Previsivelmente, chegou aquela época do ano em que é preciso falar sobre as previsões para o ano seguinte. Jornais que, na maior parte do tempo, até que são respeitáveis rendem-se ao charme russo-fascista de Baba Vanga, enquanto sites esotéricos e publicações correlatas continuam seguindo as regras de ouro da prática – preveja muito, diga o óbvio, seja vago, deixe lacunas, seja genérico. No bingo das cinco regras, proponho empate entre o “Almanaque do Pensamento 2024” e o site Personare.
Prevê o “Pensamento”:
“Podemos esperar em 2024 um ano de importantes reestruturações sociais e com maior foco no trabalho e na produtividade para melhoria dos indicadores econômicos. Haverá predisposição a corte de gastos, revisões na legislação, responsabilizações exemplares, fiscalizações e medidas mais severas para a garantia da ordem pública. Bom ano para o setor imobiliário e de infraestrutura”.
Geniais aí são as frases “trabalho (...) para a melhoria dos indicadores econômicos”. Repare que a previsão não afirma que os indicadores vão melhorar, apenas que haverá “trabalho” nesse sentido. Do mesmo modo, “predisposição a corte de gastos, revisões na legislação, responsabilizações...”. Veja que a profecia fala somente em predisposição – e, venhamos e convenhamos, o Brasil está “predisposto” a cortar gastos e mudar leis desde antes de eu nascer. A frase final sobre mercado de imóveis é um bônus, talvez a única parte moderadamente arriscada do parágrafo todo.
E o "Personare", na seção de previsões sobre “Modernização”:
“Plutão em Aquário indica uma era de intensa modernização impulsionada por avanços tecnológicos, principalmente na esfera da inteligência artificial. Este trânsito levanta questões éticas e preocupações relacionadas à segurança cibernética e ao equilíbrio entre os benefícios e riscos da tecnologia emergente. A sociedade enfrentará desafios significativos ao lidar com o impacto da inteligência artificial em diversas áreas, desde a economia até a vida cotidiana. A interseção entre Júpiter em Gêmeos e Plutão em Aquário promete uma rápida integração da inteligência artificial em vários setores, transformando a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos”.
Algumas pessoas precisam estudar a influência de Plutão em Aquário e de Júpiter em Gêmeos para concluir que inteligência artificial, seus impactos éticos, sociais e econômicos serão temas importantes em 2024. Para outras, basta ler os jornais. O trecho consegue ser ao mesmo tempo hiperbólico, óbvio (“A sociedade enfrentará desafios significativos”), vago (“uma rápida integração da inteligência artificial em vários setores”: quais?), genérico (“impacto da inteligência artificial em diversas áreas, desde a economia até a vida cotidiana”) e cheio de lacunas sugestivas abertas à interpretação subjetiva (“transformando a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos”; mas o trabalho e o relacionamento já não são parte da vida?).
Onde está o risco?
Um item, porém, que parece estar desaparecendo do cardápio dos vates de fim de ano é a previsão realmente arriscada. Antigamente, não era incomum surgirem previsões de grandes desastres, queda de aviões, terremotos, atentados e, até, de mudanças políticas radicais, feitas com grande precisão de detalhes.
Por exemplo: em janeiro 1970, o jornal O Estado de S. Paulo noticiava que o astrólogo Ernesto Fischer previa não apenas o resultado da nomeação do governador de Pernambuco (Paulo Guerra, segundo ele; na verdade, Eraldo Gueiros ficou com o cargo) como também que o presidente-ditador Emílio Garrastazu Médici trocaria oito ministros de seu governo em setembro do mesmo ano. Na verdade, o único ministro de Médici a deixar o gabinete em 1970 foi Fábio Riodi Yassuda, da pasta da Indústria e Comércio.
O cálculo por trás das previsões arriscadas é o de que, caso se confirmem, a fama do astrólogo está feita; caso se provem erradas, ninguém vai notar – quem afinal, no fim de dezembro de 1970, iria se recordar de uma nota publicada onze meses antes, em janeiro, perdida nas páginas do Estadão? Quem, fora dos arquivos e bibliotecas, teria acesso a um Estadão de quase um ano antes? A aparente morte da previsão deliberadamente arriscada talvez seja consequência do fato de que, na era da internet, nenhuma informação ou declaração jamais some de vez. Papel-jornal pode virar embrulho de peixe, mas o Google nunca esquece.
Um caso de previsão arriscada que, para azar do autor, não terminou esquecida – ao contrário, acabou imortalizada em “Prophets and Predictions” de Richard Lewinsohn, um livro clássico sobre profecias – foi feita em 1956, quando o popular astrólogo alemão Carl Heinrich Huter escreveu: “Qualquer um que olhe para o horóscopo da Rainha Elizabeth II ficará profundamente perturbado pela posição ominosa de Saturno no início da décima casa, pois todos os governantes com Saturno nessa posição foram derrubados ou abdicaram de livre e espontânea vontade. Não há nenhuma única exceção em toda a história”.
A Rainha Elizabeth II da Inglaterra, é claro, reinou até morrer em 2022. Seu filho Charles assumiu o trono em 2023, e uma astróloga previu que “ele escolherá seguir o exemplo da Rainha Elizabeth II, pelo fato de ela ter inspirado fortemente sua compreensão do mundo e lhe ensinado como ser diplomático na política”. Curiosamente, a profissional atribui o longo e bem-sucedido reinado da falecida rainha à presença de Saturno na décima casa, a mesma configuração que para Huter era sinal claro de desastre.
Pós-dição
Algo que vem ganhando cada vez mais espaço, à medida que a previsão arriscada sai de cena, é a pós-dição marota, quando uma previsão vaga e genérica é reinterpretada como previsão certeira de um evento – após o evento ter ocorrido.
Não se trata exatamente de uma inovação. Nostradamus era um mestre dessa arte, assim como os oráculos da Antiguidade – quem não se lembra da famosa profecia do Oráculo de Delfos para o rei Creso da Lídia, de que ele “destruiria um grande império” caso atacasse a Pérsia? Creso entendeu a profecia de um jeito, mas o império destruído foi o dele.
Muito do que supostamente passa por profecia bíblica funciona desse jeito, também: uma vez ocorrido um evento qualquer, alguém conclui que este ou aquele verso do livro sagrado era, na verdade, um aviso. Na prática, bem inútil – para que serve um aviso que só passa a fazer sentido depois que a coisa avisada já aconteceu? –, mas um aviso, de qualquer modo. Em tempos recentes, vimos esse truque sujo da pós-dição por releitura retroativa de enunciados vagos, ambíguos, irrelevantes ou vazios ser aplicado no caso dos ataques terroristas do Hamas a Israel.
Minha primeira previsão para 2024 é de que cada vez mais veremos pós-dições desse tipo, baseadas na manipulação seletiva de “previsões” que contêm em si todos os eventos possíveis do Universo. Minha segunda profecia é de que a imprensa, com cada vez menos jornalistas remando nas galés para gerar cada vez mais conteúdo, e cada vez mais pressionada para embarcar na farra do clickbait vai, como perdão do clichê, “mergulhar de cabeça”. Espero estar tão errado sobre isso quanto Ernesto Fischer estava sobre o governo Médici. Mas...
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)