O curta-metragem de fantasia, quase um conto de fadas, dirigido por Wes Anderson para Netflix, “A Incrível História de Henry Sugar”, vem recebendo inúmeros (e merecidíssimos) elogios, e embora muitos dos comentários a respeito do filme mencionem sua inspiração no conto homônimo de Roald Dahl, não me parece que ninguém tenha, até o momento, mencionado onde o próprio Dahl foi se inspirar.
“Henry Sugar”, o conto, foi publicado em 1977. Mais de vinte anos antes, em 1952, o autor havia escrito uma peça de não ficção, o artigo “The Amazing Eyes of Kuda Bux” (“Os Olhos Espantosos de Kuda Bux”), sobre um ilusionista paquistanês que em 1935, na Inglaterra, havia se submetido a testes científicos para “comprovar” seu suposto poder de enxergar com os olhos vendados. A fantasia narrada em “Henry Sugar” representa, sob muitos aspectos, uma recriação e extrapolação ficcional dos fatos envolvendo Kuda Bux.
O experimento real com Bux foi comandado pelo “caça-fantasmas” profissional Harry Price (de quem já falamos em outras oportunidades) e, para surpresa de ninguém, a conclusão foi de que o voluntário era um artista talentoso, que dominava muito bem o truque de olhar pelo vão entre as ataduras e as laterais do nariz: qualquer criança que brinque com alguma frequência de cabra-cega descobre, cedo ou tarde, que é relativamente fácil enxergar por baixo da venda, erguendo um pouco a cabeça e mirando a vista nariz abaixo. De fato, Kuda Bux dizia enxergar com as narinas, o que usava como desculpa para não se deixar testar com um saco opaco cobrindo toda a cabeça. A foto que ilustra este artigo mostra uma das etapas do teste – Bux, caso alguém esteja se perguntando, é o cavalheiro com a cabeça toda envelopada em gaze.
Espiadela nasal, no entanto, é apenas o mais básico dos truques usados por gente que alega ter “olhos de raios X” ou “visão dermo-óptica” ou “extra-retinal”, entre outros nomes. Versões mais sofisticadas e os princípios gerais que permitem operacionalizar o efeito, mesmo em condições aparentemente adversas, são discutidos amiúde em livros-texto de ilusionismo. “Olhos de Raios X e Efeitos de Olhos Vendados” é o nome da lição 77 do famoso curso de mágica do Dr. Harlan Tabell, por exemplo.
Meninas de Moscou
Seria de se esperar que um truque tão manjado, descrito à exaustão na literatura e conhecido por todos os profissionais do ramo, estivesse já restrito aos palcos e salas de espetáculo: ninguém, afinal, sai por aí dizendo que realmente tem o poder de serrar uma mulher ao meio. Mas não só volta e meia surgem charlatões alegando que, por alguma razão pseudocientífica – seja o poder de detectar luz com a pele, ou de receber impressões mentais –, são capazes de enxergar com os olhos vendados, como também não faltam cientistas que se dispõem a levá-los a sério.
Na década de 1960 houve, na União Soviética, uma verdadeira epidemia de mulheres supostamente dotadas do poder de “enxergar sem os olhos”. Os maiores expoentes foram Rosa Kuleshova e Ninel Kulagina. Para não ficar atrás (eram tempos de Guerra Fria, afinal) os Estados Unidos logo viram emergir versões domésticas, das quais o mágico Milbourne Christopher destaca, no livro “Mediums, Mystics and the Occult” (“Médiuns, Místicos e o Oculto”), Patricia Stanley e Linda Anderson; esta última, uma menina de 15 anos que, hipnotizada pelo pai, aparentemente tornava-se capaz de ver com os olhos vendados (corria o ano de 1964). Mas, quando as pálpebras de Linda eram fechadas com fita adesiva – e um corante, aplicado para evidenciar qualquer tentativa de desfazer ou afrouxar lacre –, o poder desaparecia.
Em artigo publicado na Science em 1966, depois reproduzido em seu livro “Science: Good, Bad and Bogus” (“Ciência: Boa, Ruim e Falsa”), Martin Gardner descreve como, quando submetidas a testes bem controlados, também Kulagina, Kuleshova e Stanley viram o superpoder sumir. Gardner cita a conclusão de um meticuloso estudo russo com Kulagina: “fraude ordinária”.
Quatro décadas mais tarde, em 2002, uma menina russa de dez anos, Natalia Lulova, foi testada em Nova York pelo mágico James Randi, que na época oferecia um prêmio de US$ 1 milhão a qualquer pessoa capaz de produzir efeitos paranormais em condições cientificamente controladas. A mãe dizia que a pequena era capaz de ver com os olhos vendados. Quando Randi arrumou a venda de um modo que impedia Natalia de espiar pela lateral do nariz, a capacidade evaporou-se.
Escola
Ser capaz de enxergar sem o uso dos olhos pode transformar alguém numa celebridade, mas ensinar as pessoas a fazê-lo pode ser uma fonte de renda. Na Índia e em outro lugares, grupos e empresas que prometem treinar crianças para ler e identificar cores com os olhos vendados oferecem um simulacro de proposta educacional que, ao mesmo tempo em que explora a ansiedade dos pais para dar aos filhos “todas as oportunidades” que possam ajudá-los a competir no impiedoso mundo adulto, oferece uma conversa fiada “New Age” e contracultural que parece transcender esse mundo.
A capacidade de ver sem olhos também já foi vendida a adultos. Nos anos 1990, dois grupos de cientistas franceses testaram representantes de uma empresa russa que prometia ensinar os segredos da “visão dermo-óptica” a qualquer um que pagasse pelo curso, incluindo cegos e deficientes visuais. O primeiro grupo usou ressonância magnética, eletroencefalograma e testes oftálmicos. O segundo, coberturas oculares que eram opacas, herméticas e invioláveis. O primeiro concluiu que o “superpoder” era real. O segundo detectou truque.
Esse é um padrão comum na história das investigações de fenômenos paranormais (e que, não raro, se repete nas pesquisas sobre outros temas “polêmicos”, como a eficácia de terapias alternativas e exóticas): a utilização confusa e exagerada de parafernália tecnológica e a mobilização de construtos teóricos mirabolantes que mais obscurecem do que iluminam o cerne da questão, quando o realmente eficaz e necessário seria a mera aplicação diligente de clareza de raciocínio e bom-senso.
Kuda Bux
Voltando a Kuda Bux. Além de inspirar Dahl, ele também entrou para a história ao realizar a primeira caminhada sobre brasas devidamente controlada e acompanhada de perto por cientistas ocidentais, em 9 de setembro de 1935. Esse feito não é exatamente um truque: as brasas de madeira emitem calor de forma lenta, o que permite que uma pessoa descalça, se capaz de manter um bom ritmo, caminhe com segurança sobre elas, desde que o trajeto não seja muito longo. Mal comparando, ninguém nunca vai ver um faquir, iogue, ilusionista ou guru de autoajuda caminhando descalço sobre uma chapa de aço incandescente – o metal transfere calor muito mais rápido do que a madeira.
Segundo James Randi, em sua “Encyclopedia of Claims, Frauds, and Hoaxes of the Occult and Supernatural” (“Enciclopédia de Alegações, Fraudes e Golpes do Oculto e do Sobrenatural”), Bux, vendado, era capaz de atingir alvos indicados por um voluntário com tiros de fuzil, e certa vez, em Nova York, pilotou uma bicicleta no trânsito da Broadway. De olhos vendados, claro. Morreu em 1981, aos 75 anos, com a vista fraca, por causa de um glaucoma.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)