O caça-ETs do Pentágono e os monstros da imprensa

Apocalipse Now
24 ago 2024
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Dia em Que a Terra Parou

 

A forma embasbaca e acrítica com que a mídia tem recebido o lançamento de Imminent, autobiografia de Luis (“Lue”) Elizondo, que se apresenta como ex-chefe de uma suposta operação secreta do Departamento de Defesa dos EUA para caçar óvnis, traz à mente um sem-número de clichês. A saber: uma mentira repetida muitas vezes torna-se verdade; o que importa não é estar certo, é gritar mais alto; a imprensa está em crise; o jornalismo morreu.

Elizondo despontou para a fama em 2017, como principal fonte de uma reportagem de The New York Times afirmando que o governo dos Estados Unidos havia mantido, entre o final da década de 2000 e a primeira metade da de 2010, um programa de caça a discos voadores. Ele se apresentava como ex-diretor do programa, que teria se chamado AATIP (Programa de Investigação de Ameaças Aeroespaciais Avançadas, na sigla em inglês). A entrevista com Elizondo vinha acompanhada de fotos e vídeos de objetos não identificados, registrados por câmeras de aviões militares.

Quase uma década de intensa investigação depois, incluindo centenas de horas de trabalho jornalístico sério, uma comissão do Congresso americano e a criação de um novo órgão federal nos Estados Unidos, o AARO (Departamento de Resolução de Anomalias de Qualquer Natureza), nadaabsolutamente nada – do que Elizondo disse ao NYT se sustenta.

A reportagem, assinada por três jornalistas – dois dos quais, freelancers com laços estreitos com propagadores de teorias de conspiração ufológicas – é melhor vista como uma peça de marketing para o lançamento da To The Stars Academy (TTSA), um misto de produtora multimídia e suposto laboratório de pesquisa em “tecnologias alienígenas”, que entrava em operação na mesma época da publicação (e da qual Elizondo foi membro até 2020). Recentemente, a TTSA passou a ser alvo de investigação por fraude contra investidores.

 

AATIP vs AAWSAP

Alguns dos fatos apurados entre 2017 e 2024: nunca houve um programa oficial chamado AATIP no Pentágono; Elizondo nunca foi, formalmente, chefe de nada; o único programa formalizado semelhante ao descrito por Elizondo era algo chamado AAWSAP (Programa de Pesquisa de Aplicação de Sistemas Avançados de Armas Aeroespaciais), cujo objetivo oficial era antecipar avanços em tecnologia aeroespacial – novas armas e veículos que Rússia, China, etc. poderiam estar desenvolvendo – e não discos voadores.

As investigações também revelaram que a criação do AAWSAP (que existiu oficialmente de 2009 a 2012) foi, na verdade, um “presentinho” de US$ 22 milhões inserido no orçamento federal americano pelo senador Harry Reid, em deferência para com contribuições à sua campanha feitas pelo milionário Robert Bigelow.

Bigelow, um entusiasta de temas paranormais, cósmicos e espiritualistas, era então proprietário de uma área rural – o Rancho Skinwalker – supostamente “mal-assombrada”, e mantinha um grupo de caça-fantasmas trabalhando no local. A firma privada contratada para apoiar as atividades do AAWSAP, recebendo a parte do leão dos US$ 22 milhões, foi exatamente o grupo de investigadores paranormais de Bigelow. E, de fato, houve desvio de função do órgão: os recursos foram gastos em pesquisas ufológicas e pseudocientíficas, não na investigação de tecnologias avançadas de outras potências militares.

Os vídeos de óvnis e os depoimentos de pilotos militares publicados pelo Times também já receberam explicações plausíveis, incluindo bugs das câmeras infravermelhas dos aviões, como mudanças abruptas de zoom, que dão a impressão de que um objeto está se afastando ou se aproximando muito rapidamente, e movimentos que na verdade pertencem à câmera em si, e não ao objeto registrado. Essas explicações são solenemente ignoradas por Elizondo em seu livro.

 

Realidade paralela

Em meio a essa verdadeira tempestade de revelações vexaminosas feitas por fontes oficiais, investigadores independentes e outros veículos de imprensa (em especial, o New York Post, um veículo mais popular e com vocação para o jornalismo de tabloide, fez da demolição do surto ufológico do vetusto Times quase uma questão der honra), o NYT jamais se retratou do material original publicado em 2017, ou admitiu ter se deixado usar por ativistas, pseudocientistas e marqueteiros.

E com o lançamento de Imminent, o corpo editorial do mais respeitado diário do planeta parece ter resolvido dobrar a aposta, ao publicar uma resenha extremamente positiva do livro, assinada (adivinhe só) pelos mesmos ufólogos que haviam sido coautores da infame reportagem de 2017.

Como o NYT tem o condão aparente de recobrir qualquer coisa, por mais absurda que seja, com uma pátina de seriedade – e como a imprensa brasileira vive em crise, dependendo cada vez mais de material pré-fabricado e contando cada vez menos com inteligência nativa – foi essa resenha, traduzida (Globo e Estadão caíram na esparrela), parafraseada ou plagiada, que fez a ronda da imprensa nacional.

Para poder ser positiva, no entanto, a resenha precisou ignorar boa parte da obra, repleta de erros, imprecisões e algumas “confissões” embaraçosas. Elizondo diz ter sido chamado de “Czar da Tortura” da prisão mantida pelos EUA em Guantánamo, Cuba, para interrogar suspeitos de terrorismo; afirma orgulhar-se de ter participado ativamente do programa de “Rendições Extraordinárias”, um esquema de sequestros internacionais e tortura patrocinado pela CIA. Elizondo delineia para si uma carreira militar e de espionagem que parece tirada de uma adaptação cinematográfica ruim de um romance de Tom Clancy.

Esse lado pseudo-thriller do livro leva a momentos esquisitos, como quando Elizondo escreve que um vizinho certa vez lhe perguntou, num churrasco, “este é um dos programas secretos em que você trabalha para o governo?” Mas, espere aí: o bairro inteiro sabe que você é agente secreto?

Luis Elizondo também diz ter desenvolvido poderes paranormais, graças a um programa de treinamento especial do Exército.

E essas são as confissões. Quanto aos erros e imprecisões, há os que parecem fruto de mera ignorância, os que sugerem incompetência e os que remetem a uma realidade alternativa dominada por teorias de conspiração. No quesito ignorância, Elizondo parece desconhecer o fato de que incas, maias e astecas eram povos diferentes, vivendo em tempos e locais diferentes. Ele faz, por exemplo, referências a relíquias maias (um povo do sul do México e da América Central) presentes “no Peru”.

Em incompetência, vemos o autor afirmar, primeiro, ter estudado microbiologia e imunologia na Universidade de Miami, para depois afirmar que um tripanossoma (um protozoário) é uma espiroqueta (um tipo de bactéria). Isso é mais ou menos como alguém que alega ser formado em zoologia dizer que uma galinha é um mamífero. A lista de solecismos científicos da obra é interminável.

O livro está ainda repleto de non sequiturs, argumentos em que a conclusão não tem nada a ver com as premissas, e “insights geniais” que na verdade são clichês batidos de ficção científica. Elizondo gaba-se de ter concluído, junto com colegas da AATIP e por meio de um “encadeamento lógico inexpugnável”, que os discos voadores estão aqui porque os ETs temem o desenvolvimento tecnológico humano, principalmente o nuclear, e apresenta isso como um exemplo supremo de pensamento original, uma revelação que aguardou décadas para finalmente emanar de um punhado de mentes privilegiadas. Só que esse é o plot do filme "O Dia em Que a Terra Parou", de 1951.

