Fantasmas elétricos

Apocalipse Now
14 out 2023
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Thomas Alva Edison

 

O início do movimento espiritista moderno costuma ser traçado à suposta comunicação mediúnica estabelecida pelas irmãs Maggie e Kate Fox no ano de 1848, em sua casa na cidade de Hydesville, Nova York. As irmãs faziam perguntas aos espíritos, que respondiam usando batidas nas paredes e nos móveis. A novidade de que almas desencarnadas podiam comunicar-se com os vivos usando peças de mobília como instrumentos de percussão logo se espalhou e, no rastro da fama das irmãs Fox, membros da recém-criada profissão de médium passaram a estabelecer códigos baseados no fenômeno – por exemplo, uma batida para “sim”, duas para “não”, três para “não sei” ou “não entendi” – como modo de facilitar o diálogo com o Além.

Pondo de lado, por um momento, a série de confissões e exibições que mais tarde demonstrou que a “Revelação de Hydesville” havia sido uma fraude (a bibliografia a respeito é imensa, mas um ótimo resumo pode ser encontrado no livro “The Sipritualists”, da historiadora Ruth Brandon), vista no contexto da longa história de fantasmas e assombrações, a noção de um espírito manter-se invisível e comunicar-se por meio de um código percussivo não deixa de ser peculiar. Em tempos pré-modernos, fantasmas não só desfilavam diante dos olhos dos vivos, como articulavam seus desejos e intenções em palavras muitíssimo claras. No caso bíblico da Bruxa de Endor (1 Samuel 28), o espírito do profeta Samuel aparece e fala de modo nada ambíguo, para profundo desgosto do rei Saul.  

A inspiração das batidas da fantasmagoria moderna talvez esteja num desenvolvimento tecnológico. Em 1844, anos antes do início da carreira das irmãs Fox, Samuel Morse havia feito a primeira demonstração de seu telégrafo, enviando uma mensagem-teste de Washington a Baltimore. O Código Morse é, claro, baseado em batidas curtas e longas – pontos e traços – e, após os eventos de Hydesville, a metáfora da “comunicação telegráfica com os mortos” logo tornou-se clichê. É possível, no entanto, que a conexão tenha nascido não a posteriori, na cabeça de algum jornalista, mas ocorrido às próprias irmãs, antes mesmo de a primeira batida se fazer ouvir.

 

Tecnologia e sobrenatural

Na prática e na realidade, telecomunicação eletrônica e comunicação com os mortos são coisas tão distintas quanto aviões e tapetes voadores. Mas, no mundo subjetivo dos afetos e da imaginação, é fácil construir pontes entre os dois conceitos: ambos envolvem mensagens que parecem surgir do próprio ar, vindas de alguma fonte distante ou invisível, produzidas e transmitidas via técnicas e energias que parecem mágica. De certo modo, portanto, a invenção do telégrafo torna o fantasma percussionista e seu código de batidas plausíveis para a apreensão intuitiva.

Esse fenômeno – em que a expansão tecnológica das possibilidades humanas acaba servindo de desculpa ou plataforma para a promoção do paranormal e do sobrenatural – vai acompanhar toda a história não só dos meios de comunicação eletrônicos, como também a das tecnologias de registro de som e imagem, como o fonógrafo e a fotografia.

O uso de termos como “magnetismo” (ou, mais tarde, “eletromagnetismo”) como sinônimos de algum tipo de força mágica ou mitológica remonta pelo menos ao século 18, e  os últimos 150 anos estão repletos de casos de mortos que falam ao telefone, que são ouvidos na estática das estações de rádio, que aparecem na televisão ou são captados por contadores Geiger, equipamentos que detectam radiação ionizante. Nas próximas semanas, em comemoração do mês do Halloween, pretendo analisar alguns casos especiais que surgiram dentro dessa tendência, mas hoje vou me ater a uma história envolvendo o inventor quintessencial da Era da Eletricidade, Thomas Alva Edison.

 

O fantasma “científico”

Edison inventara o fonógrafo – dispositivo mecânico que permitia usar um estilete ou agulha para registrar sons num cilindro de alumínio ou de cera, depois em discos – em 1877 (a imagem que ilustra este artigo é uma foto de Edison posando junto de um modelo inicial de fonógrafo). Em 1901, o antropólogo Waldemar Borogas usou um desses equipamentos para registrar mitos, música e rituais de uma tribo da Sibéria. Há uma lenda, repetida em vários livros de referência sobre mediunidade e tecnologia, afirmando que alguns desses registros haviam captado vozes de espíritos; mas até onde fui capaz de conferir, nenhuma alegação do tipo aparece na obra publicada de Borogas.

Em outubro de 1920 e novamente em janeiro de 1921, o próprio Thomas Edison concedeu um par de entrevistas – à revista Scientific American (SciAm) e ao jornal The New York Times (NYT), respectivamente – em que afirmava estar trabalhando num mecanismo para estabelecer comunicação com os mortos. “Agora, o que me proponho a fazer é equipar os investigadores psíquicos com um aparelho que dará um aspecto científico a seu trabalho”, disse ele à SciAm, depois de fazer pouco caso dos métodos convencionais de contato mediúnico, como a tábua ouija ou as batidas em mesas. Ele elabora:

“Na verdade, é a crueza dos métodos atuais que me faz duvidar da autenticidade das supostas comunicações com pessoas falecidas. Por que personalidades, em outra existência ou esfera, deveriam gastar tempo movendo um pequeno triângulo de madeira sobre um tabuleiro com certas letras? Por que tais personalidades fariam brincadeiras com uma mesa? Isso tudo me parece tão infantil que, francamente, não consigo levar minimamente a sério”.

Há muito material para psicólogos e sociólogos aí – começando pela pergunta, por que fenômenos registrados num equipamento elétrico ou mecânico, como o que Edison se propunha a construir, seriam mais “científicos” do que os obtidos por tábuas ouija ou mesas semoventes? Se a questão é de truque ou autoengano, sem planejamento, controles e métodos adequados, equipamentos de laboratório são tão vulneráveis a incompetência e fraude quanto peças de mobília e jogos de tabuleiro. O adjetivo “científico”, aí, é mais fetiche do que qualquer outra coisa, um tipo de uso que é marca registrada da pseudociência.

 

Unidades vitais

Edison nunca chegou a descrever em detalhes o aparato que tinha em mente. Depois de sua morte, em 1931, nenhum protótipo, esquema ou texto a respeito foi encontrado no espólio. Pelas pistas deixadas nas entrevistas, ele parecia estar pensando em algum tipo de amplificador de sinal – algo que seria capaz de “aumentar o volume” de estímulos mínimos, fazendo com que se tornassem claramente perceptíveis. O que isso teria a ver com comunicação espiritual? Nas mesmas entrevistas, o inventor descreve sua hipótese de que a vida de cada indivíduo é formada por centenas de milhares de “unidades vitais” que se concentram no ser, enquanto vivo, e se dispersam quando ele morre.

Talvez a ideia do amplificador fosse permitir que essas unidades vitais se expressassem. O problema é que, sem estabelecer de modo independente a real existência das unidades, ou ao menos criar hipóteses falseáveis sobre as propriedades que deveriam ter, trabalhar para oferecer a elas um meio de comunicação é como tentar telefonar para a Fada dos Dentes, ou chamá-la para uma conversa na tábua ouija. Essa lógica viciada é algo que vamos encontrar seguidas vezes ao longo dos próximos artigos.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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