“A prefeitura de Itajaí (SC) pretende contribuir com a campanha de isolamento social para conter a epidemia de COVID-19, e com a segurança de seus agentes de saúde, de uma forma muito estranha: lançando uma forca-tarefa para oferecer um remédio homeopático [com] a premissa [de que a ação aumentará] a imunidade das pessoas”.
O texto acima foi retirado de artigo publicado aqui mesmo na Revista Questão de Ciência, pela microbiologista Natalia Pasternak, em março deste ano. À época, a prefeitura de Itajaí lançava mão da homeopatia numa tentativa de aumentar a imunidade da população, aventando a possibilidade imaginária de uma melhor resposta do organismo a um eventual contágio pelo novo coronavírus. Natalia, por outro lado, já alertava sobre a ineficácia da técnica.
Bom, o problema da medida anunciada está no fato, amplamente conhecido, de que a homeopatia não tem suporte por evidências científicas adequadas. Os estudos que comprovam a eficácia da prática carecem de qualidade, geralmente falhando em um ou mais dos requisitos necessários para uma boa pesquisa. Estou me referindo ao fato do estudo precisar ser duplo-cego, randomizado, com espaço amostral contendo número suficientemente grande de pacientes, e ainda tem que haver uma necessária comparação do efeito do tratamento a ser testado com o famoso efeito placebo.
Embora não seja o foco do presente artigo explorar todos esses requisitos, caso você não tenha familiaridade com a importância deles, pode verificar outras publicações aqui desta revista. Por exemplo, já falamos sobre como são testados medicamentos e tratamentos, e também já apresentamos uma série de fatores que estão relacionados ao efeito placebo: por mais estranho que possa parecer, ministrar um comprimido ou tratamento sem qualquer princípio ativo, faz efeito para uma boa parte das pessoas!
Assim, é preciso reforçar, para este artigo, o seguinte fato: se eu estou doente e me submeto a um procedimento ou à ingestão de um preparado qualquer, e, em seguida, melhoro, eu posso afirmar, cientificamente, que foi o procedimento (ou o preparado) que causou a minha melhora? Infelizmente, a resposta é um sonoro "não". Embora se possa fazer uma relação entre a intervenção e a melhora, isso é uma armadilha, pois relação não implica causação, como também já discutimos nesta revista. Arrisco dizer que se a população tivesse a mínima noção desse fato, a maioria das práticas médicas ditas “alternativas”, sem a devida comprovação de eficácia, deixariam de ter pacientes adeptos.
Para quem ainda não é familiarizado com os argumentos da homeopatia, é importante saber que os medicamentos homeopáticos são baseados em diluições sucessivas de um princípio ativo, de tal maneira que quanto maior for a diluição, maior a potência do remédio para o tratamento da enfermidade. Só isso já seria suficiente para levantar suspeitas, mas não para por aí: os preparados comumente usados são tão diluídos que nem chegam a apresentar uma molécula sequer de princípio ativo na sua composição.
Para sair dessa enrascada química, os homeopatas recorrem a artifícios como “energia vital” e “memória da água”. Ou seja, o medicamento homeopático trata por algum tipo de interação energética, enquanto o processo de diluição sucessiva é feito de uma maneira específica capaz de transferir à água uma espécie de “memória” do princípio ativo, para poder interagir com nosso organismo. Mas nenhum desses termos tem créditos e comprovações na ciência atual.
O efeito placebo
Dada toda essa necessária introdução, temos elementos para tratar da novidade: em 17 de julho, a prefeitura de Itajaí publicou um relatório alegando resultados positivos para a prática adotada, de ministrar um preparado homeopático para a população, no controle da COVID-19. Será que finalmente temos resultados confiáveis e positivos para a homeopatia? A prefeitura de Itajaí acertou, e o prefeito tornou-se candidato automático ao Nobel de Medicina? Ou tudo não passa de uma ilusão? Vamos às alegações do relatório e, principalmente, avaliar as “evidências” apontadas.
De acordo com a nota publicada (acessada em 18/07/2020) na página oficial da prefeitura, são dois os principais “achados” da pesquisa:
1. As pessoas que tomaram o remédio apresentaram 21,8% menos sintomas de COVID-19 do que aquelas que não tomaram. O resultado sugere uma redução da gravidade da doença nestes pacientes.
