, parte de uma elite, e fazer parte de elites é um pacote que muitas pessoas não hesitariam em comprar.
A cultura ufológica brasileira não tem grande visibilidade para o público em geral, mas mobiliza um mercado respeitável, onde se destaca a Revista UFO, publicada há 35 anos, que anuncia produtos como livros, DVDs e, até mesmo, roteiros turísticos baseados nessa temática. Para o ano que vem, uma viagem de luxo a sítios arqueológicos do Peru terá Tsoukalos como guia.
Durante o evento de terça-feira, 4, anunciou-se a estreia de uma série específica sobre óvnis brasileiros no History Channel, e no saguão do Anhembi vendiam-se livros de ufologia e camisetas com estampas ufológicas. Mas o preço das camisetas assustou um senhor magro, bronzeado, de cabelos grisalhos, que examinava os produtos.
“Oitenta reais?”, disse ele, com um sorriso amarelo, dando um passo para trás. “Quem sabe, quando baixar pra cinquenta, eu volto”. O que demonstra que até mesmo o preço de entrar para a elite cósmica pode acabar sendo alto demais para alguns.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência