As definições de “milagre” foram atualizadas

Apocalipse Now
25 mai 2024
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Há pouco mais de 200 anos, o filósofo escocês David Hume (1711-1776) apresentou seu famoso argumento de que, para uma pessoa racional, deve ser virtualmente impossível acreditar no relato de um milagre: não importa quantas razões tenhamos para supor que a testemunha é honesta e competente, a probabilidade de ela estar enganada sobre o que aconteceu (ou de nós estarmos enganados sobre sua honestidade) tenderá a ser maior do que a da ocorrência concreta de um evento sobrenatural.

O argumento e sua conclusão sempre foram contestados por religiosos. Por exemplo, o falecido Padre Quevedo (1930-2019), jesuíta espanhol radicado no Brasil que dedicou a vida a estudar fenômenos ditos paranormais, polemiza contra Hume em seu livro “Os Milagres e a Ciência”, publicado em 1998.

Semana passada, no entanto, a Igreja Católica deu a entender – ainda que de maneira tímida, tênue e indireta – que o escocês talvez não estivesse assim tão errado.

O Dicastério para a Doutrina da Fé (mais recente rebranding do Santo Ofício, ou Santa Inquisição) publicou uma nova norma sobre a análise e avaliação de fenômenos presumivelmente milagrosos – como aparições de santos, vozes e visões, estátuas que choram – que, na prática, abole a possibilidade de que essas manifestações venham a ser declaradas oficialmente como “sobrenaturais” por alguma autoridade eclesiástica (o papa ainda pode fazer isso, mas não se espera que esse privilégio seja exercido com frequência – se é que virá a ser).

De acordo com a norma da década de 1970, até então em vigor, era possível que um evento alegadamente milagroso recebesse um selo oficial de constat de supernaturalitate (“caráter sobrenatural constatado”). Mas a partir de agora, a classificação máxima autorizada passar a ser nihil obstat (“nada impede”): autoriza os católicos a acreditar (ou não, à vontade) no caráter sobrenatural do fenômeno, e o bispo da área onde o evento se deu, a explorá-lo para propagar a fé e atrair fiéis, mas não faz nenhuma afirmação categórica a respeito de sua autenticidade. Oficialmente, a Igreja se mantém – e não estou sendo nem um pouco irônico aqui – agnóstica.

A norma anterior ainda permitia que bispos locais fizessem a determinação (constat de supernaturalitate ou non constat de supernaturalitate ) de modo independente. A nova exige que o Dicastério seja envolvido no processo.

 

Verdade estratégica

A norma é cautelosa e, em alguns pontos, escorregadia: num trecho, lê-se que no nihil obstat, “mesmo se não se emite a declaração de sobrenaturalidade sobre o próprio evento, de todo modo são reconhecidos com clareza os sinais de uma ação sobrenatural do Espírito Santo no contexto do acontecimento”, o que soa bem definitivo (“reconhecidos com clareza os sinais de uma ação sobrenatural do Espírito Santo”); em outro, insinua-se que mesmo o nihil obstat pode ser revisto ou anulado (“esta intervenção deixa naturalmente aberta a possibilidade de no futuro, prestando-se atenção ao desenvolvimento da devoção, intervir de modo diverso”).

Abaixo no nihil obstat há ainda cinco categorias, sendo as duas últimas prohibetur et obstruatur (“proibido e interditado”), em que os católicos são proibidos de se manifestar publicamente a favor da autenticidade do fenômeno; e declaratio de non supernaturalitate (“declaração de caráter não sobrenatural”), em que o fenômeno é atribuído oficialmente a causas naturais, fraude ou engano.

De um ponto de vista lógico, o novo sistema mistura e hierarquiza dois critérios que – ao menos para quem está fora do universo conceitual da teologia católica – deveriam ser tratados como independentes e ortogonais: (1) quanto o fenômeno alegado serve aos interesses e objetivos do Vaticano (manter a ortodoxia da doutrina, a unidade da Igreja, expandir e estimular a fé) e (2) quais as evidências empíricas que o apoiam.

