No início de 2018, mediante pedido da defesa de Suzanne von Richtoffen para progressão de sua prisão do regime semi-aberto para o aberto, o Ministério Público solicitou à juíza responsável pelo caso que a detenta se submetesse ao Teste de Rorschach, com o objetivo verificar se ela teria condições de voltar a viver em sociedade. O laudo apresentado pela psicóloga informou que Suzanne é narcisista, egocêntrica, infantil, imatura e incapaz de autocrítica.
Mas de que se trata, exatamente, o Teste de Rorschach? Apesar de ser o teste psicológico mais conhecido pela população geral, em função de sua utilização em diversas obras de ficção (Watchmen, clipe de Gnarls Barkley, o filme Máfia no Divã, entre tantos outros produtos da indústria cultural), há pouco conhecimento em relação ao que o teste deveria medir, em quais condições deveria ser aplicado e o quanto é confiável.
Grosso modo, funciona assim: são apresentadas sucessivamente à pessoa sob avaliação 10 placas (cinco coloridas, cinco em escalas de cinza) com diferentes padrões simétricos de manchas de tinta. A pessoa deve mencionar o que vê em cada uma. As manchas são todas propositalmente difusas e amorfas, sem significado próprio e nem estão atreladas a uma resposta correta.
O teste, criado por Hermann Rorschach na década de 1920, se propõe a ser projetivo (do conceito freudiano de projeção - assunto pra outro texto). Uma situação em que o paciente, quando confrontado com estímulos ambíguos, projeta sobre eles aspectos de sua própria personalidade. A partir dessas evidências, o aplicante treinado do teste conseguiria compilar, de maneira retroativa, aspectos fundamentais da personalidade e da saúde mental da pessoa testada.
Nas décadas de 50 e 60, o teste sofreu pesadas críticas por conta de falta de procedimentos padronizados (importantes para garantir condições similares de aplicação) e de um conjunto de normas (que definem os critérios específicos para avaliação das respostas). Em função disso, um pesquisador americano,John Exner, criou o que ficou conhecido como Sistema Compreensivo do Rorschach, uma tentativa de sistematizar a aplicação e análise dos resultados do teste, de modo a oferecer maior confiabilidade e validade.
Esses são termos técnicos. “Confiabilidade” determina o grau em que os resultados de um teste independem de quem o aplica: afinal, um teste onde o resultado depende mais da pessoa que o aplica do que do paciente sob exame diz mais sobre o testador do que sobre o testado.
“Validade”, por sua vez, determina se o teste mede o que se propõe a medir: se há alinhamento de resultados com testes similares, se os resultados permitem prever o comportamento da pessoa examinada – ou ambos.
Apesar do esforço de Exner, o Teste de Rorschach ainda enfrenta grandes críticas da comunidade científica, algumas elencadas a seguir. A grande quantidade de variáveis a serem analisadas, e dos detalhes a serem tabulados das respostas, faz com que haja um forte elemento subjetivo envolvido. Respostas idênticas podem levam a dados e análises distintas, reduzindo a confiabilidade do teste.
Pesquisas também demonstram que o teste não detecta consistentemente condições psiquiátricas e/ou psicológicas, com exceção de esquizofrenia e transtorno bipolar que podem, por sua vez, ser detectados de maneira mais simples e eficiente por outros métodos diagnósticos. Depressão, transtornos de ansiedade, psicopatia e, de maneira especial, propensão à violência, impulsividade e comportamento criminoso não são bem capturados pelo Teste de Rorschach, o que leva a sérias dúvidas sobre sua validade.
O teste pressupõe, ainda, que o sujeito sob análise nunca foi exposto antes às imagens, o que, no mundo de hoje, é altamente improvável.
Dentro desse contexto, em artigo criticando o anti-intelectualismo na Europa, o pesquisador Pieter Drenth cataloga o Teste de Rorschach dentro da categoria de Pseudociência Comportamental (Behavioral Pseudoscience), mais especificamente dentro de Diagnósticos Pseudocientíficos.
São pseudocientíficas, segundo Drenth, aquelas práticas que querem parecer científicas, flertando com termos e conceitos da área, cujos proponentes escrevem artigos e livros em formato científico, e indicam intenção de participar do debate científico. Tudo, claro, sem submeterem-se ao que a comunidade considera como boas práticas científicas.
Howard Garb, da Universidade de Pittsburgh, por sua vez, após uma revisão de meta-análises – trabalhos que agregam estatisticamente os resultados de diversos estudos sobre um m esmo tema – inconclusivas sobre a validade do Teste de Rorschach, e mencionando problemas como a falta de replicação independente de resultados e a divulgação seletiva de resultados significativos, sugeriu uma moratória do uso do teste em contextos clínicos e forenses.
Essa sugestão foi, posteriormente, retirada, em função de um debate em andamento com outros pesquisadores, chefiados por Joni Miura da Universidade de Toledo, mas há concordância de que a validade do Rorschach está restrita ao diagnóstico de transtornos ligados a estado mental alterado e pensamentos desordenados, como esquizofrenia.
A partir daí, podemos reavaliar a decisão do Ministério Público de solicitar a aplicação do Rorschach enquanto teste forense e, pior, enquanto teste decisivo para a progressão de regime de uma prisioneira.
A decisão demonstra, ao mesmo tempo, a falta de capacitação científica de membros do Ministério Público e Judiciário mas, de maneira mais grave, a falta de assessoria científica adequada para agentes públicos. Usar ferramentas diagnósticas comprovadamente ineficazes em casos criminais pode colocar criminosos perigosos na rua, e manter reabilitados, aptos ao convívio social, presos em função de idiossincrasias do avaliador.
Paulo Almeida é psicólogo, advogado, doutorado em administração pública e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência