Por instigação da adolescente da família, semana passada assisti ao filme Veronica, terror espanhol de 2017 dirigido por Paco Plaza, escrito por Fernando Navarro e disponível na Netflix. Para um velho apreciador do gênero como eu, a película oscila entre o divertido involuntário e o decepcionante: Veronica é basicamente um caldo ralo onde se diluem tropos, sustos e soluções narrativas que já vimos em O Exorcista (William Friedkin, 1973), ou em Poltergeist (Tobe Hooper, 1983) ou em Sinais (M. Night Shyamalan, 2002), para ficar só nos itens mais salientes da lista, que é interminável.
Há momentos em que roteiro e direção parecem considerar a possibilidade de fazer crítica social ou buscar um aprofundamento psicológico das personagens. Chegam perto, mas apenas para recuar, horrorizados, diante de tamanha abominação. Sempre há um vulto espectral no corredor ou um aparelho de TV que se liga sozinho para matar qualquer pretensão de originalidade, mantendo o filme trancado na gaveta do terror adolescente genérico.
Não sei se faz sentido falar em spoilers ao tratar de uma obra tão derivativa e previsível, mas enfim: se você liga para isso, esteja avisado de que, a partir daqui, podem aparecer alguns. Assim como Exorcista e Poltergeist, Veronica se apresenta como “baseado em fatos reais”. Assim como Exorcista e uma infinidade de outros filmes, tudo começa com o “uso irresponsável” de um Tabuleiro Ouija. Que é a coisa mais interessante da história.
Brinquedo patenteado
O instrumento chamado originalmente “Tabuleiro da Sorte Egípcio ou Ouija” foi patenteado nos Estados Unidos, classificado na categoria “jogos e brinquedos”, por Elijah Jefferson Bond (1847-1921) em fevereiro de 1891. Diz a patente:
“O objeto da invenção é produzir um brinquedo ou jogo por meio do qual duas ou mais pessoas possam se divertir fazendo perguntas de qualquer tipo e tê-las respondidas pelo dispositivo usado e operado pelo toque da mão, de modo que as respostas sejam designadas por letras numa tábua”.
O tabuleiro Ouija original era formado por duas peças de madeira. Uma, a principal, consistia em um retângulo onde se viam as letras do alfabeto, os algarismos de 0 a 9, as palavras “Sim” e “Não”, a palavra “adeus” e uma Lua e um Sol estilizados. A outra era um ponteiro — na patente de 1891, um disco, capaz de deslizar livremente sobre o tabuleiro principal, do qual partia uma protuberância triangular, como uma seta. Um operador deveria apoiar a mão, levemente, sobre o disco, que então iria se mover sobre o tabuleiro, a ponta da seta indicando letras, números, etc.
Embora Bond tenha sido o autor da patente original — e o desenho de um tabuleiro Ouija (o nome vem da combinação das palavras “oui” e “ja”, respectivamente francês e alemão para “sim”) adorne a lápide de seu túmulo —, o verdadeiro responsável pelo desenvolvimento, popularização e comercialização do brinquedo foi William Fuld (1870-1927), que em 1892 assumiu o controle da empresa para a qual Bond havia vendido os direitos de sua criação. Fuld patenteou, em seu nome, uma série de “aperfeiçoamentos” do brinquedo, principalmente do dispositivo apontador, que com o tempo ganharia o nome de planchette (“prancheta”).
A primeira patente de plachette concedida em nome de Fuld, em 1892, já explicava o mecanismo de ação:
“Agora faz-se uma pergunta, e pelo movimento muscular involuntário das mãos dos jogadores, ou por alguma outra agência, o esquadro começará a deslocar-se sobre o tabuleiro”.
“Alguma outra agência” era, claro, um aceno pouco sutil de Fuld ao uso da Ouija em círculos espiritualistas. Mas a primeira opção, “movimento involuntário das mãos”, descreve corretamente o que se passa.
Fantasmas?
A associação folclórica com “espíritos” faz da Ouija um clichê comum em filmes de terror. Ali, inevitavelmente, o uso irresponsável do tabuleiro abre as portas do nosso mundo para convidados aterrorizantes vindos dos Além.
O tropo das amigas (por algum motivo, em geral são meninas nessas histórias) que, sem querer, manifestam um espírito indesejável por meio da Ouija aparece até mesmo na “Encyclopedia of Urban Legends” organizada pelo folclorista americano Jan Brunvand. Citando uma coleção de mitos contemporâneos da Bélgica, Brunvand menciona o conto “Het was de moeder van Lotte” (“Era a Mãe de Lotte”), sobre “um grupo de garotas que, brincando com um tabuleiro Ouija, assusta-se quando acidentalmente invoca o espírito da mãe de uma colega de classe, que cometera suicídio”.
É, claro, mais do que provável que a ideia de desenvolver o tabuleiro como produto comercial, no fim do século 19, tenha sido sugerida pela popularidade, na época, de fenômenos supostamente espiritualistas, como as mesas dançantes, que operavam da seguinte forma: um grupo de pessoas deveria sentar-se ao redor do móvel, e apoiar as mãos sobre ele. Depois de algum tempo, a mesa começaria a ser mover — inclinando-se ou até mesmo girando e deslocando-se pela sala.
Experimentos cuidadosos conduzidos por cientistas como Michael Faraday (1791-1867), no entanto, logo demonstraram que as mesas dançantes estavam respondendo não a fluidos ou forças espirituais, mas à atividade muscular involuntária das mãos dos participantes da brincadeira. O mesmo vale para a planchette. Os movimentos, muitas vezes imperceptíveis e realizados de modo inconsciente, são guiados pelas crenças e expectativas dos envolvidos.
Netuno e Plutão
Evidência disso é o fato de que, quando as crenças e expectativas mudam, a natureza das mensagens obtidas por arranjos tipo Ouija também muda, e a transformação pode ser bem radical. Usando um copo emborcado para fazer as vezes de planchette e letras dispostas em padrão circular numa folha de papel, o ufólogo americano George Hunt Williamson (1926-1986) conseguiu contato não com almas desencarnadas ou demônios, mas com habitantes de outros planetas do Sistema Solar. Em seu livro “The Saucers Speak: Calling All Occupants of Interplanetary Craft” (“Os Discos Falam: Chamando Todos os Tripulantes de Naves Interplanetárias”), Wilson descreve o aparato da seguinte forma:
“… fizemos o que depois chamamos de ‘tabuleiro’. Consistia de letras e números, além das palavras ‘Sim’ e ’Não’, um sinal de mais no lado direito e um de menos, no esquerdo (…) pusemos um copo de vidro de ponta cabeça e o usamos como ‘localizador’”.
Um dos alienígenas contatados por esse sistema identificou-se como Zo, natural de Netuno, mas a caminho de Plutão. Manifestando-se na noite de 17 de agosto de 1952, Zo informava que
“Plutão não é o planeta frio e desolado que seus astrônomos imaginam. Mercúrio não é quente e desértico. Se vocês entendessem o magnetismo, veriam por que todos os planetas têm praticamente a mesma temperatura, independentemente da distância que os separa do grande corpo solar”.
A mensagem de Zo alerta que “a Terra regride, guerras demais” e segue com uma frase críptica
“Para maçãs nós salgamos, nós retornamos. Vocês talvez não entendam esta estranha fala agora, mas um dia entenderão. Ela vem de uma de nossas velhas lendas proféticas”.
O caso de Williamson é interessante não só por exemplificar à perfeição o modo como as produções de instrumentos como Ouija e assemelhados dependem do esquema de crenças de quem os utiliza, como também porque vem se somar a outras instâncias de acesso visionário ao Sistema Solar, como as viagens espirituais de Emanuel Swedenborg (1688-1772) pelos planetas, ou as aventuras marcianas psicografadas pela médium Catherine-Elise Müller (“Hélène Smith”) (1861-1929), que prometem antecipar descobertas científicas mas, no fim, só refletem a cultura da época em que foram escritas e as preferências pessoais de seus autores, todos muito vivos, terráqueos e humanos.
Fantasmas demais
Segundo a enciclopédia “Spirit Possession Around the World”, as vendas de tábuas Ouija dispararam nos Estados Unidos em 1929, no início da Grande Depressão, e depois novamente em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1966 os direitos do brinquedo passaram para a empresa Parker Brothers, que em 1991 foi absorvida pela Hasbro, uma gigante do setor. A Hasbro ainda hoje produz e vende a Ouija (com o slogan “oráculo mistificador”) como um jogo de tabuleiro recomendado para maiores de oito anos.
Em Veronica, as personagens usam um tabuleiro Ouija mas não a planchette; em vez disso, valem-se de um copo, virado para baixo, como no caso do ufólogo George Williamson. Essa é uma prática comum também no Brasil, onde na maioria das vezes se dispensa, como fez Williamson, até o tabuleiro pré-fabricado: usam-se, em seu lugar, pedaços de papel, com letras e números escritos, dispostos em semicírculo sobre uma mesa. Essa é a “brincadeira do copo”, que já comentamos e explicamos em um artigo anterior.
Infelizmente, a despeito de o fenômeno responsável pelas “mensagens” do tabuleiro já ter sido desvendado há mais de cem anos, o folclore do contato espiritual/demoníaco/alienígena não só persiste como é alimentado por certas autoridades religiosas. Em seu livro “An Exorcist Explains the Demonic” (“Um Exorcista Explica o Demoníaco”), o padre católico italiano Gabrielle Amorth (1925-2016), o “exorcista do Vaticano”, afirma que “as almas supostamente evocadas” em procedimentos como o jogo Ouija “são na realidade espíritos imundos”.
Ataque zumbi
E voltamos a Veronica. O filme explora ainda outro clichê do cinema de terror, o da regra quebrada — nunca convide um vampiro para entrar na sua casa, nunca viole o sarcófago da múmia, etc. No caso, a regra que, violada, parece desencadear toda a tragédia é nunca encerrar uma sessão de tabuleiro Ouija sem se despedir formalmente do espírito: senão, ele fica.
Um aspecto interessante do roteiro, nesse contexto, é que o tabuleiro Ouija usado pela protagonista Veronica não é (como no caso de tantas outras histórias) uma velha relíquia de família, esquecida no porão (ou plantada ali de propósito pelo demônio) e talvez dotada de poderes especiais próprios, mas um brinquedo genérico, que vem de brinde junto com um dos fascículos de uma enciclopédia popular de ocultismo, vendida em banca de jornal.
Supondo que milhares de exemplares tenham sido vendidos, a maioria para adolescentes curiosos, é altamente improvável que Veronica tenha sido a única compradora a se esquecer da despedida ritual; o que sugere que a Espanha deve estar sendo assolada por uma epidemia de espíritos imundos evocados por engano e não corretamente dispensados.
Fãs do filme poderão contrapor que a regra quebrada é apenas um dos fatores a influir no ataque demoníaco — há ainda um eclipse solar e os problemas peculiares da família da protagonista, entre outras coisas. Mesmo assim, fica aberta a brecha para Veronica 2 — Epidemia de Zumbis.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)