Jabuti criacionista na árvore educação

Apocalipse Now
13 abr 2024
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quelônio

 

Imagino que preparar material didático para escolas públicas nunca tenha sido tarefa simples. E que agora esteja sendo ainda mais difícil, nestes tempos de polarização raivosa, guerra cultural, escola “sem partido” e de populismo teocrático que grassa tanto à direita quanto à esquerda – o consenso dos “analistas” parece ser de que “dialogar com os evangélicos” significa tratá-los como aquela tia rica louca que não pode, em hipótese alguma, ouvir um “não”, nem mesmo um “talvez”, sob pena de dar barraco e cortar o sobrinho do novo testamento (trocadilho intencional).

Ter consciência desse cenário fez com que uma certa pena temperasse a reação indignada que tive ao encontrar propaganda criacionista num livro didático do sexto ano (para crianças, portanto, de 11 anos), produzido pela Prefeitura do Rio de Janeiro: não dá para saber se os responsáveis agiram livremente ou se foram coagidos, por forças políticas, a cometer a barbaridade. O parágrafo crucial, no alto da página 292 (História, 1º Bimestre, Bloco II) do Material Rioeduca para a turma 2024 do sexto ano, diz:

“Ainda hoje, não temos uma resposta científica definitiva sobre a origem da humanidade. Quando isso acontece, dizemos que não há consenso sobre o assunto. As possibilidades se dividem em 2 grupos principais: os criacionistas e os evolucionistas”.

Antes de colocá-lo no contexto mais geral da página em que se encontra – o que é importante para avaliar a hipótese de coação –, vamos analisar o trecho isolado. A primeira coisa a notar é que o adjetivo “definitiva”, logo no início, precisa de uma musculatura mais desenvolvida do que exibida por Arnold Schwarzenegger em “Conan, o Bárbaro”: esse “definitiva” aí escora uma falácia lógica de tonelagem quase infinita.

Afirmar que a ciência não tem uma “resposta definitiva” sobre a origem do Homo sapiens só é verdade no mesmo sentido em que a ciência não tem uma “resposta definitiva” para a questão de se estamos no mundo real ou numa simulação de computador. Ou de se os bebês são ou não trazidos por cegonhas.

O método científico jamais produz nada “definitivo”. Mas permite separar respostas boas de respostas ruins, e quando essa separação se torna clara o bastante, a melhor das respostas boas pode, sim, ser considerada, dentro de limites mais do que razoáveis, “definitiva”. Como no caso das cegonhas – ou da evolução.

E aqui chegamos ao segundo bodybuilder semântico do parágrafo, o substantivo “consenso”.  Lido como “ampla concordância de todos os que têm alguma opinião sobre o assunto”, seu uso torna verdadeira a alegação de que “não há consenso” entre evolução e criacionismo. O problema é que, nesse sentido, também é correto afirmar que não há consenso sobre a forma da Terra (redonda ou plana?), o aquecimento global ou, por falar nisso, sobre a disputa realidade vs. simulação.  Mas se lido como “ampla concordância de todos os que realmente entendem do assunto”, a alegação é claramente falsa: o consenso científico em torno da evolução é um dos mais sólidos, se não o mais sólido, de toda a Biologia.

  

Mitologia?

Falsificar a realidade científica, empurrando falácias lógicas e meias-verdades para mentes infantis impressionáveis, é uma forma de abuso intelectual. Abuso que se torna anda mais escandaloso porque cometido pelo Poder Público. Mas há conflito abaixo da superfície! O parágrafo imediatamente seguinte à monstruosidade diz o seguinte:

“Chamamos criacionistas aqueles que acreditam na criação da humanidade por um ser superior ou divindade. Estão nesse grupo os mitos de origem dos mais diversos povos e culturas”.

De repente, o criacionismo não está mais em disputa científica com a evolução. Virou uma categoria de “mitos”, ainda que, a rigor, afirmar que o grupo inclui mitos não implica que contenha apenas mitos. E vamos fazer vista grossa para o fato de que o parágrafo começa tratando “criacionistas” como um coletivo de pessoas – “aqueles que acreditam” – e em seguida os converte em um conjunto de narrativas – “estão nesse grupo os mitos”.

À luz desse trecho, a ausência de consenso, referida no parágrafo anterior da mesma página, reduz-se a puro nonsense. Dizer que não há consenso entre um fato científico e uma família de fábulas é como dizer que não existe consenso entre um prato de macarrão e um míssil nuclear. São objetos de universos tão distintos que analisá-los em termos de concordância/discordância mútua se reduz a um exercício de absurdo. É um jabuti no alto de uma árvore.

E, na página seguinte, lemos:

“Há mais ou menos seis milhões de anos, na África, a linhagem do chimpanzé e a nossa própria se dividiu. O que aconteceu conosco após a divisão? A linhagem dos hominídeos não seguiu uma linha reta até o Homo sapiens. Ao contrário, a linhagem primária de hominídeos deu origem a muitos outros (hoje extintos) hominídeos. O exame dos fósseis, artefatos e até o DNA desses parentes nos ajudou a entender como essa complexa árvore de hominídeos evoluiu e como os seres humanos modernos vieram a existir”.

O que, basicamente, varre o obsceno “blip” criacionista da página anterior para debaixo do tapete. O que está acontecendo aí? A leitura desse par de páginas deixa a mesma impressão trazida por certos manifestos de partidos políticos, resoluções de diretório acadêmico e projetos de lei: textos construídos por meio de fricção e de consensos frágeis, onde grupos com diferentes interesses lutam para encaixar, cada um, alguma frase ou parágrafo, dane-se a coerência geral. Sequestrando o jargão legislativo, o parágrafo criacionista parece um jabuti.

Seu caráter isolado e a forma incoerente, mal-ajambrada, com que foi costurado no texto não o tornam inocente. Pelo contrário, colocam-no como exemplo claro da aplicação da estratégia da cunha, definida pelo lobby criacionista americano da seguinte forma: “nossa estratégia pretende funcionar como uma ‘cunha’ que, embora relativamente pequena, pode partir o tronco [da ciência], quando aplicada a seus pontos mais fracos”.

 

Cunha

Postas lado a lado no mesmo livro didático, a “controvérsia” criacionista e a descrição sóbria da evolução dos hominídeos passam a coexistir num esquema de falsa equivalência. Podem ser tratadas com ênfases diferentes por professores diferentes, em formas retóricas diferentes.

A cunha está colocada, só falta descer o malho. Quanto a isso, é preciso admirar a forma ardilosa com que se cumpre a manobra: em nenhum momento o cristianismo evangélico fundamentalista – principal corrente ideológica interessada na falsa equivalência entre mito bíblico e fato científico – é citado. Nem o mito de criação dado como exemplo no livro didático vem da Bíblia, mas do folclore indígena (porque, claro, para essa corrente a Bíblia não é mito, é fato).

Nos Estados Unidos, terra de origem da estratégia da cunha, cientistas, políticos e juristas uniram-se para combatê-la, e conquistaram importantes vitórias. No Brasil, onde até o Supremo Tribunal Federal não vê nada errado no uso de dinheiro público para bancar propaganda religiosa em escolas e país em que, ao menos no momento, impera o paradigma da tia louca, que chama de diálogo o que na verdade é sujeição e sabujice, não é difícil prever a enxurrada de “deixa-dissos” e “há-coisas-mais-importantes” que virá dos que deveriam ser os primeiros a se insurgir, mas que desde sempre preferem a conveniência política à integridade científica. E, de passo em passo, o jabuti galga galhos cada vez mais altos.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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