Um grupo de pesquisadores americanos anuncia que desenvolveu “mecanismos seguros para fixar” um ser humano vivo, mantendo-o preso a uma cruz de tamanho real, com o objetivo de determinar se os fluxos de sangue que aparecem no Sudário de Turim (ou “Santo Sudário”, como querem alguns) correspondem às marcas de uma hemorragia real, numa vítima real de crucificação. O experimento é uma resposta a uma simulação anterior que determinou que os fluxos de sangue na imagem “não são realistas”.
Para quem não conhece, o Sudário de Turim é um pedaço retangular de pano onde se pode ver a imagem tênue de um homem magro, cabeludo e barbudo, frente e verso. Um dado curioso é que a imagem aparece mais bem-definida quando vista em negativo fotográfico do que em sua coloração original. Alguns devotos católicos acreditam que se trata da mortalha que envolveu Jesus após a crucificação, mas a Igreja Católica, enquanto instituição, não tem opinião oficial a respeito. O consenso científico é que se trata de uma pintura, realizada por um artista anônimo, por volta de 1350.
O objetivo expresso dessa crucificação simulada (cujos resultados serão apresentados nesta semana, durante a 71ª Reunião Científica da Academia de Ciências Forenses dos Estados Unidos) é demonstrar técnicas úteis para arqueologia forense, para a perícia criminal em geral e, por último mas não menos importante, para a compreensão do suplício da cruz, tal como praticado pelo Império Romano.
O objetivo real é, claro, oferecer um novo sopro de vida à hipótese, totalmente desacreditada, de que o Sudário de Turim é mesmo o pano que envolveu o corpo de um judeu executado – o próprio Jesus de Nazaré, talvez! – pelos romanos na Palestina, quase 2.000 anos atrás. Como escrevem os autores, mal conseguindo se conter, no abstract: “foram obtidas conclusões que parecem apoiar a hipótese de autenticidade do Sudário”.
O presente autor já produziu mais textos sobre o tal Sudário do que gostaria de se lembrar, mas a mensagem fundamental é: não existe motivo racional para pôr em dúvida os resultados dos testes de carbono 14 realizados no século passado e publicados na revista Nature em 1989. E esses testes indicam que o sudário é uma pintura produzida entre 1260 e 1390.
As críticas à datação de 89 que mais espaço ganharam na mídia são fáceis de debelar.
Uma diz respeito a uma suposta contaminação das amostras por material biológico mais recente. Mas o artigo na Nature declara explicitamente que todas as amostras foram purificadas “química e mecanicamente”, inclusive com uso de microscópio para detecção de contaminantes. Além disso, o teste de radiocarbono foi conduzido por três diferentes laboratórios, e envolveu ainda amostras de controle, todas corretamente datadas.
Outra crítica alega que as amostras foram retiradas não do Sudário propriamente dito, mas de um remendo ou de um “reparo invisível” feito com fibras medievais. Essa acusação também não tem substância: não só o ponto de origem das amostras foi cuidadosamente selecionado por especialistas, como os supostos indícios de reparos no Sudário são ilusórios (mais informação a respeito, aqui e aqui).
Também é importante notar que o resultado do teste de 1989 é coerente com a história da suposta relíquia. A peça hoje conhecida como “Sudário de Turim” aparece pela primeira vez na cidade de Lirey, na França, em 1356. Alguns autores, como o britânico Ian Wilson, chegaram a sugerir que o pano de Lirey era, na verdade, uma antiga peça do Império Bizantino – um retrato “mágico” de Jesus – levada à Europa pelos cruzados, mas não há evidência nenhuma disso. E a narrativa é bem pouco plausível: o retrato bizantino teria sido o Sudário, dobrado e emoldurado de modo a mostrar apenas o rosto da figura, por mais de mil anos, sem que ninguém notasse.
Muito antes da datação por carbono 14, em 1903, carta enviada à mesma Nature apontava que a silhueta humana delineada no Sudário tinha anatomia consistente com uma obra de arte gótica, não com um ser humano de verdade; as proporções e o ângulo dos braços deixam isso bem claro.
De fato, a primeira investigação documentada sobre o Sudário – realizada pelo bispo local de Lirey, Henri de Poitiers, ainda no século 14 – concluiu que se tratava de uma pintura.
Há quem alegue que é impossível recriar a imagem do Sudário por meios técnicos ou artísticos, logo ela deve ser sobrenatural ou um produto de “impressão vaporográfica” (sangue, suor, urina, etc., vazando de um cadáver e marcando o pano). A explicação “vaporográfica” teve alguma voga cerca de 100 anos atrás, mas ninguém a leva mais a sério hoje em dia.
A verdade é que a imagem do Sudário não só pode ser reproduzida, como de fato já foi reproduzida um sem-número de vezes, e com diferentes técnicas (por exemplo, aqui). O que se pode dizer é que nenhuma técnica artística e manual jamais reproduzirá a imagem do Sudário exatamente e em todos os seus detalhes, mas até aí nenhuma técnica manual jamais reproduzirá nenhuma obra de arte – seja a Mona Lisa ou os rabiscos do meu sobrinho – com 100% de fidelidade, ainda mais quando se começam a levar em conta características físico-químicas peculiares, adquiridas e fixadas por vicissitudes ao longo da história particular de cada objeto.
O que deixa em aberto a questão – por que as pessoas insistem? O pano pintado de Leiry parece exercer um fascínio que transcende o poder das evidências, ou mesmo do bom-gosto e do bom senso. Não faz muito tempo, foi publicado um artigo científico sugerindo que é possível ver o contorno de um saco escrotal (!) na imagem do Sudário.
Mais do que uma relíquia, a imagem hoje guardada em Turim é um teste de Rorschach. Assim como, muito provavelmente, serão os resultados dos voluntários americanos “crucificados”. A saga da sindologia – como é chamada a “ciência” do estudo do Sudário – é a longa história de uma luta renhida contra os fatos mais evidentes. Serve de exemplo para muita coisa: trata-se de um caso-piloto, e até razoavelmente inócuo, de negacionsimo, e merece ser estudado como tal.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência