Que dia da semana foi 17 de março de 1862? Até onde sei, nada de especial aconteceu nessa data, então sem constrangimentos para quem não tiver a resposta na ponta da língua. Mas enquanto para mim – e, talvez, para você também – é preciso recorrer a um calendário para descobrir, há quem consiga encontrar a resposta rapidamente e, ainda, utilizando uma lógica de raciocínio que nem mesmo é capaz de explicar.
Não tenho dúvidas de que a expressão “o poder da mente” pode ser usada em casos assim para salientar as surpreendentes habilidades do cérebro humano – e o mesmo valeria para qualificar grandes atletas, grandes enxadristas, grandes artistas e grandes cientistas. No entanto, a referida expressão é um prato cheio no banquete do universo da autoajuda: gurus e coaches produzem livros, vídeos, guias e palestras oferecendo receitas duvidosas de como a mente pode nos tornar mais felizes, mais ricos, mais amados e mais saudáveis.
Para piorar, não é raro que utilizem a Física Quântica como a suposta base teórica da afirmação de que o desejo mentalizado tem mesmo poderes nada convencionais, como alterar o DNA para nos levar à riqueza, garantir um “bom estado vibracional de saúde” (seja lá o que isso for), além de sucesso pessoal e profissional. Papo furado, como já discutimos aqui e aqui, por exemplo.
Mas, muito antes de colocarmos a mente humana em um pedestal inabalável de superpoderes, é bom lembrar que tem limitações importantes, como não ser capaz de perceber algo tão corriqueiro como o paralelismo das retas da figura abaixo, só porque atravessam um padrão desalinhado de quadrados pretos e brancos. Ilusionistas são peritos em utilizar técnicas que conseguem ludibriar a mente dos espectadores não treinados, que simplesmente não conseguem detectar a enganação bem diante de seus olhos: a atenção do público é levada para um lado, o truque acontece do outro; e objetos que parecem totalmente ordinários – como cartas, lenços, caixas, algemas e argolas – muitas vezes escondem alterações essenciais que fazem a mágica acontecer.
Um caso interessante de se analisar é o de James Hydrick, um suposto paranormal que alegava ter a capacidade de mover as páginas de uma lista telefônica apenas pelo poder da mente, sem tocá-las. Suas habilidades foram testadas pela equipe de James Randi (1928-2020), um mágico conhecido mundialmente como um dos ícones do pensamento cético, em um programa de televisão: na primeira execução, quando Hydrick estava livre para demonstrar a façanha, ele foi bem sucedido; na rodada seguinte, quando Randi cercou a lista telefônica com pequenos pedaços de isopor – para que voassem facilmente da mesa se Hydrick estivesse apenas usando o truque de assoprar discretamente para fazer as páginas, de papel finíssimo, virarem –, nosso paranormal parece ter perdido o “poder”, alegando que a nova condição tornava impossível repetir o feito.
A mensagem é clara: quando se trata de “poder da mente”, é preciso permanecer alerta, avaliando cuidadosamente, a partir das evidências disponíveis, se a alegação apresentada corresponde a algo real, ou se tudo não passa de ilusão, charlatanismo ou pseudociência.
Caminhando sobre brasa
Uma suposta evidência do “poder da mente” que costuma aparecer com frequência, tanto no contexto da autoajuda como no da espiritualidade, é a prática da caminhada sobre brasa (ou firewalking, em inglês): alega-se que o domínio da mente pode levar o indivíduo a um estado em que se torna capaz de sair ileso de um passeio, com pés descalços, sobre carvão ou madeira em brasa – quando o fogo já está brando ou recentemente arrefecido, mas esses combustíveis permanecem com uma coloração tipicamente avermelhada ou alaranjada, um indicativo de que estão a uma temperatura acima de 500o C.
Embora os gurus tentem convencer que o resultado da caminhada bem sucedida é efeito ou de elevação espiritual, ou de uma feroz confiança na própria capacidade de sucesso, a verdade é que a ciência tem plenas condições de explicar como uma pessoa pode sair da experiência sem ferimentos. O segredo principal é uma propriedade conhecida por condutividade térmica.
Sem entrar nos detalhes a respeito das trocas de calor, podemos entender seu efeito na prática: quando tocamos em um objeto quente, quanto maior a condutividade térmica do material de que ele é feito, mais facilmente transfere calor para a pele, e maior será a possibilidade de sofrermos uma queimadura mais grave. Um exemplo corriqueiro acontece com um bolo assando no forno: no final do cozimento, quando vamos checar se já está pronto, podemos tocar na superfície do bolo sem grande problema, mas uma ligeira esbarrada na forma metálica já é suficiente para queimar o dedo. Metais são bons condutores; bolos, não.
Não consigo deixar de indicar, aqui, um vídeo interessante que gosto muito de abordar em aulas para discutir esse assunto: é uma demonstração envolvendo uns bloquinhos feitos com o material que constitui o isolamento térmico utilizado no ônibus espacial. Sua condutividade térmica é tão pequena que podemos segurá-los à mão livre, mesmo imediatamente depois de retirados de um forno onde atingiram temperaturas que ultrapassam 1.000o C.