Itajaí tem uma população de cerca de 220 mil habitantes. Desses, quase 43 mil pessoas tomaram o preparado homeopático, que foi disponibilizado em dose única, em formato de glóbulos, nas unidades básicas de saúde do município. Para fazer a sondagem dos sintomas, a prefeitura enviou um link de um formulário eletrônico para cerca de 120 mil cidadãos, envolvendo aqueles que tomaram e aqueles que não tomaram homeopatia. Desse total, menos de 1% realmente respondeu: somente 1.171 indivíduos. O universo dos respondentes está dividido em 75% que tomaram homeopatia e 25% que não tomaram.
O resultado pode parecer impressionante: 8 dos 9 sintomas pesquisados tiveram maior prevalência entre os que não tomaram o preparado. E, a partir da análise global, o relatório conclui que a prevalência de todos os sintomas perguntados foi 21,8% menor naqueles indivíduos que tomaram os glóbulos de homeopatia.
Onde está o problema, então? Como comentamos antes, mesmo tratamentos envolvendo nenhum princípio ativo, como pílulas placebo, causam efeitos benéficos em parte das pessoas que se submetem a eles. Por isso, para poder atribuir às pílulas homeopáticas o sucesso da menor prevalência de sintomas, é necessário, no mínimo, fazer uma comparação entre os resultados obtidos por três grupos de pacientes: o controle (os que não tomaram nada, no estudo), o experimental (que tomou a medicação sob teste) e o grupo placebo (que teria tomado glóbulos de açúcar sem o “toque mágico” homeopático).
Como não houve um grupo placebo, não há como afirmar que o resultado positivo se deve à eficácia real do preparado homeopático. Como argumentar que não foi resultado placebo? E mais: cerca de 28% do total de respondentes, pra complicar a situação, tomaram outras drogas durante o processo. A mais usada (6,7%) foi o paracetamol.
Mortos a menos?
Caso você queira saber mais sobre os resultados curiosos, porém muito significativos e positivos, relacionados a efeito placebo, pode ler o médico Ben Goldacre (em seu livro “Ciência Picareta”, Ed. Civilização Brasileira, 2013) e a microbiologista Natalia Pasternak (no artigo sobre os fatores do placebo). Ambos abordam vários exemplos de resultados nada desprezíveis oriundos de placebo, incluindo bons resultados até em procedimentos cirúrgicos.
2. As pessoas que tomaram o preparado homeopático apresentaram um índice de mortalidade 43,9% menor do que as que não tomaram.
Para obtenção deste dado, foram analisadas as 50 primeiras mortes no município de Itajaí, total atingido em 09/07/2020. Foram verificadas quantas mortes corresponderam a indivíduos que não tomaram a homeopatia e quantas a indivíduos que tomaram. Esses números, em seguida, foram divididos pelo total da população de cada grupo (aproximadamente, 43 mil pessoas que tomaram a homeopatia e 177 mil pessoas que não tomaram), para se obter o “porcentual de mortes” dentro de cada um dos dois conjuntos de indivíduos. Como resultado, foi observado que a incidência de morte foi de 0,0249% no grupo dos que não tomaram homeopatia, e 0,0140% no grupo que tomou o preparado (cerca de 44% menor).
Novamente, parece um dado bastante positivo para a homeopatia. Mas, em uma primeira análise, o que me parece é que foi obtida uma relação: ou seja, aqueles que tomaram o preparado tiveram menor incidência de morte. Porém, como também abordamos no início deste texto, relação não implica causa. Ou seja, apenas com base nos dados do relatório não temos como afirmar que a causa da menor incidência de morte nesse grupo foi a administração dos glóbulos homeopáticos.
E por que não? O que mais poderia explicar a diferença entre os grupos? Vários outros fatores. Por exemplo, como garantir que os indivíduos do grupo homeopático também não tiveram um comportamento global mais eficaz para evitar contágio que os demais? Como garantir que eles não ficaram em isolamento por um período de tempo maior? Que usaram máscaras ou mais frequentemente, ou feitas com materiais mais eficazes? E fora vários outros fatores de diferenças possíveis entre os grupos, no que se refere, por exemplo, a comorbidades, idade, etc.
