O curioso caso da homeopatia

Apocalipse Now
7 jul 2024
Autor
Samuel Hahnemann

 

No fim do mês passado, em palestra proferida no Rio de Janeiro, Steven Pinker usou homeopatia como exemplo genérico de “tratamento médico maluco”, num contexto em que o psicólogo, linguista e autor listava crenças absurdas que parecia ter resolvido mencionar mais ou menos ao acaso – relação que incluía ainda vidas passadas, clarividência, telepatia. Para o senso-comum brasileiro, o mais chocante da fala deve ter sido a total ausência da intenção de chocar: ao se referir à homeopatia de “tratamento maluco”, Pinker não falou como se estivesse abrindo uma polêmica ou convidando para a controvérsia, mas apenas enunciando um fato da vida.

E, de fato, trata-se de apenas mais um fato da vida, tão trivial quanto o nascer do Sol a leste ou a atração de formigas por açúcar. A ineficácia dos remédios homeopáticos, quando comparados a placebos, é um dos resultados experimentais mais tediosamente repetidos da literatura médica.  Não que não existam estudos com resultados favoráveis à prática, mas quando se observa o conjunto da evidência, um padrão emerge: quando maior a qualidade da pesquisa e dos controles usados, menor o efeito. A inferência é clara.

A doutrina homeopática tem dois núcleos principais: o princípio das semelhanças e o da potencialização por diluição. O primeiro diz que substâncias que causam, numa pessoa saudável, sintomas semelhantes aos de uma doença devem ser capazes de curar essa doença; o segundo, que quanto mais diluído um medicamento, maior seu poder de cura.

O princípio das semelhanças é uma regra arbitrária, cujo único valor reside no fato de que soa bem em latim – Similia Similibus Curentur, “semelhante cura semelhante” – e coisas que soam bem em latim são facilmente confundidas, principalmente por pedantes de alma simples, com sabedoria.

Em um artigo de 1833 (Espírito da Doutrina Médica Homeopática), Samuel Hahnemann, o fundador da homeopatia, tenta argumentar que é absurdo acreditar que materiais que causam efeitos diferentes dos sintomas da doença poderiam ter potencial terapêutico, porque, como todas as substâncias causam algum efeito no corpo humano, e os efeitos de diferentes materiais são diferentes entre si, se diferentes curassem diferentes, qualquer coisa poderia curar qualquer coisa. Não me parece falta de caridade apontar que a lógica aí não é exatamente brilhante. Ou lógica.

(A imagem que ilustra este artigo retrata detalhe de uma estátua de Hahnemann, erigida em Washington, DC, nos Estados Unidos,)

Já o princípio da potencialização viola leis fundamentais da física e da química: diluir uma mistura significa aumentar a quantidade de solvente (por exemplo, água) e reduzir a de soluto (no caso de um medicamento, do princípio ativo, aquilo que deve afetar a saúde do paciente). Diluições comuns na prática homeopática chegam a ser 99,9999...% solvente – há casos em que a chance de haver uma só molécula de princípio ativo na dose recebida pelo paciente é muitíssimo menor que a de ganhar seguidas vezes na Mega-Sena.

 

Memória

Alguns homeopatas modernos tentam contornar essa objeção sugerindo que, após a diluição infinitesimal, restaria uma “assinatura energética” do princípio ativo impressa no solvente, e que essa “assinatura” seria terapêutica. Mas não só a hipótese dessa “memória” do solvente (ou “memória da água”) carece de base na realidade (já tratamos disso em outros artigos, como aqui e aqui), como, se levada a sério, implicaria um mundo muito diferente daquele em que vivemos: cada gota de água presente no planeta Terra provavelmente já entrou em contato, em algum momento, com todas as demais substâncias do Sistema Solar.  Se a memória da água fosse um fenômeno real, cada mililitro preservaria um sem-número de diferentes assinaturas energéticas. Os efeitos medicinais (ou tóxicos) de se beber um simples gole de água seriam selvagens, imprevisíveis, incontroláveis. Água seria a nossa kryptonita vermelha.

Mas o apelo à memória da água é preocupação de (alguns) modernos. Hahnemann, o homeopata-raiz, considerava que sua criação paira acima das regras da ciência ordinária. No mesmo artigo em que argumenta pela lei dos semelhantes, lemos o seguinte:

 “A vida humana, em nenhum caso, é regulada por leis meramente físicas, que só regem substâncias inorgânicas (...) aqui, um poder fundamental (...) anula todas as tendências das partes componentes do corpo de obedecer às leis da gravitação, do movimento, da inércia, da fermentação, putrefação, etc.”

Resumindo: o corpo humano e suas partes constituintes (membros? órgãos? células? moléculas?) não obedecem necessariamente nem à lei da gravidade, nem ao princípio da inércia, nem participam de processos bioquímicos ordinários. O que deve ser uma surpresa para pessoas que caem de grandes altitudes sem paraquedas, ou se envolvem em acidentes automobilísticos, ou que tiveram algum contato com a ciência desenvolvida nos últimos 200 anos, em particular com a bioquímica do século 20.

 

Relação especial

Que a equação entre homeopatia e maluquice ainda tenha o potencial de soar polêmica em Pindorama é, portanto, uma peculiaridade muito específica da cultura nacional. A causa pode ser atribuída a diversos fatores, entre eles a relação especial – verdadeiro beneplácito corporativo – que a classe médica mantém com a prática, e ao acolhimento dessa relação especial pelo Estado. Se os porta-vozes oficiais do governo e dos médicos dizem que homeopatia é ok, o cidadão comum, que tem mais com que se preocupar, simplesmente assimila esse dado e vai cuidar da vida.

Mas a relação especial e a falsa impressão que ela produz no público está longe de ser inofensiva. Implica desperdício de dinheiro público e também o emprego de técnicas ineficazes no combate a problemas graves de saúde – incluindo dependência química e covid. Há um argumento recorrente de que, no Brasil, a homeopatia, mesmo não sendo superior a um placebo, não representa risco ao paciente porque é apenas usada de forma “complementar” – ninguém, diz-se, vai tentar escapar de uma infecção grave (ou de um câncer) usando apenas homeopatia. Essa bela esperança é desmentida, no entanto, por representante do Conselho Federal de Medicina ouvida pelo jornal Folha de S. Paulo:

"A homeopatia é consagrada, praticada por médicos formados, é uma especialidade como outra qualquer. O paciente, na relação com o médico, vai ter oportunidade de receber o tratamento. Ela não é terapia complementar”.

A novidade é que o poder hipnótico da relação especial sobre os guardiões da opinião pública parece estar se diluindo (e, de modo acintosamente anti-homeopático, ficando mais fraco por causa disso). Fazendo o meio de campo entre os porta-vozes do Estado e da Medicina e o público, encontram-se os intelectuais, as instituições de ensino e os meios de comunicação. E é essa camada intermediária que vem se mostrando cada vez mais incomodada com o status da homeopatia no Brasil – por vários motivos, sendo talvez a atuação do Instituto Questão de Ciência e de seus diretores um fator contribuinte.

Essa diluição aparece, por exemplo, no destaque dado à fala de Pinker, em no fato de a mesma empresa jornalística que, duas décadas atrás, publicou um livro laudatório sobre a prática, agora veicula editorial condenando-a. Resta ver o efeito que essa diluição terá na qualidade da informação que chega ao público. Talvez ela possa ser, com alguma ironia, terapêutica.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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