Todo fim de ano eu paro para pensar se devo ou não escrever (mais um) artigo sobre profecias de Ano Novo. Minha intuição inicial é sempre a de que o tema está batido, ninguém mais aguenta ler a respeito – tenho plena consciência de que, basicamente, reescrevo o mesmo texto a cada 12 meses.
Mas aí me aparece o F5 (aquela seção online da Folha de S.Paulo de que os jornalistas da Folha morrem de vergonha) fazendo horóscopo de pré-candidatos à Presidência da República, ou O Globo publicando vaticínios atribuídos a uma suposta vidente cuja história já foi desmentida pelo e-Farsas (há seis anos!), e percebo que a redundância segue sendo necessária.
Mais do que isso: até alguns anos atrás, tinha a impressão de que essas histórias de profecia de Ano Novo eram um mero reflexo da silly season (“temporada de tolice”), aquele momento em que o jornalismo fica sem assunto porque o Congresso está parado, os governantes estão de férias, as empresas estão em recesso, as fontes viajaram para a praia e não atendem mais ao telefone – enfim, muito espaço a preencher, pouco assunto.
No entanto, a continuidade da pandemia – ainda mais, com o surgimento da variante ômicron – somada às atrocidades seguidas cometidas pelo ministro da Saúde basicamente acabam com a desculpa da silly season. Esoterismo de fim de ano não é mais tapa-buraco, virou vício.
Mas, enfim: entrando no espírito faça-você-mesmo, tão caro ao mundo virtual, desta vez vou deixar um guia passo a passo para que você mesmo, leitor, possa gerar suas próprias profecias de Ano Novo, guardá-las até janeiro de 2023 e depois ver como se saiu, na comparação com os “profissionais” consultados pela mídia que gosta de dizer que merece ser levada a sério (e até merece na maior parte do tempo, mas...).
O gabarito é o seguinte:
Preveja muito
Quantidade é o melhor escudo. Chutando para todo lado, uma hora você acaba acertando alguma coisa – seja a morte da rainha da Inglaterra (que vem sendo prevista desde a década de 50) ou o resultado da eleição presidencial. Se alguma de suas previsões mais ousadas se confirmar, por puro acaso, você está com a reputação feita para o resto da vida, tornando-se alvo de convites intermináveis para dar palestras, aparecer em documentários e falar em talk-shows e programas de domingo à noite como o “vidente que previu a queda do avião presidencial”, mesmo que todas as suas demais profecias tenham sido vexames homéricos.
Diga o óbvio
Os esotéricos convidados pelo F5 para palpitar sobre os presidenciáveis de 2022 avisam que Lula e Jair Bolsonaro devem “dar atenção à saúde”. Mas, jura? Dois senhores de uma certa idade (Lula tem 76 anos, Bolsonaro, 66), com complicações prévias – Lula enfrentou um câncer, Bolsonaro sofreu a facada – devem “dar atenção à saúde”, ainda mais em meio ao estresse de uma campanha eleitoral? Ah, vá. Quem diria. Outra pérola da obviedade: Bolsonaro "vai conseguir muitos votos" em 2022.
O site Personare, por sua vez, oferece esta flor de sabedoria para o ano que vem: “a quadratura entre Saturno e Plutão ainda se faz presente, indicando muita tensão, polarização e radicalismo”. Espantoso alguém sentir a necessidade de ir em busca de Saturno e Plutão para poder imaginar que um ano eleitoral, nas condições atuais do Brasil, terá polarização e radicalismo.
Seja vago
Perceba que “muitos” (no contexto da votação de Bolsonaro) é uma expressão altamente subjetiva. Qualquer quantidade de votos acima de 1% será considerada “muitos” por alguém. O mesmo grau de liberdade interpretativa se aplica à expressão, altamente ambígua, “dar atenção à saúde”, aplicada aos candidatos. Note que os videntes não cravaram que os candidatos terão problemas nessa área. A rigor, nem se trata de uma previsão. Mas se Lula ou Bolsonaro sofrerem algum percalço, a ambiguidade é retroativamente interpretada como vaticínio; se não, bom, talvez seja porque eles ouviram o conselho dos magos e tomaram as devidas precauções.
Deixe lacunas
Um dos melhores amigos do esotérico profissional é a validação subjetiva, a tendência psicológica que temos de, quase sem perceber, usar nossas experiências pessoais para preencher lacunas em afirmações que são, a rigor, genéricas e vazias de significado objetivo. Um exemplo é a previsão para 2022 do site Personare: “as previsões para 2022, segundo a Astrologia, indicam que vem aí um ano quente, com muitas coisas começando, novas frentes se abrindo e mais oportunidades”. Qualquer coisa, de trocar de namorado a adotar um gatinho a mudar de emprego se encaixa aí. Qualquer um, exceto talvez um prisioneiro trancado numa solitária, viverá algo que vai validar a previsão.
O mesmo Personare oferece a seguinte profecia para nativos de Touro: “No trabalho, questionamentos podem surgir e você pode perceber que quer algo novo. Pode haver sobrecarga, estresse e insônia. Atenção! A sua palavra do ano é reciprocidade. Aproveite”. Além da presença dominante do verbo “poder”, da expressão ambígua “algo novo” (um cargo? Um horário? Uma sala? Um destino de férias? Mudar de empresa?), a frase “palavra do ano é reciprocidade” praticamente implora por validação subjetiva.
Seja genérico
Somando os aspectos de obviedade, vagueza e lacunas subjetivas, chegamos ao princípio da generalidade. Um exemplo perfeito: no ano passado, ao publicar suas previsões astrológicas para 2021, a revista Cláudia oferecia este conselho às nativas de Gêmeos: “Será um ano de emoções, com alguns altos e baixos. Surgirão oportunidades e desafios também. Para ir além, as geminianas terão que desenvolver o foco e se dedicar”. Isso mistura algo que é verdade o tempo todo para todo mundo (que ano não tem emoções, desafios, altos e baixos?) a um clichê de autoajuda que tem aceitação quase universal (superar problemas requer “foco” e “dedicação”).
Em suma, o bom profeta é aquele que prevê muito, misturando generalidades óbvias, que além de propor o jogo da validação subjetiva ainda faz com que o público se sinta acalentado e reconfortado, a algumas previsões objetivas “arriscadas”, que caso se concretizem transformarão o vate em celebridade instantânea. Acertar o tom da parte óbvia e genérica requer um pouco de treino, inclusive para superar o senso de ridículo, mas não é difícil – os fãs desse tipo de conteúdo têm ficado menos exigentes com o passar do tempo. Que tal tentar?
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)