O tom geral da norma é de que, exceto em casos em que a evidência empírica de fraude ou engano seja ostensiva, escandalosa e óbvia, o critério (1) sempre deve triunfar sobre o (2). De fato, o texto indica que, mesmo nas situações em que evidência científica sólida aponte causas ordinárias para o evento deflagrador, “um nihil obstat permite aos pastores agirem (...) no acolhimento dos dons do Espírito Santo, que podem brotar em meio a estes fatos”. Esse “em meio”, assim como a expressão “no contexto do acontecimento”, citada antes, efetivamente desloca a ênfase da análise, da ocorrência extraordinária em si, para as consequências sociais e religiosas que produz.

Se os caminhos do Senhor são inescrutáveis, por que ele não poderia usar a ambiguidade entre a interpretação natural e sobrenatural de um fenômeno para seus próprios fins? Os fatos concretos do caso são um mero detalhe em comparação aos “frutos” que geram. Como diz a introdução da norma:

“A maior parte dos Santuários, que hoje são lugares privilegiados da piedade popular do Povo de Deus, não teve jamais, no curso da devoção que ali se exprime, uma declaração de sobrenaturalidade dos fatos que deram origem àquela devoção”.

Uma declaratio de non supernaturalitate, por sua vez, só pode ser feita com base em “fatos e evidências concretos e provados”. Dada a clássica dificuldade de se provar uma negativa, a intenção de manter acesa a chama do sobrenatural como intrigante possibilidade, sempre que conveniente, é clara.

Nesse aspecto, a nova norma se aproxima do conceito de “verdade estratégica” de Michel Foucault (1926-1984), outro autor cujas ideias, assim como as de Hume, oferecem um paralelo curioso para com o conteúdo deste recente documento da Santa Sé. Em “A Sociedade Deve Ser Defendida”, Foucault sugere que, para o militante político, o único emprego da verdade é como arma – a verdade deve ser valorizada (ou não) na medida em que serve (ou não) à causa: “Se ele menciona a verdade, é aquela verdade estratégica, relativa, que lhe permite conquistar a vitória”.

 

Lacunas estreitas

A palavra “científico” aparece três vezes na nova norma, incluindo a instrução para que testes laboratoriais sejam conduzidos quando o suposto milagre envolver objetos físicos, como estátuas ou hóstias (que devem, no entanto, ser testadas com o devido respeito e devoção – condições que, dependendo da interpretação dada a “respeito” e “devoção”, podem ser difíceis de conciliar com as necessidades analíticas). De qualquer forma, a preocupação científica está subordinada à doutrinária.

Essa subordinação, assim como o uso da verdade estratégica, faz sentido no contexto de uma organização religiosa, que afinal já se acredita de posse daquela outra Verdade, a com “V” maiúsculo. Adequação empírica – consistência entre a interpretação dada a um evento e os fatos do mundo – é, em tese, supérflua para quem acredita dispor de uma régua transcendental, mais sólida e confiável do que os meros fatos da matéria.

O problema é que a tese não funciona muito bem no dia a dia: quando se deixa de calibrar hipóteses pela realidade concreta, quando se abre mão da adequação empírica, entra-se no mundo da fantasia e do vale-tudo. As leis da física são iguais para todos, mas réguas transcendentais – mesmo as tiradas de um mesmo molde, como a doutrina católica – são altamente personalizadas. O comunicado à imprensa da Santa Sé sobre a nova norma alude a esse ponto:

“O documento tem origem na longa experiência do século passado, que viu casos em que o bispo local (ou os bispos de uma região) declarou apressadamente a natureza sobrenatural de um fenômeno, apenas para o Santo Ofício expressar mais tarde uma decisão diferente. Outros casos envolveram um bispo dizendo uma coisa e o seu sucessor decidindo o contrário (em relação ao mesmo fenômeno)”.

A troca do constat de supernaturalitate pelo nihil obstat pode ser lida de várias formas. A mais óbvia é como manobra de relações públicas, com o duplo objetivo de acelerar a exploração de fenômenos que sirvam como foco de devoção (e que não precisam mais ser “sobrenaturais” para serem aproveitados) e de evitar contradições e constrangimentos – porque, em geral, uma hora a ciência aparece para estragar a festa. No entanto, mesmo com o papa preservando a prerrogativa formal de, eventualmente, declarar um fenômeno sobrenatural, é difícil não ver (mais um) recuo do suposto poder da fé diante da incômoda força das evidências – e uma vitória silenciosa do princípio de Hume.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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