Já o pendor para imaginar realidades alternativas manifesta-se, por exemplo, quando Elizondo declara que o Projeto Stargate, um programa americano para investigar o uso militar de coisas como telepatia e clarividência (“visão remota”), obteve enormes sucessos e só foi extinto por pressão de fundamentalistas religiosos. No mundo real, Stargate jamais gerou informação útil e foi fechado exatamente por isso. Diz o relatório final sobre o assunto, elaborado em 1995:

“As informações fornecidas pela visão remota são vagas e ambíguas, o que torna difícil, se não impossível, que a técnica venha a produzir informações de qualidade e precisão suficientes para o uso em atividades de inteligência. Assim, concluímos que o uso contínuo da visão remota, em operações de coleta de inteligência, não se justifica”.

O mundo paralelo criado por Elizondo em seu livro, além ser habitado por guerreiros telepatas, ETs e discos voadores, abriga também duas grandes conspirações: uma, o Projeto Legacy, é orquestrada por grandes corporações que tiveram acesso a tecnologia alienígena e não querem compartilhá-la com o cidadão comum; outra, a Elite Collins, formada por fanáticos religiosos, deseja preservar a todo custo a visão de mundo judaico-cristã, impedindo que a população tome conhecimento da existência de extraterrestres.

Premido entre o martelo do capitalismo selvagem e a bigorna do fundamentalismo intransigente, o intrépido ufólogo tenta, a duras penas, fazer seu trabalho.

Essa visão de mundo propalada pelo autor, paródia cruzada e involuntária de Arquivo X com O Código da Vinci com Caçada ao Outubro Vermelho é, assim como os erros primários de história, geografia e biologia cometidos por Elizondo, omitida das resenhas e comentários sobre Imminent que buscam apresentar seu autor como uma fonte confiável de inside information sobre as atividades ufológicas, militares e de inteligência do governo dos Estados Unidos.

 

Origem brasileira

Uma curiosidade final, não mencionada na resenha do NYT e, por isso, ausente de seus derivados nacionais: Elizondo dedica todo um capítulo de seu livro a um jantar do qual teria participado o general Paulo Roberto Miranda Uchôa, filho do também general Alfredo Moacir de Mendonça Uchôa. Moacir Uchôa é descrito às vezes, e até mesmo na literatura acadêmica, como “um dos patronos da ufologia no país”, autor de livros sobre parapsicologia e discos voadores.

O filho, general Paulo Miranda, teria descrito a Elizondo uma série de fenômenos que o leitor brasileiro familiarizado com o assunto logo reconhece como sendo os investigados pela Operação Prato de 1977, em que a Aeronáutica tentou elucidar uma série de supostos ataques de “vampiros” extraterrestres contra moradores do litoral do Pará. Aparentemente, o relato de Uchôa causou forte impressão sobre Elizondo, dando substância a sua crença de que ETs podem ser hostis e perigosos.

Até hoje ninguém sabe – e provavelmente jamais irá saber – o que, exatamente, havia por trás de cada um dos incidentes que instigaram a Operação Prato. Mas, no livro “Corpos Luminosos”, o autor Hélio Aniceto mostra como um clima de pânico, excitação e ansiedade foi construído, no imaginário coletivo local, por um jornalismo sensacionalista e irresponsável (“monstro criado pela imprensa”, diz relatório, escrito por um militar, a respeito do ambiente emocional e psicológico encontrado no município paraense de Colares).

Em condições assim, não é improvável que fenômenos díspares e independentes entre si – um acidente com fogos de artifício, uma nuvem de pirilampos, um meteoro no céu, um ruído no escuro – acabem sendo interpretados de acordo com expectativas fantasiosas, costurados numa narrativa única e atribuídos a uma causa comum.  Algo semelhante pode ser visto no caso do ET de Varginha.

Se o chupa-chupa (como era chamado o vampiro espacial do Pará) foi um monstro criado pela imprensa, a reputação de Luis Elizondo como caçador de óvnis também é. E uma dessas criaturas pode até ser filhote da outra.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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