Também chama a atenção a amostra muito pequena, de menos de uma centena de óbitos. Amostras pequenas têm propensão a gerar resultados falso positivos por mero acaso, efeitos ilusórios que somem com tempo, à medida que mais números são computados. Um exemplo clássico de falso positivo provocado por amostragem pequena, e que desapareceu com a ampliação da amostra, foi o estudo sobre astrologia e compatibilidade de casais conduzido pelo psicólogo Carl Jung (1875-1961) nos anos 50.
Outra consideração importante a ser feita é sobre a própria alegação da “proteção imunológica” da dose homeopática envolvida. Ela protegeria por quanto tempo? Essa proteção poderia ser medida por outros exames, que não a taxa de mortalidade? E, se possível, esse dado corroboraria o resultado atual de incidência de mortes?
Como se tudo isso não bastasse, ainda parece-me necessária uma análise temporal do processo, pois quando os preparados homeopáticos começaram a ser distribuídos à população, em 29/04/2020, já havia, na cidade, três mortes confirmadas pela doença, além de 86 casos confirmados e 42 suspeitos. Estariam os três primeiros mortos de Itajaí, e os pacientes que morreram antes de ter tempo hábil de receber a oferta do produto homeopático, computados entre as 44 mortes atribuídas à falta de remédio homeopático?
Trata-se de um problema comum em estudos observacionais sobre saúde, conhecido como “viés de tempo imortal”: quando pacientes que morrem antes de terem tempo de receber o tratamento são contados entre os óbitos do grupo não tratado, enquanto só os pacientes que viveram o suficiente para receber o tratamento, e depois morreram, são contados como óbitos do grupo tratado. Esse tipo de contagem garante que o primeiro grupo (mortos não tratados) sempre terá mais indivíduos que o segundo (mortos submetidos ao tratamento).
Enfim, onde chegamos com este relatório? Temos, graças a ele, uma justificativa para aplicação da homeopatia? Ou é só “mais do mesmo”, ou seja, mais dados apresentados em roupagem científica, mas que não gozam de rigor adequado? Esses dados, infelizmente, não são evidência significativa em favor da homeopatia.
Prioridades
Mas, durante a pandemia, enquanto não há tratamento ou vacina com eficácia comprovada, não é melhor “fazer algo” ao invés de “fazer nada”? “Não podemos ficar vendo a banda passar sem fazer nada”, dizem os defensores da homeopatia, cloroquina e ivermectina. O que eles não entendem é que quando os cientistas se colocam contra essas intervenções sem eficácia, isso não implica que estão se colocando a favor de “fazer nada”! Isso é uma falácia. Durante esta pandemia, já sabemos o que fazer, pelo menos enquanto não houver tratamento ou vacina. O dinheiro público, tão necessário, pode ser investido, por exemplo, em...
...apoio às pessoas em vulnerabilidade, que perderam emprego e renda, para que tenham suporte financeiro para ficar em casa e cumprir a quarentena;
...apoio às micro e pequenas empresas, que passam dificuldades financeiras por ter que fechar as portas durante o isolamento;
...mais profissionais de saúde, qualificados e preparados para dar tratamento e assistência social à população;
...apoio a pesquisas científicas em andamento, somando recursos aos já existentes para esta finalidade;
...medicamentos anestésicos para os pacientes que necessitam intubação, além de outras drogas que combatem os efeitos da COVID-19;
...disponibilização de novos leitos hospitalares e de tratamento intensivo. Esses recursos salvam vidas ao permitir que o paciente tenha suporte adequado para reagir à infecção;
...aquisição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e álcool 70%, seja para profissionais da saúde, atendentes de serviços de emergência, assistentes sociais, e até para a população que não tem condições financeiras de adquirir esses produtos.
Ou seja, ações necessitando investimentos não faltam. Colocar dinheiro em preparados homeopáticos, ou qualquer outro medicamento sem a devida acreditação por metodologias adequadas, é, portanto, jogar dinheiro fora.
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia