O jornalismo brasileiro vive um bizarro caso de amor com a homeopatia. Um caso em que o leitor desempenha o papel de cônjuge traído. Há cerca de quinze anos que a credibilidade clínica, a respeitabilidade científica e o papel da prática em políticas públicas de saúde, no mundo civilizado, só faz encolher – e o brasileiro que confia nos jornais, nas revistas e na televisão não fica sabendo.
O Titanic homeopático foi a pique anos atrás, abalroado por uma verdadeira frota de icebergs de evidência científica, mas para a mídia nacional é como se isso não tivesse nenhuma relação com o Brasil, um país onde a prática é absurdamente reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina, promovida pelo Ministério da Saúde e subsidiada pelo SUS.
Por exemplo, a notícia recente de que o governo francês decidiu encerrar sua política de subsídio a medicamentos homeopáticos, atendendo a (mais um) parecer científico que constata a ineficácia da prática, chegou ao Brasil via internet – depois de ser antecipada aqui, em Questão de Ciência – mas mal foi citada nos meios tradicionais. E, quando a citação ocorre, é no sentido de curiosidade inócua de uma terra estrangeira (o texto do G1, no link inicial deste parágrafo, é uma tradução do serviço de imprensa alemão Deutsche Welle).
O contexto nacional chama atenção pela ausência: é como se os fatos científicos relevantes para a fisiologia e a saúde dos franceses não significassem nada aqui. O que se encaixa bem na cegueira histórica da imprensa brasileira para com a crítica científica à homeopatia.
O primeiro iceberg a pegar o transatlântico homeopático pela proa foi a publicação, pela revista médica The Lancet, em 2005, do estudo de Aijing Shang e colegas, demonstrando que os supostos efeitos benéficos da prática se reduzem aos de um placebo. Um editorial intitulado “O Fim da Homeopatia” – o que poderia ser mais claro? – acompanhava o trabalho.
Por aqui, na época, a Folha de S. Paulo dedicou ao assunto uma nota de rodapé na página de Ciência: nota traduzida do jornal inglês The Independent, sem nenhum esforço de relacionar o estudo (ou o editorial) à realidade brasileira. Sendo que, no tempo em que a grande imprensa ainda contava com espaço e equipe consideráveis para tratar de assuntos de saúde e ciência, qualquer coisa que saísse na Lancet sobre tratamento de unha encravada em camundongo virava abre de página, com ampla repercussão entre especialistas nacionais.
Um segundo golpe veio em 2010, quando uma investigação do Parlamento Britânico concluiu que o uso de verba pública para subsidiar a prática configurava desperdício do suado dinheiro dos contribuintes. O jornal The Guardian definiu a defesa da prática, apresentada pela “elite da homeopatia” britânica, como “farsesca”, dada a incongruência dos argumentos e a falta de evidências.
No Brasil, onde o SUS gasta dinheiro com homeopatia, silêncio sepulcral (para ser mais preciso, outra nota de rodapé na Folha, tratando o assunto como coisa de planeta alienígena). Quando, anos mais tarde, o relatório parlamentar permitiu que a ONG Good Thinking Society forçasse a exclusão da homeopatia do sistema público inglês, o assunto foi largamente ignorado por aqui. Mal comparando, se uma CPI britânica concluísse que aspirina é inútil, e por causa disso o remédio acabasse banido da rede pública inglesa, isso seria, no mínimo, capa de Veja.
Um terceiro petardo veio da Oceania: em 2014, o Conselho Nacional de Pesquisa Médica da Austrália divulgou o resultado de uma ampla revisão de estudos sobre a eficácia da homeopatia como forma de tratamento médico.
Assim como os autores do artigo de 2005 na Lancet e o comitê do Parlamento Britânico em 2010, os australianos chegaram à conclusão de que não existe prova nenhuma de eficácia. O trabalho repercutiu internacionalmente – mas não no Brasil.
Aliás, a recente decisão francesa de encerrar o subsídio público a remédios homeopáticos se segue a mais uma revisão da literatura científica sobre o assunto, que produziu resultados idênticos aos (desculpe o tamanho da lista) publicados na Lancet, pelo Parlamento Britânico, pelo Conselho australiano, no British Journal of Clinical Pharmacology e por diversos outros cientistas: não há evidência positiva crível de que a homeopatia funcione melhor do que um placebo.
Existem revisões de literatura com resultado favorável à homeopatia? Sim. Mas só as que são feitas por homeopatas (e que costumam ter qualidade lastimável). O que remete à anedota do cara que acredita que é invisível, mas só quando nenhum cético está olhando.
Para ser justo, não é que a mídia brasileira ignore por completo a evidência de que a homeopatia é inútil. Mas insiste em tratá-la, editorialmente, não como evidência, questão de fato, mas como argumento, isto é, questão de opinião. Ainda em 2018, nosso “modelo”, a Folha, publicava artigos pró e contra homeopatia em sua página de material opinativo, Tendências/Debates. O jornal provavelmente teria pruridos em tratar o criacionismo ou o terraplanismo da mesma forma.
Para ser claro: não existe “controvérsia científica” em torno da homeopatia. A prática é rotineiramente citada como exemplo inequívoco de pseudociência ou ciência patológica em manuais acadêmicos de filosofia da ciência, muitas vezes no mesmo parágrafo que o design inteligente ou a astrologia.
Pode-se argumentar que existe uma percepção pública de controvérsia. Isso é algo, infelizmente, comum em ciência: a questão já se tornou pacífica entre os especialistas e estudiosos, mas o público ainda tem a falsa impressão – quase sempre, insuflada por interesses comerciais ou ideológicos – de que o debate segue indefinido.
Da relação entre tabaco e câncer ao aquecimento global, passando pela evolução das espécies, a lista de proposições que já enfrentaram, ou ainda enfrentam, esse descompasso entre realidade e senso-comum é enorme. Mas o papel da imprensa deveria ser o de esclarecer e informar, não o de se curvar bovinamente ao senso-comum.
O problema ganha uma camada extra de complexidade, no entanto, quando descemos da esfera das abstrações e levamos em conta que o jornalista é um ser humano como outro qualquer, inserido na cultura dominante e também imerso no senso-comum. Se uma parcela significativa da sociedade é simpática à homeopatia e desconfia dos resultados que apontam contra ela, é provável que uma parcela significativa dos jornalistas também seja – e desconfie. E essa parcela acaba influenciando a seleção e o direcionamento das pautas.
De qualquer modo, a história do jornalismo está repleta de casos em que o ideal da objetividade e o peso bruto dos fatos derrotaram o senso-comum dessa ou daquela redação – a profissão seria bem supérflua, aliás, se isso não acontecesse com certa frequência.
Então, recapitulo aqui os fatos brutos, e acrescento mais alguns: Inglaterra e França concluíram que subsidiar homeopatia é má política pública. Austrália concluiu que a prática é inútil.
Essas conclusões foram atingidas de modo independente, a partir da análise de milhares de estudos científicos, uma base de evidências que se acumula há décadas. A mesma base de evidências, aliás, levou o serviço de proteção ao consumidor dos Estados Unidos a exigir uma rotulagem especial para medicamentos homeopáticos, advertindo o comprador de que eles não têm base científica.
Esses desdobramentos internacionais têm óbvia relevância para o cenário brasileiro. A grande mídia estaria cumprindo melhor seu papel se parasse de fingir o contrário.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência