Bobagens representam importantes e poderosos instrumentos de desinformação porque, na maior parte do tempo, passam despercebidas, voando abaixo do radar do senso crítico – parecem inofensivas: afinal, são “apenas bobagens” – e, quando finalmente se fazem notar, tende a ser pelos motivos errados: muita gente se concentra no conteúdo expresso e muitos poucos preocupam-se em explicitar o contexto. Como o satirista Jonathan Swift (1667-1745) escreveu no século 18, “a mentira voa, e a verdade é coxa; dessa forma, quando os homens são desenganados, é tarde demais, a piada acabou e o conto surtiu seu efeito”.
Um caso saliente do momento atual: a penetração, cada vez maior, na mídia ocidental (incluindo a brasileira) de profecias atribuídas à mística búlgara Vangelia Pandeva Dimitrova (ou Gushterova), a “Baba Vanga” (1911-1996), que décadas depois de morta foi transformada, pela máquina de propaganda russa, na profeta do glorioso destino imperial de Vladimir Putin (título de notícia publicada na Índia: “Blind Psychic Baba Vanga Had Predicted Vladimir Putin Would Become ‘Lord Of The World’”, ou “Vidente Cega Baba Vanga Previu que Vladimir Putin Será o ‘Rei do Mundo’”).
Em vida, Baba Vanga foi uma figura folclórica popular nos Bálcãs, como aponta esta reportagem do New York Times, publicada um ano antes de sua morte. Virtualmente analfabeta, não deixou escritos. Fez, de fato, algumas previsões em vida que ficaram famosas (como a de que a Bulgária chegaria à final da Copa do Mundo de 1994, o que não aconteceu). A partir de 2008, no entanto, listas de “profecias” apócrifas, atribuídas a ela, começaram a circular na internet, impulsionadas principalmente por Moscou.
As previsões “de Baba Vanga” disseminadas a partir da Rússia, neste século, misturam tolice aparentemente inocente, alertas de fim do mundo, tolice calculada para causar furor ideológico (como a profecia de que em 2023 as mulheres seriam proibidas de engravidar naturalmente), “pós-dições” – isto é, profecias que parecem extremamente precisas e corretas, mas que curiosamente só são divulgadas após o fato consumado (como os atentados de 11/9, ou a pandemia de COVID-19) –, desinformação política (“Barack Obama será o último presidente dos EUA”) e propaganda descarada do regime de Putin.
Dentro da Rússia, a barragem de mídia promovendo a figura de Vanga, inventando e atribuindo a ela “profecias” sobre o fim trágico dos Estados Unidos e a glória futura de Putin, é incansável, como mostra artigo publicado em 2018 no Journal of American Folklore.
Embriagada demais na farra dos cliques fáceis para se preocupar com detalhes como checagem de fatos e de fontes, a imprensa popular ocidental dissemina acriticamente as previsões mais tolas inventadas em nome de Vanga (como esta), familiarizando o público com seu nome, cercando-a da mesma aura de “não creio em bruxas, mas...” criada pelo baixo jornalismo sensacionalista em torno de figuras como Uri Geller, Nostradamus e João de Deus. No fim, abrindo caminho para a propaganda política e a desinformação que vêm embarcadas no conteúdo “místico” ou de “entretenimento”.
Batalha esotérica
O artigo no Journal of American Folklore descreve uma verdadeira guerra esotérica travada entre Rússia e Ucrânia em meio à escalada da tensão dos dois países, que acabaria desembocando na guerra iniciada ano passado. Assim como a guerra física atual, esta também foi assimétrica. Na mídia ucraniana, astrólogos especulavam sobre a saúde de Putin; na mídia russa, onde uma barragem de programas e documentários sobre Baba Vanga, todos com forte tom pró-Kremlin, vinha se desenrolando há anos, a vidente búlgara acabou sendo também mobilizada para a causa.
A autora do estudo, a folclorista Mariya Lesiv, descreve assim a estrutura de uma série documental de 2011, três anos antes do início da escalada entre os dois países:
“Testemunhos, referências recorrentes às previsões mais conhecidas atribuídas a Vanga e imagens mostrando momentos específicos de sua vida têm o objetivo de construir, gradualmente, a confiança do espectador. Perto do fim de cada documentário, uma mensagem importante sobre o futuro da Rússia aparece. Do episódio ‘Grande Vanga’, os espectadores aprendem que ‘a Rússia será a Arca de Noé’ quando apocalipse iminente ameaçar o mundo. A voz dramática da narradora, acompanhada por filmagens de Vanga, afirma que ‘mil anos de felicidade esperam [a Rússia]’ e que ‘o país será um verdadeiro paraíso terrestre’”.
Outro episódio da mesma série comentou a guerra civil na Síria.
Em 2015, com a crise entre Rússia e Ucrânia já em andamento, um canal de TV pró-governo produziu o documentário “Vanga, e agora?”, repleto de ataques à então porta-voz do Departamento de Estado americano, Jennifer Psaki, e insinuações de que Baba Vanga teria previsto uma Terceira Guerra Mundial, a ser iniciada por culpa dos EUA. “A atenção especial dedicada a Psaki explica-se pelo fato de que, em sua posição de porta-voz... havia anunciado a condenação de seu país às ações da Rússia em relação à Ucrânia”. Em outro trecho do programa, há esta narração apocalíptica, transcrita no artigo da folclorista:
“Ela [Vanga] sabia de tudo antes do tempo, mas só agora vai ficando claro aquilo de que ela tinha medo de falar. [Este segmento revela] o testamento de Vanga e a chave secreta de suas mensagens sobre o futuro: os Estados Unidos começarão a Terceira Guerra Mundial...?”
A retórica da Rússia encurralada pela agressão ocidental, que tem aparecido na arena pública sob diferentes roupagens – no discurso de certos acadêmicos, em peças de opinião na imprensa, em discussões diplomáticas etc. –, repete-se e é reforçada sob a forma de sensacionalismo esotérico. É o princípio básico da comunicação, adaptar a mensagem ao público, aplicado com máxima eficiência: a profecia atribuída a Baba Vanga dá o recado a quem o professor universitário e o editorialista não alcançam, ou para quem são irrelevantes.
Ao legitimar a “Baba Vanga” fictícia do Kremlin em suas páginas, tabloides e jornais populares do resto do mundo preparam o terreno para a desinformação política e a paranoia milenarista que flui por aplicativos de mensagem e redes sociais usando o nome da vidente ou, mesmo sem mencioná-la, os temas associados a ela na desinformação russa.
Poder social
Bobagens em geral, e o sobrenatural em particular, são inofensivas até que as pessoas passem a acreditar nelas. A crônica dos últimos 100 anos está repleta de momentos em que o senso comum, o establishment intelectual – o universo dos supostos “adultos sérios e responsáveis” – foi pego de surpresa e ficou “chocado” com a popularidade e penetração de noções “tolas demais para levar a sério”, das fantasias de Immanuel Velikovsky (1895-1979) sobre a rotação da Terra parando para ajudar os hebreus na conquista de Canaã, que deram origem a um inesperado best-seller em 1950, ao terraplanismo que explodiu na internet e o bolsonarismo que eclodiu nas ruas.
Quando bobagens se tornam populares o suficiente para reunir um número significativo de aficionados, deixa de ser polido chamá-las de bobagem, e mesmo quem talvez não as leve realmente a sério vê-se tentado a encará-las como oportunidades. Não é por nada que João de Deus gabava-se de ter acesso à cúpula da República e mantinha uma foto autografada de Luiz Inácio Lula da Silva (“ao meu amigo João”) pendurada na cena de seus crimes.
Quem, por interesse próprio, amplifica, legitima ou faz vista grossa para o poder da bobagem é corresponsável pelo uso que depois será feito desse poder – seja para iniciar guerras ou assediar vítimas –, não importa a desculpa que se dê: era pelos cliques, era pelos votos, era um bom meme etc. Performances de “surpresa” e “consternação”, depois que o dano está feito e não pode mais ser negado, não são convincentes.
Reconhecer isso já era necessário na época em que superstições, videntes e curandeiros surgiam de forma mais ou menos espontânea, e torna-se urgente no momento em que passam a ser construídos com o propósito específico de servir a projetos violentos e autoritários.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)