No caso do firewalking, tanto a madeira como o carvão são materiais de baixa condutividade. Portanto, por mais que estejam a uma temperatura bastante elevada, acabam tendo dificuldade para transferir energia para os pés do praticante de modo eficiente. Além disso, antes da caminhada, é comum que o guru ou seus assistentes acrescentem uma camada de cinzas – que também não é boa condutora – por cima do combustível em brasa, diminuindo ainda mais o fluxo de calor recebido pelos pés.
O segundo segredo é o tempo de permanência dos pés em contato com as brasas: o ideal é manter uma passada objetiva, rápida e ritmada, de modo a diminuir a quantidade de calor absorvida em cada passo. Junte-se a isso o fato de que os “tapetes” de brasa não são muito grandes, ficando, geralmente, entre 2 e 5 metros, e o resultado é que o tempo total de contato de cada pé com o leito de brasas, que é quando ocorre a troca de calor potencialmente danosa, é suficientemente curto para garantir uma caminhada segura. É análogo ao que acontece ao apagar uma vela com os dedos: por mais que a chama também esteja a centenas de graus Celsius, o esmagamento rápido do pavio entre os dedos não dura o bastante para transferir uma quantidade de calor capaz de causar queimadura.
Quando as coisas saem errado
Entender a teoria que nos permite sair ilesos de um passeio por cima das brasas é uma coisa; aplicá-la com precisão é outra bem diferente. Caminhos longos demais, fogo ainda alto demais e passos ou lentos, ou curtos, demais formam receitas clássicas de fracasso. E aí não haverá nem poder da mente, nem elevação espiritual que bastem para evitar as queimaduras.
Richard Wiseman, mágico e psicólogo inglês bastante envolvido com discussões sobre supostos casos de paranormalidade, submeteu três praticantes de caminhada sobre brasa – todos inicialmente convictos de que eram suas habilidades mentais as responsáveis por saírem ilesos da prática – ao teste. No entanto, propositalmente, montou um leito de brasas com cerca de 18 metros de extensão, muito maior que os habitualmente utilizados. Resultado: um candidato desistiu de participar; os outros dois conseguiram caminhar apenas por um terço do caminho, e, ainda assim, sofreram queimaduras nos pés.
Em 2012, um grupo de 21 participantes de um seminário motivacional de quatro dias foram encorajados a entrar numa prática de firewalking mal executada. Todos saíram com queimaduras de segundo ou terceiro grau. Como uma testemunha relatou, ao invés de terminarem a experiência com a sensação de empoderamento procurada, ouviam-se apenas os gritos agonizantes decorrentes das lesões.
Pregos e cacos de vidro
Duas outras demonstrações também são comumente encontradas nos mesmos contextos da caminhada sobre brasa: sair ileso depois de se deitar em uma cama de pregos (também conhecida como “cama de faquir”), ou de caminhar sobre cacos de vidro. Nesses casos, o que salva os praticantes é o conceito físico de pressão.
Tecnicamente, quanto maior a área de contato na aplicação de uma força, menos pressão é gerada no processo e, portanto, menor será o potencial para causar estragos ou ferimentos. Vamos à prática. Quando nos colocamos em posição de flexão – com corpo esticado e sustentado apenas pelas pontas dos pés e pelas mãos –, podemos, literalmente, sentir a pressão: experimente trocar as mãos abertas com palmas para baixo por apenas um dedo de cada mão em contato com solo e, rapidamente, devido ao aumento da pressão decorrente da diminuição da área de contato, você terá muito mais dificuldade para evitar cair de cara no chão.
Quem se deita em uma cama de pregos não encosta apenas em meia dúzia de pontas afiadas, mas distribui seu peso sobre um grande número delas; e a mesma lógica vale para os pés durante a caminhada sobre os cacos, que ficam, em cada passo, sempre sobre uma quantidade grande de pequenos pedaços de vidro. Em ambos os casos, podemos suportar a pressão resultante sem maiores problemas.
No Laboratório de Física do Instituto Federal de Santa Catarina, no campus onde eu trabalho, temos uma cama de faquir onde já deitamos diversos alunos, professores e visitantes sem necessidade de qualquer preparo espiritual ou motivacional prévio. Todos sobreviveram. Pensando bem, talvez devêssemos acender umas velas, baixar a luz ambiente e cobrar pela experiência “transformadora de vidas”: caso fizesse sucesso, poderíamos repor pelo menos uma parte dos recursos cortados dos Institutos Federais em anos recentes.
Autoajuda
Importante destacar que este artigo não tem pretensão de sugerir que livros, guias, palestras e práticas de autoajuda sejam completamente inúteis. Para muitas pessoas, tudo isso pode mesmo acabar contribuindo na geração de ânimo e motivação para encarar as dificuldades do dia a dia. No entanto, é preciso estar atento a três problemas relacionados ao tema.
O primeiro é que nem todo desânimo ou desmotivação pode ser resolvido exclusivamente por um serviço de autoajuda, uma vez que existem condições que geram os mesmos sintomas e requerem tratamento médico ou psicológico; o segundo é que uma pessoa que acaba se tornando superconfiante, otimista demais com a vida, pode acabar relaxando no serviço, nos relacionamentos ou no acompanhamento de problemas de saúde, podendo, portanto, ter surpresas desagradáveis quando perceber que as coisas não estão tão bem como imaginava; e o terceiro é que misturar práticas motivacionais, ou espirituais, com pseudociências acaba apenas ludibriando a audiência.
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)